Boal e Suassuna: um falso paralelo



A figura de Manuel Carpinteiro, bem como a dos outros personagens sobrenaturais, tem um certo ar de família para alguém acostumado à história do teatro brasileiro. Ela parece se aproximar muito do Curinga, elemento do sistema criado por Augusto Boal para o Teatro de Arena. É o que sugere Silviano Santiago, no seu comentário ao entremez O homem da vaca e o poder da fortuna:

Neste entremez estamos bem próximos da teoria a ser exposta posteriormente por Augusto Boal nos espetáculos do Teatro de Arena, de São Paulo, quando propôs e botou em prática a concepção do ator como um curinga. No pôquer, como sabemos, esta carta muda de valor segundo a combinação que o jogador tem nas mãos. Aqui, os atores vão mudando de personagem de acordo com o drama que toma conta da cena.

Idelette F. dos Santos concorda inicialmente com essa posição, mas já estabelecendo certa distância: “sem falar de preeminência ou de influência, pode-se constatar aqui um paralelismo das pesquisas e das soluções encontradas para problemas idênticos”. Há, de fato, certa proximidade entre as opções estéticas de Boal e as de Suassuna. De perto, porém, revelam-se mais disparidades do que concordâncias.

O personagem-narrador de Ariano Suassuna, presente em várias de suas peças, é, como o Curinga, um personagem múltiplo, onisciente e criador de um ambiente mágico. Polivalente, no teatro de Boal ele pode desempenhar qualquer papel. Temos, já aqui, uma diferença, posto que o teatro de Ariano Suassuna não comporta a mesma elasticidade. Se no entremez
O homem da vaca e o poder da fortuna apenas cinco atores davam conta de todos os papéis, na Farsa da boa preguiça – assim como na maior parte das peças do dramaturgo paraibano – há quase coincidência entre o número de atores e o número de papéis (exceção feita aos “disfarces”, que não chegam a constituir rigorosamente outro personagem). Se para ambos dramaturgos o personagem-narrador é onisciente, em Ariano Suassuna ele não partilha essa onisciência com outros personagens, sendo esta faculdade restrita a um ou poucos papéis. Embora tenha em ambos dramaturgos a função teatralista, criadora da realidade mágica em que se inserem, Suassuna não apresenta “seu” Curinga como criador do personagem que ele assume, característica do teatro de Boal, como destaca Anatol Rosenfeld:

O Curinga não é o historiador que conhece as personalidades históricas de fora; representa o autor de uma obra fictícia (embora baseada em dados históricos) e como tal transforma as pessoas históricas reais em personagens de quem conhece os segredos mais íntimos, já que são suas criações.

Em suma, se há algum paralelismo entre os dois, ele consiste no tipo de solução que ambos encontram para problemas parecidos, problemas que irão da questão econômica – Idelette F. dos Santos falará com justeza de um “teatro do pobre” – à incorporação de elementos próprios à cultura brasileira.

Diferentemente de Boal, Suassuna não constrói um
sistema, não escreve uma teoria do teatro, embora sua concepção estética seja explicitada num movimento, o Armorial. Coerente com ele, o retorno às raízes medievais é essencial para a estética teatral de Suassuna, aportando-lhe muitos traços épicos que, no teatro medieval, se justificam pela inclinação a misturar estilos. Paralelamente, as manifestações populares nordestinas – caras ao armorial – que estão na base da Farsa da boa preguiça (em especial o cordel, o mamulengo e o bumba-meu-boi), são também elas emprenhadas da tradição medieval, reforçando assim os elementos épico-narrativos do teatro armorial de Suassuna. Tanto por sua matriz erudita quanto por sua matriz popular, enfim, o teatro de Ariano Suassuna sofre a influência da estrutura épico-narrativa própria da Idade Média. De modo mais específico, na peça de Suassuna a estrutura épica está diretamente relacionada ao seu caráter moralizador, no que ele se vincula de modo mais sensível às moralidades, às farsas e às sátiras do que aos mistérios e autos. É daí que seu teatro se nutre, num desenvolvimento paralelo ao do sistema de Boal."

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Fonte:
Roberto Mesquita Ribeiro S.I.: “ENTRE ÉTICA E ESTÉTICA O PROCESSO MIMÉTICO DA FARSA DA BOA PREGUIÇA”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba para a obtenção do título de Mestre em Letras Área de concentração: Literatura e Cultura Linha de pesquisa: Leituras do texto literário Orientador: Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo). João Pessoa, 2007.

Nota
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