Fé e mística em Santo Agostinho



“No período medieval as invasões ao território romano e o medo da morte, efetivamente, causaram um estado permanente de angústia no povo, remetendo-o à relação pessoal com o sagrado, que culminou, no ano de 391, com o cristianismo se sobrepondo ao paganismo ao se constituir na religião oficial do Estado.

Le Goff realça a suspensão pela Igreja da ambivalência simbólica:

A Igreja substitui o realismo pagão por um universo de símbolos e de signos. Nega a essencialidade do homem perante Deus e o além, e impõe novos quadros para a representação da sociedade. Pode tratar-se de um dualismo elementar: clérigos-laicos, poderosos-humildes. A cultura clerical encobre e elimina a cultura folclórica. [...] é a separação do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, da magia negra e da magia branca, sendo o maniqueismo propriamente dito evitado apenas pela omnipotência de Deus
(1980, pp. 125- 214).

P. Hall Manly, ao comentar o Oratio Hominis Dignitate de Pico della Mirandola (1486), afirma que estes prístinos mistérios não deixaram de existir, mesmo após o Cristianismo se tornar a religião mais poderosa no mundo:

O grande Pan não deixou de existir, e a Maçonaria é a prova da sua sobrevivência. Os mistérios pré-cristãos assumiram, simplesmente, o simbolismo da nova fé, perpetuando por meio dos seus símbolos e alegorias nas mesmas verdades possuídas pelos sábios desde o principio do mundo. Não há, portanto, uma verdadeira explicação para o fato de símbolos cristãos encerrarem em si o que é escondido pela filosofia pagã. Sem as misteriosas chaves transportadas pelos líderes dos cultos egípcios, brâname e persa, os portais da Sabedoria não poderiam ser abertos
(MANLY, 1486, p.4).

O fato é que, este período de transição foi caracterizado por intensas relações com o divino, gerando uma distenção: de um lado os Santos Padres da Igreja numa relação vertical, signatários da mediação entre os homens e Deus e, preocupados em nestes assentir a escatologia cristã; de outro, embora proibida, a prática religiosa pagã numa relação horizontal de fetiche, em que a magia tornava-se o domínio ideal do sagrado pagão, quanto mais se via privada e oculta.

Segundo Ariès (2004), de tal modo se mostrava o grande desafio dos Santos Padres: Quais atitudes deveriam ter para que as mentes transpusessem do sagrado ao sacramento? Como cristianizar essas crenças intangíveis na medida em que eram domésticas e íntimas? Como perceber Deus no próprio coração, pois que tinham a força divina como algo exterior ao corpo?

Ariès exclarece esta dificuldade a partir de sua prospecção histórica:

[...] para suscitar o desejo, utilizavam o sangue menstrual, o esperma do homem ou a urina de ambos os sexos. O princípio era sempre o mesmo: captar as forças vitais por tudo que emanava do ser vivo. Aprisionar o sagrado e aproximar-se de sua perigosa radiação; esse era finalmente o grande segredo de tais adivinhos, feiticeiros e mulheres que a noite frequentavam os bosques sagrados, e das multidões que realizavam danças rituais destinadas a provocar a fecundidade e a prosperidade, assim como afastar os mortos ou conjurá-los
(2004, pp. 501-507).

Ariès (2004) cita o quarto da casa burguesa romana como local íntimo e afastado, um templo da vida privada, no qual a conotação sexual do local era de transgressão da moral dominante em sua forma mais violenta. Este caso, especificamente, a partir do Sermão da Montanha, serve a Santo Agostinho para dele inferir sua interioridade: Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á (MATEUS 6.6).

Santo Agostinho não impugnou a mística pagã, ao contrário, utilizou o vezo para redirecionar seu foco, limitando-o à em um único Deus. De tal modo, transforma as emoções intensas da intimidade profana do cubiculum ao indicar e simbolizar que este local encontrar-se-ia no íntimo do homem, onde sua alma estaria com o próprio Deus: Deste modo, no meio desse grande combate que se travava no interior de minha residência interior, no qual violentamente encetara minha alma em nosso quarto íntimo, em meu coração [...] (in CONFESSIONUM LIBRI XIII – XIII.8.19).

Santo Agostinho reporta este tema com Adeodato:

Ignoras a lei que nos prescreve não proceder de outra forma, que não orarmos ocultos em um quarto, para que o súplica penetre em nossa mente, senão, como poderia Deus nos fazer rememorar ou ensinar a alcançar pela locução aquilo que desejamos...
(in DE MAGISTRO LIBRI II.15).

Santo Agostinho parte do homem imperfeito para provar a existência de Deus pela seição, porque para o santo, conceitualmente, a existência de algo imperfeito só seria possível se houvesse o seu contrário. Encontramos esta inferência em Peterson (1981), para quem, Santo Agostinho aceitou a existência de outro mundo, ao se conduzir pela definição da natureza de Deus de Tertuliano, do mundo real como uma sombra do mundo supra-sensível:

O Filho e o Espírito Santo procedem do Pai por emanação. Assim são de uma só substância com ele, pois Deus é corpo. O espírito tem uma substância corpórea de sua própria espécie. E, sendo emanados dele, o Filho e o Espírito são subordinados ao Pai
(TERTULIANO in Peterson, 1981, p.49).

Esta subordinação ao Pai foi a característica fundamental de uma linha filosófica chamada Cristologia do Logos, onde a busca pelo Deus ilimitado era, precisamente, a aceitação do limite do ser humano e, por isso a busca pela mística que indicaria a presença divina no homem; o que era e, permanece até os dias de hoje como um mistério, porque seu sentido último é o próprio limite de seu místico sentido. Esta presença hodierna se revela principalmente no mistério do rito cristão da transubstanciação, conjunção arcana das palavras latinas trans (além) e substantia (substância):

Tomou em seguida o pão e depois de ter dado graças, partiu-o e deu-lho dizendo: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim [...] Do mesmo modo tomou igualmente o cálice, depois de cear, dizendo: Este cálice é a nova aliança em meu sangue, que é derramado por vós...
(LUCAS 22.19-20).

Ladrière, ressaltando a palavra no mistério da fé, afirma:

Na experiência da , a palavra desempenha também um papel essencial, não, porém, como expressão de um sistema no qual nos fosse dada uma nova aproximação da verdade, mas sim, como revelação. Isto é, como livre manifestação de um desígnio de Deus sobre o mundo, no qual o destino do homem, assim como, de certa forma, o ser mesmo de Deus, se acha implicado [...] Na medida em que a revelação não é simplesmente apelo dirigido à vontade, mas manifestação do mistério de Deus que orienta certo modo de compreensão, certo tipo de inteligibilidade, de tal forma que a efetivamente envolve um saber. Para situar corretamente este saber em relação aos outros, naturalmente é preciso reportá-lo à sua origem, recolocá-lo no contexto vivido da palavra relevante [...] Esta é essencialmente anúncio, a partir do que todos os seus outros caracteres devem ser reinterpretados [...] A relação da com a verdade é escatológica, ou seja, plenamente atual e, ao mesmo tempo, inteiramente por vir. Contudo, se a verdade implicada na tem este estatuto misterioso, é porque encontra seu fundamento último na Palavra viva, que é a própria revelação que anunciou a si mesma, dizendo: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida
(LADRIÈRE, 1977, pp. 183-187).

Para Steiner (2005), nas relações com o sagrado não há antinomias, porque a Verdade não é contingente; ela pressupõe a si; é, como cita Ladrière, auto-implicada, não carecendo de comprovação para conceber o discurso e nele atestar uma revelação com sua própria lógica.

Para Santo Agostinho, a experiência mística implica aceitar da existência de Deus, única via à descoberta dos conhecimentos necessários, eternos, imutáveis e pré-existentes na alma. Este, Pai eterno e imutável é Aquele que tem presciência, não existe um tempo em que não permanecesse, tampouco procede de lugar algum; é ao mesmo tempo, uma realidade imanente e transcendente ao pensamento, conforme descreve Derrida: na forma como se revelou a Moisés, Yahweh, não propriamente um nome, apenas uma forma verbal designando, eu sou o que sou (2006, p.17).

A. Hamman, ao escrever sobre o místico na obra do santo, realça:

Este Deus à espreita em sua vida (de Santo Agostinho), este Deus presente em seus irmãos, este Deus no mais íntimo de sua alma é também aquele que ele aspira estreitar acima de todas as pesquisas, para o qual ele tende com todo o seu ser, inflamado agora pelo próprio Amor. Quantas vezes não observa o horizonte para ver se ele vem, para repousar nele e dele gozar. Esta palavra de gozo é-lhe reservada agora não somente para a visão, mas também para a posse de Deus
(1985, p. 234). Ao traduzir De Magistro, ao místico, considerei a linguagem pedagógica de Santo Agostinho, que envolve a natureza da alma e do corpo que visa a certeza escatológica, tanto quanto ponderei a recomendação de Ladrière (1977), para quem encontrar no Cristo o mistério de Deus requer introverter e aceitar este mistério."

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Fonte:
Antonio Auresnedi Minghetti: “Tradução Comentada de DE MAGISTRO LIBER VNVS de SANCTI AVRELII AVGVSTINI”. (Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos da Tradução. Orientador: Prof. Dr. Rafael Camorlinga Alcaraz Co-orientador: Prof. Dr. Walter Carlos Costa). Florianópolis, 2009.

Nota
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