“Santo Agostinho atribuiu, assim como os filósofos gregos, grande importância ao desvendamento do que é o homem, considerado por ele, como um ‘grande abismo’ e um ‘grande problema’ e um “grande enigma” a descobrir.
Grande abismo é o homem, Senhor! Tendes contados os seus cabelos, e nenhum se perde para Vós. Contudo, os seus cabelos são mais fáceis de contar que os afetos e movimentos do coração! (Confissões, IV, 14, 22).
Há, porém, coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece (Confissões, X, 5, 7).
O ponto de partida de Santo Agostinho para a gênese da natureza humana foi explicar a natureza do homem num composto de corpo e alma.
[Agostinho] – Será evidente a cada um de vós, que somos compostos de alma e corpo? Todos foram concordes, exceto Navígio, que declarou não saber.
[A.] – Mas, disse-lhe eu, pensas que ignoras tudo em geral, ou essa proposição é uma entre outras coisas que desconheces?
[Navígio] – Não creio que sou totalmente ignorante, respondeu ele.
[A.] – Podes, pois, dizer-nos alguma coisa do que sabes?
[N.] – Sim, posso.
[A.] – Se isso não te incomoda, dize-nos, pois.
E como ele hesitasse, interroguei:
[A.] – Sabes, pelo menos que vives?
[N.] – Isso eu sei.
[A.] – Sabes, portanto, que tens vida, visto que ninguém pode viver a não ser que tenha vida?
[N.] – Isso também sei.
[A.] – Sabes, igualmente, que possuis um corpo? Ele concordou.
[A.] – Sabes, então, que constas de corpo e vida?
[N.] – Sim, todavia tenho dúvidas se não existe alguma coisa a mais do que isso.
[A.] – Assim, não duvidas destes dois pontos: possuis um corpo e uma alma. Mas estás em dúvida se não existe outra coisa que seria para o homem um complemento de perfeição. [N.] – É isso, concordou ele (Vida Feliz, 2, 7).
Desse modo, a união entre corpo e alma constituía, conforme Santo Agostinho, o conceito de homem total. “Que o corpo se une à alma para formar e constituir o homem total e completo, conhecemo-lo todos. Testemunha-o nossa própria natureza” (Cidade de Deus, X, 29, 2).
Mesmo considerando a totalidade do homem em corpo e alma, Santo Agostinho atribuiu maior importância à alma pela sua característica de imutabilidade e simplicidade.
Quanto à criatura espiritual, tal como a alma comparada com o corpo, é certamente mais simples, ou seja, não é dotada de tanta multiplicidade como o corpo, mas também não é simples. É mais simples do que o corpo, porque não é uma massa que se difunde pelo espaço local, mas em cada corpo a alma está toda inteira; e toda está também em qualquer das partes do corpo. Assim, quando algo acontece na menor parte do corpo que influa na alma, embora não em todo o corpo, ela pode sentir, pois influi no seu todo. Mas como na alma uma coisa é a sua atividade, outra, a inércia, a agudeza, a memória, o desejo, o temor, alegria, a tristeza. E como esses sentimentos podem existir na natureza da alma uns sem os outros, e uns com mais intensidade, outras com menos, inumeráveis e variadíssimos, é sinal evidente de eu essa natureza não é simples, mas múltipla. Ora, tudo o que é simples é imutável, portanto toda criatura é mutável (Trindade, VI, 6, 8).
Alma e corpo se mostram contrários ainda pela sua composição, porque o corpo está sob classificações físicas diferentes das da alma.
Existe certamente no corpo humano certo volume de carne, certa forma, certa ordem e distinção de membros, numa constituição saudável (Trindade, III, 2, 8).
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(...) o corpo como nós [o definimos], ou seja, [é] qualquer natureza que ocupa espaço local pelo comprimento, largura e altura... (Comentário Gênesis, VII, 21, 27).
Por ser superior ao corpo, há independência da alma em relação a ele. “Pois, reconhecemos com admiração que a natureza da alma é tal que não sofre alteração pela modificação do corpo” (Livre arbítrio, III, 9, 28).
A alma é considerada, portanto, a essência da razão humana, por isso, lhe é atribuído o domínio do corpo, “é substância dotada de razão, apta a reger um corpo” (Potencialidade da alma, 13, 22).
Desse modo, a alma, por permitir ao homem raciocinar, o diferencia dos animais.
E, certamente, uma grande coisa é o homem, pois feito à imagem e semelhança de Deus! Não é grande coisa enquanto encarnado num corpo mortal, mas sim enquanto é superior aos animais pela excelência da alma racional (Doutrina Cristã, I, 22, 20).
A alma é, nesse sentido, a imagem do próprio Deus. Não há uma dependência entre ela e o corpo nem mesmo alguma relação com outros seres da natureza.
É evidente que nem tudo o que dentre as criaturas é semelhante a Deus pode-se denominar sua imagem, apenas o é a alma, à qual unicamente Deus lhe é superior. Só a alma é a expressão de Deus, pois natureza alguma se interpõe entre ela e ele (Trindade, XI, 5, 8).
Por ser considerado parte da natureza humana, o corpo deve ser cuidado, pois, com os fins dos tempos, com a ressurreição da carne, o corpo também irá para o céu. Por isso, deve estar afastado de tudo o que for corruptível e que não seja digno de sua condição celeste.
Não quero, ademais, perguntar por que não crêem possa o corpo terreno estar no céu, se a terra toda se apóia sobre o nada. Talvez seja argumento de não menor probabilidade o tomado do centro do mundo, no sentido de nele se encontrarem as coisas mais pesadas. [...] Desse modo tira à carne do homem a corrupção, dá-lhe a imortalidade, deixa-lhe a natureza, conserva-lhe a congruência da figura dos membros e suprime-lhe o retardamento do peso (Cidade de Deus, XIII, 18).
Por conseguinte, o homem possui matéria e forma, está em sua condição mortal, sujeito às necessidades fisiológicas do seu corpo e as ações do tempo. Definido como uma criatura mutável e racional, é capaz, porém, de abrigar a verdade em si – Deus. Que lhe garante o conhecimento do imutável e o encontro com a verdadeira felicidade.
Para Santo Agostinho, a alma deveria sobrepor-se ao corpo, entendido como a prisão da alma e fonte de todos os males, pois “o homem é uma alma que se serve de um corpo” (GILSON, 1995, p.228). Quando a alma se submetia ao corpo, ficava voltada para a matéria e não tinha força para sair do estado de decadência em que se encontra. O homem deveria, portanto, desvencilhar-se das coisas externas, voltando-se às espirituais, as quais vão propiciar a aproximação de Deus.
Mas para que falar de tudo isso, se agora não é o tempo de investigar, mas de me confessar a Vós? Era desgraçado, e desgraçada é toda alma presa pelo amor as coisas mortais. Despedaça-se quando as perde, e então sente a miséria que a torna miserável, ainda antes de as perder (Confissões, IV, 6, 11).
Santo Agostinho separa o corpo em corpóreo/carnal e espírito/alma. Porém, para o bispo de Hipona, a alma é mais importante, uma vez que ela se encontra mais próxima a Deus. “Aquelas nem sequer são as primeiras da criação. Com efeito, as vossas criaturas espirituais são superiores às corpóreas, ainda que estas se apresentem brilhantes e se movam no céu” (Confissões, III, 6, 10).
Assim, o corpo é apresentado com a necessidade de um controle permanente e vigilante, ao qual a pressão implacável do saeculum não permitia dar trégua (BROWN, 1990). O corpo padece e está fadado a padecer, pois, diferentemente da alma, está submetido aos ciclos naturais, às flutuações do desejo e aos perigos da corrupção. Em suma, enquanto a alma é pensada em termos positivos, o corpo era o inviabilizador do homem de conquistar uma contemplação divina da vida.
Que eu amo, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou mel, nem os membros tão flexíveis aos braços da carne. Nada disto amo, quando amo ao meu Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreie uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu Deus (Confissões, X, 6, 8).
Pode-se afirmar que, para Santo Agostinho, o conhecimento verdadeiro está em Deus, fonte única de conhecimento e de verdade. Assim, cabe ao homem desvencilhar-se da sua materialidade, que lhe proporciona falsos conhecimentos e se aproximar cada vez mais do conhecimento verdadeiro. Para que isso ocorra, este homem deveria estar preparado. No entendimento agostiniano, para se ‘descobrir a verdade’ o corpo deve estar submetido às vontades da alma, porque só assim o verdadeiro conhecimento pode ser alcançado."
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Fonte:
DHÊNIS ROSINA: “CORPO E EDUCAÇÃO: O DIÁLOGO ENTRE AS CONCEPÇÕES DE EPICURO, SÊNECA E SANTO AGOSTINHO”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá, como um dos requisitos para a obtenção do título de Mestre
Nota:
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
A Antropologia Agostiniana
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