Calvino: a maturação da doutrina da graça comum



“Assim como Agostinho, Calvino viveu um período de profundas transformações por conta do humanismo renascentista, como pode ser observado a partir das afirmações de R. G. Clouse:

Durante a Idade Média, pouca atenção foi prestada ao humanismo, mas com o início da Renascença, houve um reavivamento daquela perspectiva. O humanismo renascentista era não somente uma cosmovisão como
também um m todo. Ele foi descrito como ―a descoberta que o homem fez de si mesmo e do mundo. O valor da existência terrena em si mesma foi aceito, e o não- mundanismo do cristianismo medieval foi criticado. Os humanistam acreditavam que a promoção da vida secular não somente era apropriada como também até mesmo meritória. Em estreita aliança com esse novo conceito de vida terrena havia uma devoção à natureza e à sua beleza como parte de um conceito religioso mais amplo. Apesar disso, o humanismo renascentista deve ser examinado de outro ponto de vista. Os que se envolviam no movimento dedicavam-se às studia humanitatis, às artes liberais, incluindo história, crítica literária, gramática, poesia, filologia e retórica. Essas matérias eram ensinadas com base nos textos clássicos do período grego-romano e visavam ajudar os estudantes a compreenderem outras pessoas e a lidarem com elas. Além disso, os humanistas davam muito valor aos artefatos e manuscritos antigos, e procuravam reavivar estilos clássicos de vida.

Por conta da quebra de paradigmas de vida segundo o escolasticismo da igreja medieval associada à Reforma Protestante já iniciada por Martinho Lutero (1483
1546) pode-se entender que o contexto no qual João Calvino nasceu e viveu sua juventude fora uma época de intensas mudanças sociais.

Apesar de nascer em um lar simplório, João Calvino contou com um pai interessado em que tivesse uma educação de qualidade. Por conta disso, estudou em prestigiadas instituições de ensino de sua época como o Collège de la Marche e o Collège de Montaigu. A princípio Calvino foi direcionado para a carreira eclesiástica, mas essa trajetória tomou um novo rumo por um desentendimento de seu pai com os clérigos de Noyon. Calvino foi mandado então para a conceituada universidade de Orléans na qual se formou bacharel em direito em 1531.

Nos anos seguintes à sua formatura como advogado se deu a conversão do catolicismo à fé protestante. As circunstâncias não são claras a respeito desse momento de sua vida, mas Hermisten Costa elenca duas declarações do próprio Calvino que mais se aproximam da descrição desse evento.

A primeira declaração pode ser encontrada na
Resposta ao Cardeal Sadoleto, na qual Calvino discute a conversão à fé evangélica usando a si mesmo como exemplo:

E eu, ofendido por essa novidade, nem sequer quis dar-lhe ouvidos; confesso que primeiramente a combati com violência e intrepidez. E porque os homens são por natureza obstinados e teimosos na manutenção das instituições recebidas, por isso me incomodava muito confessar que por toda a vida me criei no erro e na ignorância.

A segunda declaração pode ser lida na introdução que Calvino faz ao estudo dos Salmos:

Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado às superstições do papado, para que pudesse desvencilhar-me com facilidade de tão profundo abismo de lama, Deus, por um ato súbito de conversão, subjugou e trouxe minha mente a uma disposição suscetível, a qual era mais empedernida em tais matérias do que se poderia esperar de mim naquele primeiro período de minha vida.

Calvino enxerga sua conversão como uma transposição do abismo e da lama.

Calvino e Agostinho
Como fruto de uma mente humanista, Calvino procurou se aproximar de Agostinho em detrimento a tradição tomista da Igreja Católica. O próprio João Calvino admitiu a dependência de seus escritos e pensamentos para os de Agostinho de Hipona, como afirma Alister MacGrath:

Embora a principal preocupação de Calvino fosse a interpretação das Escrituras, sua leitura desse texto era informada e enriquecida pela tradição cristã. Ele não hesitava em desenvolver a tese que havia, originalmente, defendido na Disputa de Lausanne
a tese de que a Reforma representava a restauração dos autênticos ensinamentos da Igreja primitiva, com a eliminação das distorções e das adições ilegítimas do período medieval. Sobretudo, Calvino considerava seu pensamento como uma exposição fiel das principais idéias de Agostinho de Hipona: ―Agostinho totalmente nosso!

O entusiasmo de Calvino por Agostinho não era irrefletido, muito pelo contrário. Um exemplo, como afirma Hoekema, apesar de Calvino concordar com os argumentos de Agostinho em a relação do cristão com a cultura, ele não estava plenamente satisfeito com a resposta sobre as virtudes inatas.

As proposições de Calvino que apóiam a Doutrina da Graça Comum

Através de alguns posicionamentos adotados por Calvino principalmente sobre a natureza humana e as formas de atuação do Espírito Santo, podemos constatar o ensinamento sobre o que viria a ser chamado pela Teologia Reformada posterior de doutrina da
―graça comum. Principalmente nas páginas de sua obra Institutas da Religião Cristã, Calvino expressa de maneira esses conceitos como veremos a seguir.

Calvino crê na existência de uma graça não salvadora
Calvino entende que pode existir uma manifestação da graça de Deus de uma maneira não salvadora. ―Temos então que admitir que a corrupção universal da qual falamos, dá algum lugar para a graça de Deus; não para consertar a perversão natural, mas para reprimi-la e restringi-la interiormente. Ou seja, o conceito de ―graça não meramente soteriológico mas pode e deve ser usado para outras ações de Deus na humanidade como um todo tendo como exemplo a restrição de pecados. A Depravação Total ou inabilidade total afetou o ser humano como um todo mas não ao ponto de impedir que Deus ainda demonstre sua graça.

Calvino professar existir um conhecimento universal
Calvino admite também um ―conhecimento universal fruto da graça de Deus que capacita todo ser humano a utilizar seu entendimento e razão para, por exemplo, o exercício das artes:

Seguem-se as artes tanto as mecânicas como as liberais. Como em nós reside alguma aptidão para aprendê-las vê-se então que o entendimento humano possui alguma virtude.
[…] Estes exemplos claramente demonstram que existe certo conhecimento universal do entendimento e da razão, naturalmente impresso em todos os homens; conhecimento tão universal, que cada um em particular deve reconhecê-lo como uma graça especial de Deus.

Toda a verdade procede de Deus
afirmou Calvino em consonância com Agostinho. No caso dos réprobos a demonstração da verdade através de suas obras é resultado da manifestação exterior do Espírito Santo em suas vidas. Negar este fato é injúria ao Espírito:

Quando lemos escritores pagãos vemos neles aquela admirável luz da verdade que resplandece em seus escritos, eles nos devem servir como testemunho de que o entendimento humano, por mais que seja caído e degenerado de sua integridade e perfeição, sem dúvida não deixa de estar ainda adornado e enriquecido com excelentes dons de Deus. Se reconhecemos no Espírito Santo a única fonte de manancial da verdade não menosprezaremos a verdade donde quer que saia, a não ser que queiramos fazer uma injúria ao Espírito de Deus. Porque os dons do Espírito não podem ser menosprezados sem que ele mesmo seja
menosprezado.

O Espírito Santo é que promove a revelação de certas verdade na consciência do ser humano a despeito de seu estado de depravação.

Calvino e as excelentes virtudes dos ímpios
O Espírito Santo somente habita os eleitos. Entretanto, capacita os ímpios de virtudes:

Se alguém perguntar: o que o Espírito Santo tem a ver com os ímpios que estão tão longe de Deus? Respondo que ao dizer que o Espírito de Deus reside unicamente nos fiéis, temos que entender tratarmos de santificação pela qual somos consagrados a Deus como seus templos. Mas, entretanto, Deus não cessa de encher, vivificar e mover com a virtude desse mesmo Espírito todas as criaturas.

Essa atuação de Deus é fruto de sua bondade, admite Calvino. Todos os
seres humanos experimentam da benevolência de Deus: ―A benevolência divina se estende a todos os homens. E se não um sequer sem a experiência de participar da benevolência divina, quanto mais aquela benevolência que os piedosos experimentarão e que esperam nela!

Calvino chama os feitos proveitosos do homem natural de ―imagens de virtudes. Tanto estas como a própria providência, Deus derrama sobre todos os
homens indistintamente:

Em primeiro lugar, não nego que sejam dons de Deus todas as virtudes e excelentes qualidades que são vistas nos
infiéis. […] Pois existe tamanha diferença entre o justo e o injusto que ela aparece mesmo em seus retratos. Porque, se confundirmos essas coisas, que ordem restará no mundo? Por isso não o Senhor gravou a distinção entre atos honrados e ímpios na mente dos próprios homens, mas também a confirma muitas vezes pelo dispensar de sua providência. Pois vemos que concede muitas bênçãos da vida presente sobre aqueles que cultivam virtudes entre os homens. […] Todas essas virtudes – ou melhor, imagens de virtudes são dons de Deus, visto que nada é de algum modo louvável que não venha dele.

Tudo o que pode ser considerado como bom procede de Deus
conforme escreveu Calvino mesmo que o exercício dessas virtudes seja por parte de infiéis.

Na opinião de John Macarthur, Calvino teria aprendido a partir da apreciação que o apóstolo Paulo tinha dos escritores pagãos, à entender a relação do cristianismo com a cultura:

O que deve ser observado em relação à citação de Paulo [At 17.28]
e à citação de Calvino da citação de Paulo é que ele havia lido amplamente os poetas pagãos e não tinha objeções em citá-los. Além disso, Calvino havia lido sobre o uso do apóstolo Paulo dos autores pagãos e considerava isto como um texto importante referente à teologia em geral e ao conhecimento cultural em particular,[…]. Que característica Paulo, Lutero e Calvino compartilhavam? O desejo de ler e pensar com discernimento. Eles concordavam com tudo o que liam e ouviam? Claro que não, mas chegaram a uma concordância ou discordância por intermédio de cuidadosa análise e de raciocínio crítico baseado nos textos bíblicos. […] É muito fácil enxergar esse processo nas obras de Calvino. Praticamente todas as páginas de suas Institutas e da maioria de seus outros trabalhos estão repletas de citações e alusões a obras pagãs. E elas são inevitavelmente comparadas às Escrituras. A maioria dos pagãos a interpreta equivocadamente na maior parte do tempo, mas alguns deles de vez em quando fazem observações corretas a respeito dela. Esse princípio conhecido como a doutrina da graça comum, tem como principal fonte escrita o trecho de Romanos 1.19,20.

Macarthur traz uma importante contribuição quando verifica que a fonte original da verdade é a revelação de Deus e quando pagãos escreveram a cerca da verdade eles vieram ao encontro da verdade divina e não o contrário.

Calvino e a providência de Deus
A riqueza da bondade de Deus também atinge toda a natureza. Por causa disso foi que Calvino disse que Deus dá fertilidade e desenvolvimento terra=. Por detrás desse cuidado de Deus está, contudo, um cuidado com o próprio ser humano para com o qual zela a fim de que ele tenha a ―subsistência diária=- Por isso, segundo ele ―não existe parte alguma da terra negligenciada por Deus, e que as riquezas de sua liberalidade se estendem por todo o mundo.

O entendimento de Calvino sobre o tema ―providência de Deus pode ser
apreendido principalmente em sua obra Contra os Libertinos (1545) na qual desmembra a Providência de Deus em três categorias diferentes. A primeira delas é chamada de providência universal (providence universelle ou operation universsele) e por ela que ― [Deus] guia todas as criaturas de acordo com as condições e propriedades que ele mesmo deu a cada uma delas quando as fez. A segunda categoria é chamada por Calvino de providência especial e trata do cuidado e envolvimento de Deus com toda a humanidade e comp e os ―atos de Deus pelos quais ajuda seus servos, pune os ímpios e testa a paciências de seus fi is ou os castiga paternalmente A terceira categoria é a providência sobre os crentes, a qual leva em conta os efeitos noéticos do pecado e a incapacidade humana de praticar qualquer bem. Então, por essa providência Deus trabalha em nós tanto o querer quanto o realizar (Fp 2.13); nos ilumina com seu conhecimento, nos atrai para si, cria em nós um novo coração, quebra-nos a dureza, nos inspira a orar, nos dá graça e força para resistir a todas as tentações de Satanás e nos faz andar em seus mandamentos.

Pelas considerações feitas por Calvino, o cristão deve entender o mundo criado, mesmo destituído de seu estado de santidade original, como sendo lugar da manifestação da providência e governo de Deus. Deus, de uma forma indistinta, continua a atuar nos seres humanos concedendo a eles graças universais como a capacidade de exercitar excelentes virtudes. Por cause disso, o cristão não deve rejeitar
a priori todos os frutos provenientes da cultura humana.

Calvino e a Graça Comum: Refutando Objeções
Embora Calvino tenha sido o primeiro grande expoente da idealização da doutrina da graça comum como já foi explanado o termo ―graça comum propriamente dito não teve origem nas páginas de seus escritos. Por conta desse e outros motivos que serão explanados a seguir é que alguns entendem que não é possível encontrar elementos para defender o axioma de que foi em Calvino que de fato se originou a sistematização da doutrina da graça comum.

John H. Leith, entende que a discussão de Graça Comum em Calvino é uma preocupação moderna e, portanto, tentar entendê-la a partir dos escritos de
Calvino um tanto quanto anacrônica: ―Calvino não estava interessado nisso – escreveu Leith.

Leith parece estar equivocado quanto a sua afirmação. Além do que já foi exposto anterio
rmente sobre Calvino ver nos escritores pagãos uma ―admirável luz da verdade, ele mostrou seu interesse sobre a necessidade de um estudo sobre a relação do cristão com a cultura ao confrontar, por exemplo, os anabatistas. Criam estes que não poderiam aproveitar cousa alguma desse mundo por ser ele mau e então o rejeitavam por completo, inclusive toda a forma de governo ímpio. Calvino, os chama de sectários e escreve um capítulo exclusivo de sua obra Tratado Contra os Anabatistas para ensinar a respeito de como o cristão deveria se sujeitar às autoridades. Por outro lado, Calvino ensinou também que o aproveitamento da cultura não deveria ser sem escrúpulos conforme defendiam os libertinos de Genebra.

O artigo escrito por Leith faz parte de uma obra maior chamada,
John Calvin & the Church: A Prism of Reform. Nessa mesma obra, Alexander McKelway escreve outro artigo intitulado The Importance of Calvin Studies for Church and College no qual não somente localiza a doutrina da graça comum em Calvino, mas também atribui a isso certo valor: ―A partir da doutrina de Graça Comum em Calvino podemos descobrir um respeito teológico pelo conhecimento científico– escreveu ele.

É bastante atual, portanto, para Calvino, o diálogo sobre o relacionamento que os cristãos deveriam ter com a cultura quer para aceitá-la, quer para rejeitá-la. A percepção de Calvino é sempre guiada pelo seu senso de graça comum. Outra objeção apontada por alguns e elencada em páginas anteriores desse estudo foi o fato de a doutrina da graça comum não poder conviver junto com a crença da depravação total. No próximo capítulo, trataremos desse caso em particular."

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Fonte:
FERNANDO DE ALMEIDA: "CALVINO E CULTURA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-TEOLÓGICA SOB A PERSPECTIVA DA DOUTRINA DA GRAÇA COMUM". (Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. Orientador: Drº Paulo Rodrigues Romeiro). São Paulo, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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