Augusto Matraga: reconhecimento de um “mundo misturado”



“No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira.” Grande Sertão: Veredas

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O que chamamos aqui de segundo momento da novela tem início com o socorro dado pelo casal de pretos “que morava na boca do brejo” ao surrado e quase defunto nhô Augusto. Em meio à pobreza, simplicidade e humildade, o nosso personagem começará sua trajetória de renascimento, analisada por nós no segundo capítulo deste trabalho sob o ponto de vista mítico-estrutural.

Essa trajetória que agrega a Matraga novos valores pode representar também um início de novo senso de justiça e, por isso, um início de modernização democrática do sertão brasileiro, pensando aqui no momento histórico e político do país na época de publicação de
Sagarana.

Em
Grande Sertão
, também há esse sentido do moderno adentrando o sertão quando Zé Bebelo é julgado aos moldes da justiça formal. Em “A hora e vez”, certo é que não há um momento tão explícito e marcante que indique uma tentativa de aproximação do poder formal no interior brasileiro, mas podemos enxergar na mudança de ser de Matraga um reflexo desse moderno ou de um novo senso de justiça antes não existente nem para o personagem, nem para o povoado.

A trajetória de reconstrução do austero nhô Augusto aponta também para uma mudança de classe social: da “alta” para a miserável do brejo do casal de pretos. Sua posição, então, está enfraquecida, sem crédito para amizades, dinheiro ou política. Porém, como dissemos anteriormente, o sistema local não se enfraquece. Na sua fragilidade, nhô Augusto afasta-se para melhor pensar e se reencontrar, tendo de suportar todas as tentações do desejo de voltar a ser o velho guerreiro de respeito.

Joãozinho Bem-Bem aparece nesse ínterim como o representante da ordem local neste segundo momento. Sua caracterização é bem típica do valentão da tradição:

“... era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitibá à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatú; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.”
(p.348)

Matraga terá de ir contra aquilo que lhe era perfeitamente normal quando ocupava a posição de Coronel – já começamos a notar essa nova postura na recusa de fazer parte do bando de Bem-Bem, apesar de, em pensamento, imaginar-se integrante dele:

“_ Ôpa! Ôi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com as clavinas... E você outro, aí, mais este compadre de cara séria, p’ra voltearem... E este companheirinho chegador, para chegar na frente, e não dizer até-logo!... E depois chover sem chuva, com o pau escrevendo e lendo, e arma-de-fogo debulhando, e homem mudo gritando, e os do-lado-de-lá correndo e pedindo perdão!...”
(p.353)

Então, a luta interna vivida por Matraga durante sua regeneração gira em torno de opostos: tradição e nova ordem. Esta será seguida com mais afinco, principalmente após a visita do padre que, nesse segundo momento, assim como o leiloeiro no primeiro, figura como o poder formal. Claro que, em primeiro lugar, ele figuraria o fator religioso presente na novela, mas serão as suas diretrizes, firmadas no trabalho humilde e na luta contra a violência – regras bastante formais –, que Matraga terá como novo lema.

Aos poucos, lembrando aqui a estrutura mítico-religiosa da narrativa, o personagem passa a conceber o mundo e suas relações humanas de uma maneira diferente. Fábio de Souza Andrade diz que “o abrandamento da ótica costumeira em Matraga também passa por um questionamento ético que considera novas posições e resulta numa nova maneira de conceber o justo.”

A ordem local rege conforme Bem-Bem afirma: “morte que eu mando é só morte legal”, ou, pela ótica do costume, é morte “justa”, dentro da lei local. Como também é considerada justa a morte do velho em lugar do assassino de Juruminho – olhando de dentro não há nada mais “justo”. Justiça aqui passa pela violência e bravura necessariamente.

Já pela ótica formal, esse comportamento é recusado e reprovado. Para evitar a violência, o também dividido Riobaldo propõe a prisão para Zé Bebelo em Grande Sertão; nada mais formal do que o aprisionamento em lugar da morte pura – novas maneiras de compreender as relações humanas que soam de modo estranho aos ouvidos da ordem local.

Para Bem-Bem também lhe é estranha a reação de Matraga contra a justiça local a ser feita (um dos filhos do velho deveria morrer, substituindo a morte de Juruminho, e suas filhas serviriam de diversão para os homens de Bem-Bem):

“_ Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome da Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!”
(...)
_ Você está caçoando com a gente, mano velho?” (p.367)

A nova concepção de justiça adquirida por Matraga sobressai-se à tradição. Mas, esta nunca é subjugada ou descartada. Esse novo justo banha-se nas águas da tradição e da nova ordem; “no sertão, o bem é violento e Deus traz sempre o porrete nas mãos”92. O fator que mais evidencia a mistura dos opostos é o respeito mantido por Matraga em relação ao valente Bem-Bem mesmo indo contra sua atitude – Matraga vai contra a ordem, respeitando-a e reconhecendo sua importância.

“_ Pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!”
(p.370)

Assim como há a acomodação da religião e da violência na terceira fase de sua trajetória mítica, também há o convívio entre poder formal (sentido moderno- progressista vigente na época) e informal (Coronelismo e suas articulações sócio- políticas)."

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Fonte:
Ana Valeria Bezerra Costa: “O MITO EM “A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA”. (Tese de Pós-Graduação pela Universidade de São Paulo – USP). São Paulo, 2007.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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