“No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira.” Grande Sertão: Veredas
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O que chamamos aqui de segundo momento da novela tem início com o socorro dado pelo casal de pretos “que morava na boca do brejo” ao surrado e quase defunto nhô Augusto. Em meio à pobreza, simplicidade e humildade, o nosso personagem começará sua trajetória de renascimento, analisada por nós no segundo capítulo deste trabalho sob o ponto de vista mítico-estrutural.
Essa trajetória que agrega a Matraga novos valores pode representar também um início de novo senso de justiça e, por isso, um início de modernização democrática do sertão brasileiro, pensando aqui no momento histórico e político do país na época de publicação de Sagarana.
Em Grande Sertão
A trajetória de reconstrução do austero nhô Augusto aponta também para uma mudança de classe social: da “alta” para a miserável do brejo do casal de pretos. Sua posição, então, está enfraquecida, sem crédito para amizades, dinheiro ou política. Porém, como dissemos anteriormente, o sistema local não se enfraquece. Na sua fragilidade, nhô Augusto afasta-se para melhor pensar e se reencontrar, tendo de suportar todas as tentações do desejo de voltar a ser o velho guerreiro de respeito.
Joãozinho Bem-Bem aparece nesse ínterim como o representante da ordem local neste segundo momento. Sua caracterização é bem típica do valentão da tradição:
“... era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitibá à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatú; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.” (p.348)
Matraga terá de ir contra aquilo que lhe era perfeitamente normal quando ocupava a posição de Coronel – já começamos a notar essa nova postura na recusa de fazer parte do bando de Bem-Bem, apesar de, em pensamento, imaginar-se integrante dele:
“_ Ôpa! Ôi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com as clavinas... E você outro, aí, mais este compadre de cara séria, p’ra voltearem... E este companheirinho chegador, para chegar na frente, e não dizer até-logo!... E depois chover sem chuva, com o pau escrevendo e lendo, e arma-de-fogo debulhando, e homem mudo gritando, e os do-lado-de-lá correndo e pedindo perdão!...” (p.353)
Então, a luta interna vivida por Matraga durante sua regeneração gira em torno de opostos: tradição e nova ordem. Esta será seguida com mais afinco, principalmente após a visita do padre que, nesse segundo momento, assim como o leiloeiro no primeiro, figura como o poder formal. Claro que, em primeiro lugar, ele figuraria o fator religioso presente na novela, mas serão as suas diretrizes, firmadas no trabalho humilde e na luta contra a violência – regras bastante formais –, que Matraga terá como novo lema.
Aos poucos, lembrando aqui a estrutura mítico-religiosa da narrativa, o personagem passa a conceber o mundo e suas relações humanas de uma maneira diferente. Fábio de Souza Andrade diz que “o abrandamento da ótica costumeira em Matraga também passa por um questionamento ético que considera novas posições e resulta numa nova maneira de conceber o justo.”
A ordem local rege conforme Bem-Bem afirma: “morte que eu mando é só morte legal”, ou, pela ótica do costume, é morte “justa”, dentro da lei local. Como também é considerada justa a morte do velho em lugar do assassino de Juruminho – olhando de dentro não há nada mais “justo”. Justiça aqui passa pela violência e bravura necessariamente.
Já pela ótica formal, esse comportamento é recusado e reprovado. Para evitar a violência, o também dividido Riobaldo propõe a prisão para Zé Bebelo
Para Bem-Bem também lhe é estranha a reação de Matraga contra a justiça local a ser feita (um dos filhos do velho deveria morrer, substituindo a morte de Juruminho, e suas filhas serviriam de diversão para os homens de Bem-Bem):
“_ Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome da Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!”
(...)
_ Você está caçoando com a gente, mano velho?” (p.367)
A nova concepção de justiça adquirida por Matraga sobressai-se à tradição. Mas, esta nunca é subjugada ou descartada. Esse novo justo banha-se nas águas da tradição e da nova ordem; “no sertão, o bem é violento e Deus traz sempre o porrete nas mãos”92. O fator que mais evidencia a mistura dos opostos é o respeito mantido por Matraga em relação ao valente Bem-Bem mesmo indo contra sua atitude – Matraga vai contra a ordem, respeitando-a e reconhecendo sua importância.
“_ Pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!” (p.370)
Assim como há a acomodação da religião e da violência na terceira fase de sua trajetória mítica, também há o convívio entre poder formal (sentido moderno- progressista vigente na época) e informal (Coronelismo e suas articulações sócio- políticas)."
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Fonte:
Ana Valeria Bezerra Costa: “O MITO EM “A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA”. (Tese de Pós-Graduação pela Universidade de São Paulo – USP). São Paulo, 2007.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Augusto Matraga: reconhecimento de um “mundo misturado”
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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