O dinamismo da palavra em “Famigerado”



‘’Famigerado’’ conta um dia excepcional na vida de um Doutor farmacêutico que é procurado por Damázio Siqueira - um jagunço e homem simples- para esclarecer o significado de uma palavra:Famigerado. Essa palavra atormenta Damázio desde que ele escutou-a de um moço do governo. A questão central reside no sentido ‘’ideológico’’ da palavra, no momento em que ela foi pronunciada: mais do que forma e conteúdo, a intenção. Damázio quer saber se tal termo é ofensivo. Eis o problema: enquanto Damázio quer saber a intenção vital da palavra, o Doutor sabe, ao certo, que explicando o seu sentido visceral não aplacará a raiva mortal do jagunço. Ao mesmo tempo, o narrador não sabe a quem estará condenando, ou pondo em risco mortal:- se a ele mesmo, ou a alguém próximo. Em suma, o temor é ambivalente: ambos estão numa situação paradoxal, ou seja, o desconhecimento adequado das circunstâncias em sua integridade está ausente. Por outro lado, há também o respeito mútuo:-ambos são reconhecidos por uma ‘’fama’’ que causa prestígio-admiração e medo. O jagunço é temido por sua coragem, por sua força de enfrentar outros até a morte; o Doutor pela sua força no saber das palavras, dos signos orais que agradam e ferem. Portanto, esse é o núcleo do confronto:dois diferentes medos ansiando por um meio termo que só virá, dependendo do uso, ou do peso da palavra ‘’Famigerado’’. Muito do desejado equilíbrio-a salvação ou a paz-situa-se em uma versão criativa e libertária da palavra em questão.

O narrador de’’Famigerado’’anuncia logo no início do conto que o que está por vir trata-se de um evento:algo excepcional ocorreu em sua vida. O lugar é um arraial. À sua janela um grupo de cavaleiros, com destaque para um em especial, pára bem em frente. A descrição feita pelo Doutor do motivo desse singular cavaleiro é persuasiva:’’Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente(p.8).Esse o movimento, o ritmo descritivo de Damázio feito pelo Doutor. A princípio essa singela descrição serve para dar uma idéia do humor passional de Damázio naquele instante. Na seqüência, o narrador descreve com detalhes o impacto causado por esse bando de homens em torno de sua casa, todos a cavalo. Apenas para resumir o seu desconforto, pois está cercado, o Doutor enfatiza o caráter do cavaleiro chefe:’’(...)Só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe’’(idem). Era isso, sem dúvida. Porém, antes fosse um equívoco, ou um‘’sonho’’. Talvez parecesse menos real ou temeroso. A verdade é que o pânico apossa-se do homem de saber a tal ponto que ele emite essa declaração:’’Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo’’(idem).

O medo, eis a questão. O temor entrava, entreva. Sem saída, por enquanto, o Doutor tenta uma aproximação:- convida Damázio a desmontar e entrar. Não, mesmo. Eis a postura rítmica e constante de Damázio sobre o cavalo, irremovível:’’Via-se que passara a descansar na sela-decerto relaxava o corpo para dar-se a ingente tarefa de pensar’’.(p.9). O fluxo rítmico está caracterizado, em sua essência, desde os verbos no imperfeito ‘’Via-se, Passara’’, no infinitivo ‘’ Descansar’’, ao substantivo ‘’Sela’’, na primeira parte da frase, delimitado logo a seguir por o adjetivo ‘’Decerto’’ e outro sonoro verbo no imperfeito: ‘’relaxava’’. Essas palavras, constitutivas das diversas classes gramaticais, assinalam a seqüência rítmica de todo o período. Nesse curto fragmento, a correspondência sonora está presente nos vocábulos ‘’passara’’ e ‘’relaxava’’, ‘’descansar e pensar’’.Um dos pontos demarcadores do ritmo, ou da recorrência sonora das palavras, encontra-se visível especialmente pela presença dos fonemas ‘’S, ‘’C’’ ‘’D’’ e ‘’P’’.

Para quebrar o clima de desconfiança extrema, o Doutor indaga se é questão de remédios:- Não, nem isso nem doença ou consulta nessa área. Então, o que seria?: ‘’ Eu vim perguntar a vosmecê uma opinião sua explicada’’(p.9). Agora descartava-se para longe um acerto no nível específico da saúde medicinal. É algo mais universal, muito humano: uma dúvida. O não letrado jagunço veio de longe consultar uma fonte viva do saber. E algo, ou uma coisa fixa não deixa o Doutor quieto: o jeito de valentão do jagunço, um ‘’estranhão, perverso brusco’’(p.9). Essa palavra, ‘’estranhão’’, outro neologismo tomado, ou determinado pela linguagem estabelecida, indica alguém de fora, misterioso ou singular. De fato, o cavaleiro vem de um lugar indefinido, a princípio: a Serra. Seria uma região mítica e histórica, assim também o Jagunço Damázio personificaria uma lenda. Na verdade, ou na narrativa, o lendário aproxima-se a passos largos do real: aquele que vem da Serra, o desconhecido, apresenta-se em ‘’carne viva’’ao Doutor. Eis a reação deste após o jagunço falar quem é:’’O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo’’(p.9). Em suma, o singular e real perigo, a cavalo, veio a porta do saber, que agora não mais desconhece semelhante fenômeno. Esse estranhão está a sua frente: ’’Ali, antenasal, de mim a palmo!’’(ibid). Antenasal: esse neologismo diz que um pouco mais os dois estarão nariz a nariz, face a face.E também:’’de mim a palmo’’, ao invés da ordem hierárquica ‘’natural’’ :’’a um palmo de mim. Essa inversão sintática assinala a urgência do perigo agonístico extremo, isto é, naquele momento há uma real possibilidade de morte.

Damázio desmonta mas não aceita o café. Com seus ínvios olhos, armado e já um pouco tranqüilo anuncia a questão na íntegra:

Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso...Saiba que eu estou com ele à revelia...Cá eu não quero questão com o governo, não estou em saúde nem idade...O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado...’’(p.10). Bem, ainda falta algo nuclear. ‘’Cabismeditado’’, com seu orgulho flamejante, com sua vergonha ainda sublimada, após mais um rodeio estratégico, digno de figurar no livro dos enigmas, Damázio retomou o centro:’’Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o q
ue é mesmo que é Fasmigerado...faz-me- gerado...falmisgeraldo...familhas-gerado...? (Grifo meu, p.10).

O narrador ouviu nítido, e também ficou ‘’Cabismeditado’’ (Neologismo que significa pensar de cabeça baixa). Porém recompôs-se rápido a ponto de notar algo como o riso seco aliado a uma rudez primitiva. Damázio quer que lhe ensinem à sua maneira?Ou está testando seu oponente a sangue frio, mesmo que seja de soslaio? . Sim, de maneira ‘’moderada’’ e firme, o cavaleiro cede o de quase sempre, e espera o quanto pode. Essa a essência da questão, esse mais um duelo extremo. O cosmo do saber treme pois “alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa aquele homem’’(p10). Poderia ser isso, mas pra variar é aquilo: dois mundos complementares e adversos vão se enfrentar. E não há retorno, os dados foram lançados mais uma vez. A atitude do homem de saber chama essa inquisição de vexatória satisfação. Seja qual for o motivo maior, esse face a face momentâneo pode ser fatal. Eis a reação do Doutor: “Se sério, se era. Transiu-se-me’’(p.10). Esse gaguejar, essa inversão sintática revelam o medo, e ele é um sinal translúcido de que o sistema do saber está em perigo; um sempre duplo ‘’se’’ percorre a frase. Na seqüência, de novo, ele surge cintilante(ou sombrio) e atravessa o espelho, ou o corpo de um mundo caótico porém não mais inocente. Sério demais, em excesso, o descontrole total está próximo. O transido pegou o Doutor. O frio da febre invadiu todo o seu universo.

Damázio insiste:’’(...)o que é o que é, o que já lhe perguntei?’’(p.11).
– Famigerado? . Ao redor não vem ajuda. O esforço da Ciência não conta sequer com os companheiros do jagunço: os outros três não estão ali para traí-lo, mesmo que a tentação seja latente. Eis a palavra para expressar o seu silêncio cúmplice, por pressão ou impotência: Mumumudos. Ë repetitiva ou onomatopéica, mas digamos que seja recriação neológica. Mais: o medo está entre eles o tempo inteiro, porém espera-se que cheguem ao alívio na seqüência. Alívio através de um ‘’exato’’ acordo. A explicação da palavra vem sob pressão e atravessa o corpo exposto do Doutor:’’Inóxio, Célebre, Notório, Notável’’. Em suma: ”Magnífico”. Damázio ainda não apreende. Seria desaforado, zombeteiro ou farsante esse termo? Uma ofensa? O cosmo do saber informa mais:são termos indefiníveis ou neutros. Não basta. O cavaleiro quer mais:em código popular, em linguagem direta. Enfim vem a solução do caso,ou enigma-:Famigerado é importante, louvado ou de respeito. Agora a questão está fluente, prestes a correr rio afora. Apenas para resumir eis a ‘’última’’ fala do homem de saber’’(...)o que eu queria uma hora destas era ser famigerado-bem famigerado, o mais que pudesse!...’’(p.11 ) O outro lado absorve toda a frase:’’Ah, bem!...’’(ibid). Revela seu alívio,ou sua exultação.

Mais um exemplo de ritmo conciso vem logo a seguir, quando Damázio volta a seu cavalo: "
Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu’’(p.11). Do verbo no imperfeito’’subiu’’ao pronome ‘’si’’, entrecortado por outro verbo no imperfeito seguido de pronome pessoal-desagravava-se-, e logo após complementado de preposição e substantivo neologizado-‘’num desafogarëu’’-temos um fluxo de palavras das diversas classes gramaticais que formam o que denominamos de sintaxe poética devidamente ritmada.As aliterações demarcadoras do ritmo estão presentes ao longo da frase com destaque para os fonemas ‘’S’’ “V” e ‘’G’’.

Eis a questão ao longe, ou no final. O cavaleiro-Damião ou damázio - antes de partir e libertar também seus companheiros aproxima-se da janela e aceita um copo dàgua. Suas últimas palavras são incisivas:’’não há como que as grandezas machas de uma pessoa instruída’’(p.12). Essa afirmação do cavaleiro mítico-lendário é irônica não apenas levando-se em conta a situação, mas igualmente a etimologia mítica de seu nome original ou derivado: ‘’Damião , do grego, significa ‘’domador ‘’ou ‘’vencedor’’. Por derivação, Damázio. A questão agora é que ele anima-se e continua a comemorar, ou, ao que parece, a insistir em uma certeza em suspenso:’’A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças...’’(ibid). Após agradecer ao Doutor e partir em seu alazão, fica no ar uma indagação ou última tese:quem afinal venceu o combate? Damázio ou o Doutor? ou se adaptar-mos, o lendário Cosme do arraial -originado do étimo grego (Kosmos e kosmas):universo belo, ou harmonia adornada. Enfim, qual dessas duas raízes ancestrais predominou? Ou será que esses dois Irmãos de complementares e antagônicas áreas da vida chegaram a um justo acordo? Do ângulo do narrador essa última dúvida seria uma teoria para alto rir. Por qual razão? Talvez por que o Doutor represente aqui a outra face histórico-mítica de Cosme, e Damázio a de Damião, que na versão secular, após prestarem serviços médicos por prática de caridade, no fim de suas carreiras foram perseguidos e trucidados. Portanto existe aqui um paradoxo, ou seja, o significado terminal quanto a um vencedor maior é ambivalente e expansivo. Para nós, essa questão, se observada de um ângulo apenas conduz a um mar de navegadores onde o horizonte está sempre azul e a espreita. Em síntese, os dois lutadores salvam-se. Quem foi mais hábil ou esgrimiu melhor, importará tanto, se cada um alcançou por seus métodos peculiares o que desejava?"

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Fonte:
Wallas Ferdinando Ramos Bezerra: “O DINAMISMO DA LINGUAGEM EM ALGUNS CONTOS DE PRIMEIRAS ESTÓRIAS”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFCG, para atender a um dos pré-requisitos para a obtenção do grau de Mestre em Linguagem em Ensino. Orientadora: Profa Dra. Maria Marta dos Santos Silva Nóbrega). Campina Grande- PB, 2007.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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