Agostinho e a retórica cristã



“A retórica pode ser compreendida “como o uso da comunicação para definir as coisas da maneira como desejamos que os outros as vejam” (HALLIDAY, 1990, p. 8). A retórica presta-se tanto à tentativa de fazer alguém mudar de ideia ou de comportamento, quanto a reforçar crenças e atitudes já existentes (HALLIDAY, 1990, p. 36). No discurso retórico, tão importante quanto o que é dito é o como é dito e qual é o efeito que se produz. Por isso, a necessidade de argumentos, de provas, perorações, que visam persuadir o interlocutor: “persuadir não é apenas sinônimo de enganar, mas também o resultado de certa organização do discurso que o constitui como verdadeiro para o receptor” (CITELLI, 2002, p. 14).

Na retórica, busca-se não somente o convencimento racional, mas também o emotivo. Não se quer apenas convencer as mentes, almeja-se ganhar os corações (CITELLI, 2002, p. 19). Para cumprir seus objetivos, a retórica faz uso de muitas figuras de linguagem que têm por objetivo prender a atenção do receptor: metáforas, eufemismos, estereótipos, etc.

A arte retórica tem o seu berço na Grécia Antiga, no início do século V antes de Cristo. As origens precisas são difíceis de se determinar, mas é certo que cabe aos sofistas a construção de “uma certa conjunção de concepções epistemológicas e éticas extraordinariamente propícias ao seu desenvolvimento” (BARILLI, 1979, p. 14). Na concepção sofística, não existe uma verdade, existem argumentos que podem ser mais ou menos convincentes, e a tarefa do sofista era exatamente apresentar tais argumentos da maneira mais persuasiva possível (BARILLI, 1979, p. 15). Para os sofistas, a verdade era individual e temporária, era “simplesmente aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer um de que preto era branco. Pode haver crença, mas nunca conhecimento” (GUTHRIE, 1995, p. 52).

No período em que os sofistas viveram florescia nas cidades gregas o ideal do homem político. Neste contexto, a proposta dos mestres sofistas era a de “equipar o espírito do cidadão para a carreira de homem do Estado” (MARROU, 1975, p. 83). O ensino da retórica era parte capital do programa pedagógico dos sofistas, porque saber fazer uso da palavra para persuadir o auditório e obter a aprovação da maioria era o caminho do sucesso político (GUTHRIE, 1995, p. 51).

Platão (428-347 a.C.) foi o grande opositor do pensamento sofístico. Afirmando a verdade sobre a aparência, Platão coloca a episteme (conhecimento) acima da doxa (opinião) (BARILLI, 1979, p. 17). Ele prefere a dialética, que privilegia o confronto de ideias breves e diretas, sem o recurso aos subterfúgios linguísticos característicos da retórica. Para ele, a retórica sofística tem como objetivo a ilusão, enquanto a dialética buscava a verdade (BARTHES, 1975, p. 153).

Depois de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.) tentará uma conciliação entre os elementos da disputa sofístico-platônica. Ele defenderá que, em torno de certas matérias para os quais não existe o verdadeiro, é suficiente que se argumente em favor do verossímil, de modo que o discurso se faça verdadeiro a partir da sua própria lógica (BARILLI, 1979, p. 23). Diferentemente da dialética, a retórica requer um tipo de raciocínio simplificado, que tenha por ponto de partida o senso-comum e que chegue rapidamente à conclusão, sem o rigor do raciocínio dialético. A esse tipo de silogismo ele denominou entimema (BARTHES, 1975, p. 157).

Aristóteles percebe também o caráter ambíguo do exercício retórico, que oscila entre a forma e o conteúdo, entre a arte e a ciência, entre a teoria e a prática. Assim, o retórico precisa dominar uma série de conteúdos, ao mesmo tempo que não pode ser um especialista. Ele precisa saber relacionar entre si as diversas áreas de conhecimento a fim de desempenhar bem o seu papel (BARILLI, 1979, p. 24).

Coube ainda a Aristóteles observar as fases que estão presentes do discurso retórico, fases estas que, em grande medida, são ainda seguidas pela retórica contemporânea: assim, o discurso retórico começa com o exórdio ou introdução, no qual se indica o assunto a ser tratado e se procura captar a atenção do auditório; a narração, onde os fatos e eventos são apresentados; a argumentação, na qual são arroladas as provas daquilo que se está dizendo e a peroração ou epílogo, no qual se tem a última oportunidade de persuadir os destinatários do discurso (CITELLI, 2002, p. 11-12).

A partir de Alexandre Magno (353-323 a.C.), uma nova perspectiva cultural entra em cena. Com a expansão do Império Macedônico, o impulso helenizador fez surgir um novo conceito de formação humana, a paideia:

Paideia
(ou paideusis) vem a significar a cultura, entendida não no sentido ativo, preparatório, de educação, mas no sentido perfectivo que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente desenvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, o do homem tornado verdadeiramente homem; é notável constatar que quando Varrão e Cícero tiveram de traduzir paideia, preferirão dizer em latim humanitas (MARROU, 1975, p. 158-159).

A unidade cultural do mundo grego será dada, sobretudo, por esse ideal comum de humanidade e todos aqueles que a ele aspiram buscarão o mesmo tipo de educação. Ela será o grande bem a ser buscado, ao qual se atribui uma dignidade tal que se aproxima da devoção religiosa (MARROU, 1975, p. 163).

Neste contexto, a retórica ocupou lugar proeminente como parte essencial da paideia. Seu ensino fazia parte dos níveis superiores da educação grega, sendo o seu objeto mais específico (MARROU, 1975, p. 306). Seu objetivo, entretanto, difere bastante das suas origens sofísticas. Na nova realidade política, já não se trata mais de convencer uma assembléia de cidadãos. O homem político eficaz é agora aquele que sabe conquistar a confiança do soberano. Mas o grande orador continuará tendo prestígio social e político, como símbolo da cultura helenística, da paideia (MARROU, 1975, 307).

No programa de estudos superiores, a retórica vinha logo depois da gramática. Compreendia a teoria, o estudo de modelos e os exercícios de aplicação. Na parte teórica estudava-se todo um vocabulário técnico, bem como os elementos da construção dos discursos retóricos, seguindo o modelo aristotélico: a invenção, em que se catalogam os lugares, os temas a serem tratados; a disposição, o plano do discurso propriamente dito (exórdio, narração, argumentação, peroração); a elocução, que fornecia regras de estilo, a memorização e finalmente a ação, que dizia respeito ao corpo, aos gestos, à voz (MARROU, 1975, p. 311-314). Na segunda parte, estudavam-se os modelos clássicos de discurso e, finalmente, procediam-se os exercícios de aplicação a partir de temas propostos, todos eles fictícios e sem aplicação na vida real. Tudo era muito formal e feito com finalidades estéticas.

Em Roma, a primeira escola de retórica foi aberta em 93 a.C. e fechada no ano seguinte por ter sido considerada uma inovação contrária aos costumes tradicionais (MARROU, 1975, p. 390). Entretanto, a retórica logo passou a fazer parte da educação dos filhos das famílias mais abastadas. Ao lado da dialética, da gramática, da aritmética, da música, da geometria e da astronomia, a retórica será uma das “artes liberais”. Como na Grécia, a retórica romana é um símbolo de prestígio e embora tenha sido importante na tribuna e no tribunal da República Romana, “seu prestígio provinha muito mais do brilho literário que da função cívica” (VEYNE, 1898, p. 36). O lugar que ocupava no ensino superior e a forma de aprendizado continuaram idênticos ao modelo grego.

O personagem mais importante da retórica romana foi Cícero (106-43 a.C.), que consolidou o ensino da retórica em latim. Dentro de sua visão de mundo, na qual a prática tem ascendência sobre a teoria, a retórica ocupa um papel central e unificador (BARILLI, 1979, p. 41). Seguindo de perto a tradição aristotélica, ele a inova ao colocar a retórica acima da dialética (BARILLI, 1979, p. 43). Cícero busca separar o abismo colocado entre o saber e o dizer, procurando fazer da filosofia uma aliada da retórica (BARILLI, 1979, p. 45). Cícero é o autor da teoria dos três estilos de retórica; o simples, o sublime e o temperado que serão explorados por Agostinho em seu livro De doctrina christiana.

O projeto de Cícero era de que o ensino da retórica incluísse o conhecimento da filosofia, do direito e da história. Entretanto, tal projeto nunca se concretizou e a retórica romana permaneceu presa ao formalismo estético (MARROU, 1975, p. 438). Apesar desse caráter formal, as escolas de retórica tornaram-se o celeiro onde o Império, até o século VI, iria cultivar o pessoal adequado para ocupar os altos cargos administrativos e governamentais (MARROU, 1975, p. 442).

Isso se explica pelo fato de que entre os romanos permaneceu vivo o ideal de civilização, de paideia, dos gregos. A paideia era um distintivo social, difícil de se adquirir e que uma vez adquirida tornava-se um caminho de promoção pessoal. A retórica era o símbolo identificador desta cultura e um código comum para os membros da elite (BROWN, 1992, p. 39). Ter passado por uma escola de retórica significava ser considerado mais inteligente e refinado no falar e no agir (BROWN, 1992, p. 41).

Uma formação retórica dava ao aluno um senso de decoro verbal, educando-o para usar bem as palavras. O retórico deveria ser capaz de impor respeito pela palavra, não pela violência (BROWN, 1992, p. 44). Era também uma escola de cortesia, que ensinava a elite a tratar-se com cordialidade e fraternidade, o que significava que eram iguais entre si (BROWN, 1992, p. 45). Ensinava também o auto-controle, o cuidado com as palavras, numa época em que a violência rondava a vida daqueles que exerciam o poder (BROWN, 1992, p. 51). Todas essas qualidades eram importantes para aqueles que exerciam o poder em qualquer nível, incluindo o próprio imperador, que deveria ser um modelo de exercício de poder (BROWN, 1992, p. 58).

No Cristianismo, o discurso possui um lugar central. A sua está centrada no dogma segundo o qual a própria Palavra de Deus se fez carne na pessoa de Jesus Cristo. Como uma religião de proposta universalista, interessada em fazer adeptos de todas as culturas e grupos sociais, o discurso cristão se desenvolveu no Império Romano apropriando-se tanto de sua herança judaica, quanto de seu ambiente greco-romano, a fim de construir um discurso que tinha elementos tanto de continuidade, quanto de descontinuidade com os de seus contemporâneos (CAMERON, 1994, p. 21).

O discurso cristão possui as suas peculiaridades. Em primeiro lugar, é um discurso essencialmente figurativo: como na arte visual, o discurso cristão antigo apresenta-se com uma série de figuras carregadas de significados, que apelam à imaginação (CAMERON, 1994, p. 57). Em segundo lugar, no discurso cristão a narrativa desempenha um papel fundamental na propagação da sua mensagem, na inculcação de crenças e na construção de seu universo simbólico (CAMERON, 1994, p. 93). É também a narrativa que permite ao discurso cristão, depois de Constantino, se apropriar do passado pagão para explicar o presente e o futuro em seus próprios termos (CAMERON, 1994, p. 122). Em terceiro lugar, o discurso cristão faz uso do paradoxo, da linguagem do mistério, de grande apelo retórico (CAMERON, 1994, p. 155).

Alimentado pela fé na revelação divina, o Cristianismo desconfiará da validade da retórica e argumentará que a força da verdade revelada torna dispensável o uso dos recursos retóricos. Trata-se, na verdade, de uma retórica da anti-retórica. Os Pais da Igreja do segundo século, por exemplo, vão edificar o seu discurso sobre as bases de um gênero tipicamente retórico, o judicial, manifesto nos escritos apologéticos nos quais se procurará defender o Cristianismo das acusações que lhe são feitas (BARILLI, 1979, p. 58). Da mesma forma, os bispos cristãos do século IV eram eles próprios educados nos valores da paideia (BROWN, 1992, p. 123). Como vimos, uma boa formação retórica era o mais notável desses valores.

Agostinho não fugiu à regra. Aurelius Augustinus, nasceu em Tagaste, província romana da Numídia, em 13 de novembro de 354, filho do pagão Patrício e da cristã Mônica. Por intermédio dos esforços de Patrício e da ajuda de um amigo e benfeitor da família, Romaniano, Agostinho pôde estudar e receber a educação nas artes liberais que podia abrir carreiras no magistério ou na magistratura (MARROU, 1957, p.14). Assim, dos sete aos dezenove anos, Agostinho estudou em Tagaste, Madaura, e, finalmente, em Cartago. A educação de Agostinho foi fundamentalmente literária e latina, e o seu desconhecimento da língua grega é um revelador da distância cada vez mais profunda entre o Oriente e o Ocidente, que já se tornava uma característica típica de sua época (MARROU, 1957, p. 16).

Ele foi educado para ser um mestre da oratória, alguém capaz de se expressar de tal maneira que fosse capaz de chorar e de fazer os seus ouvintes chorarem (BROWN, 2005, p. 43). Foi a nomeação para um importante cargo de professor de retórica que o levou a Milão em 384 e foi por interesse na arte da oratória que ele passou a frequentar a igreja do bispo Ambrósio, personagem marcante na sua conversão ao Cristianismo. De início, seu interesse nos sermões do bispo de Milão é de natureza técnica, formal:

Acompanhava assiduamente suas conversas com o povo, não com a intenção que deveria ter, mas para averiguar se sua eloquência merecia a fama de que gozava, se era superior ou inferior à sua reputação. Suas palavras me prendiam a atenção. Mas o conteúdo não me preocupava, até o desprezava. Eu me encantava com a suavidade de seu modo de discursar; era mais profundo, porém menos jocoso e agradável que o de Fausto [líder maniqueu] quanto à forma
. (Confissões, 5,13.23)

Após a sua conversão, a avaliação que passa a fazer do seu antigo ofício é bastante negativa. Eis como ele descreve a sua prática nas Confissões:

Naqueles anos eu ensinava retórica: vencido pelas paixões, eu vendia tagarelices [loquacitatem] para ensinar a ganhar causas. Todavia, Senhor, tu bem sabes que eu preferia ter bons discípulos, no verdadeiro sentido da palavra, e, sem artimanhas, eu lhes ensinava artifícios úteis, dos quais pudesse um dia usar, não contra a vida de um inocente, mas, quem sabe, para salvar a vida de um culpado
(Confissões, 4, 2.2).

Numa obra escrita por volta do ano de 405, intitulada De catechizandis rudibus [“A instrução dos catecúmenos”], Agostinho orienta como devem ser instruídos aqueles alunos que possuem formação retórica e desejam se tornar cristãos:

[...] devemos dizer-lhes, mais insistentemente que aos iletrados, que os aconselhamos com empenho a assumir a humildade cristã. Aprenderão assim a não desprezar
aqueles que - eles bem sabem - evitam mais os vícios dos costumes do que os vícios da linguagem e não se atreverão a comparar com um coração puro a língua cultivada que costumavam preferir (A instrução dos catecúmenos, 9.13).

Neste mesma obra, Agostinho também ensina que o catequista deve falar de tal maneira que a sua fala se adapte à capacidade dos ouvintes e à diversidade das situações (12.17; 15.23). Aqui se encontra uma teoria da acomodação, segundo a qual os mistérios divinos devem ser adaptados, por meio de imagens sensíveis, às limitações da natureza humana. É um recurso retórico amparado por um conceito teológico, segundo o qual o próprio Deus se humilhou na encarnação do Verbo a fim de comunicar a sua salvação aos homens (BOYLE, 1990, p. 118).

A principal fonte para o nosso conhecimento a respeito do que Agostinho pensa sobre a tradição retórica é a obra De doctrina christiana [“A doutrina cristã”], concluída por volta de 427. O livro é um manual de exegese, hermenêutica e de pregação: “a maneira de descobrir o que é para ser entendido e a maneira de expor com propriedade o que foi entendido” (A doutrina cristã 1, 1.1). Considerando como o cristão pode se apropriar da cultura geral, ele diz a respeito da eloquência:

Existem também certas normas para um discurso mais desenvolvido, chamadas eloquência. Apesar de serem normas verdadeiras, elas podem persuadir coisas falsas. Mas, como graças a essas normas, os homens podem também expor o que é verdadeiro, a culpa não é da arte da palavra, mas a perversidade vem dos que dela se servem mal
(A doutrina cristã, 2, 37.54).

Embora constate uma certa neutralidade da eloquência, Agostinho adverte contra o perigo do orgulho que pode estar associado à aquisição deste tipo de conhecimento:

As regras da retórica podem, é verdade, tornar os espíritos mais exercitados, a não ser que não os faça mais maldosos e orgulhosos, isto é, levados a sentir prazer em enganar com perguntas e questões aparentes, ou a se imaginar possuidores de um bem tão valioso que os torna superiores aos outros homens, bons e inocentes
(A doutrina cristã, cristã 2, 38.55).

O livro IV desta obra é inteiramente dedicado a oratória. Aqui transparece com clareza a herança retórica ciceroneana de Agostinho, ao mesmo tempo que surgem as peculiaridades de sua própria perspectiva cristã. De início, ele faz uma forte defesa do uso dos conhecimentos retóricos pelo pregador cristão:

É um fato, que pela arte da retórica é possível persuadir o que é verdadeiro como o que é falso. Quem ousará, pois, afirmar que a verdade deve enfrentar a mentira com defensores desarmados? [...] Visto que a arte da palavra possui o duplo efeito (o forte poder de persuadir seja para o mal, seja para o bem), por qual razão as pessoas honestas não poriam seu zelo a adquiri-la em vista de se engajar ao serviço da verdade?
(A doutrina cristã, 4, 2.3).

Como arte da persuasão, a retórica adequa-se aos objetivos da pregação cristã, que visa “conquistar o hostil, motivar o indiferente e informar o ignorante”, bem como “comover os corações” (A doutrina cristã 4,4.6).

Agostinho insiste, contudo, para que o pregador cristão não esqueça que tem o dever de ser fiel, antes de tudo, às Escrituras Sagradas, o que equivale dizer que ele deve colocar a sabedoria acima da forma. Contudo, “o orador que deseja falar, não somente com sabedoria, mas também com eloquência, será mais útil se puder empregar essas duas coisas” (A doutrina cristã 4,5.8).

Ao comentar a respeito da eloquência presente nas Sagradas Escrituras, Agostinho adverte os seus leitores sobre a importância da clareza devida ao orador cristão: “Devem [...] em todos os seus discursos, trabalhar primeiramente, e, sobretudo, para se tornarem compreensíveis, pelo modo de falar mais claro possível” (A doutrina cristã 4,8.22). Essa insistência na clareza está plenamente de acordo com a teoria da acomodação supra citada.

Uma outra preocupação de Agostinho é de que o uso de artifícios retóricos não comprometa a verdade da mensagem a ser proclamada: “amar nas palavras a verdade e não as próprias palavras. Para que serve uma chave de ouro, se ela não pode abrir o que desejamos? No que é prejudicial uma chave de madeira, se ela pode abrir?” (A doutrina cristã 4,11.26).

Ao analisar os estilos de retórica, Agostinho depende diretamente de Cícero. É dele que Agostinho faz a citação a respeito dos três objetivos do orador: instruir, agradar e convencer. O primeiro destes objetivos diz respeito às ideias; os dois últimos a forma como o orador as expõe (A doutrina cristã 4,12.27). Tendo em vista que, para Agostinho, a verdade é o que deve nortear o orador, a instrução deve ser o seu primeiro objetivo, mas não é o suficiente. Ele também precisa agradar, para conquistar a atenção do auditório e, principalmente, convencer se quiser que os seus ouvintes ajam de acordo com o que ele prega:

É portanto necessário que o orador eclesiástico ao persuadir a respeito do dever a ser cumprido, não somente ensine para instruir e agrade para cativar, mas, ainda, convença para vencer. Não lhe resta, com efeito senão um meio para levar o ouvinte a dar seu consentimento: o de convencer pelo poder da eloquência, no caso em que a demonstração da verdade unida ao encanto da expressão não conseguiu fazê-lo
(A doutrina cristã, 4,13.29).

Em seguida, Agostinho recorre mais uma vez a Cícero para falar dos três estilos de oratória: o simples, o temperado e o sublime: o primeiro é destinado aos assuntos simples, o segundo aos assuntos médios e o terceiro aos assuntos grandiosos (A doutrina cristã 4,18.34). Agostinho adianta-se em dizer que o pregador, ao falar das coisas da salvação eterna dos homens, trata sempre de grandes assuntos (A doutrina cristã 4, 19.35). Apesar disto, não deve ele sempre utilizar o estilo sublime, mas saber selecionar o estilo também de acordo com o propósito que se tem em vista:

Ainda que o nosso orador capacitado tenha sempre questões importantes a tratar, ele não deve fazê-lo constantemente em estilo sublime, mas em estilo simples, se estiver a ensinar; e em estilo temperado, se estiver a censurar ou louvar. Mas quando for preciso determinar à ação os ouvintes que deveriam agir, mas que resistem, ele empregará, então, para expor as grandes verdades, o estilo sublime e os acentos próprios a comover os corações (A doutrina cristã,
4,20.38)

O estilo sublime é aquele que “mais frequentemente faz cerrar a garganta e leva a derramar lágrimas” (A doutrina cristã 4,25.53). Agostinho cita um exemplo pessoal: pregando em Cesaréia da Mauritânia, ele tentava convencer grupos rivais a cessar as hostilidades entre si e evitar assim um banho de sangue. Após o sermão, o auditório irrompeu em aclamações e lágrimas: “Suas aclamações indicavam que foram instruídos e comovidos; suas lágrimas, que estavam convencidos” (A doutrina cristã 4,25.53).

Por fim, Agostinho volta a advertir: “o orador não deve ser escravo da expressão, mas a expressão deve servir ao orador” (A doutrina cristã 4,29.61). Mais importante do que falar com eloquência é falar com sabedoria e servir à verdade.

Em seus textos, Agostinho faz uso de alguns esquemas retóricos básicos a fim de produzir o efeito persuasivo necessário. Como veremos ao analisar seus escritos antidonatistas, é comum o uso de estereótipos, o recurso a eufemismos, a criação de inimigos, o apelo às fontes de autoridade, a reiteração de ideias (CITELL I, 2002, p. 47-48). Estes e outros recursos denunciam o caráter eminentemente retórico desses discursos."

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Fonte:
JOSÉ MÁRIO GONÇALVES: “RELIGIÃO E VIOLÊNCIA NA ÁFRICA ROMANA: AGOSTINHO E OS DONATISTAS”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História, na área de concentração em História Social das Relações Políticas, sob orientação do Professor Doutor Sérgio Alberto Feldman). Vitória, 2009.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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