A cultura popular e os ideais estéticos de Suassuna



“Conforme enfatizamos, o conceito de “cultura popular” formulado por Ariano Suassuna reporta ao ideal romântico, na medida em que pretende encontrar nas “tradições” o substrato de uma “autêntica” cultura nacional. Desta forma, percebemos que na visão do autor, a noção de cultura popular está intimamente vinculada à questão da nacionalidade. Entretanto, algumas das particularidades do seu propósito estético suscitam polêmicas entre os críticos.

Para Silviano Santiago (1974, p. XIV), o nativismo de Suassuna encontra-se em um patamar de equilíbrio com relação às demais produções de cunho nacionalista, não sendo, portanto, nem tão estreito como o dos que pregam um ufanismo de portas fechadas, nem tão aberto como o dos que professam uma constante dívida, na construção do brasileiro, ao alienígena. Assim sendo, verifica-se que tanto seu romance quanto as demais obras do referido autor propõem enquadrar o brasileiro no imaginário ibérico-sertanejo de nossa cultura. Eis o momento em que se sobressai o papel da cultura popular em seu projeto artístico.

Em virtude da tentativa de plasmar a identidade nacional através dos moldes oriundos das “raízes populares”, Suassuna resgata em seu fazer estético os elementos provenientes do folclore, da literatura de cordel e de toda tradição oral. Para o escritor, a arte popular brasileira era discriminada tanto pelos meios acadêmicos quanto pelos partidários esquerdistas. De acordo com Suassuna, os meios oficiais e acadêmicos marginalizavam a cultura popular “porque nela estavam presentes os elementos negros e vermelhos da cultura brasileira” (apud DIDIER, 2000, p. 40). Os “sectários” de esquerda, por sua vez, eram criticados pelo escritor por causa do interesse que tinham em limitar a liberdade de criação dos artistas populares, buscando enquadrá-la em modelos preestabelecidos.

Em torno destas circunstâncias, Suassuna sugere um caminho para a arte e a literatura brasileira: o da integração cultural. Deste modo, o autor pretende trilhar este caminho a princípio, buscando e desenhando aquilo que seriam as “tradições populares brasileiras” para, em seguida, uni-las com os elementos eruditos. Cabe ressaltar que mesmo inspirando-se nas “raízes tradicionais”, Suassuna pretende construir uma arte universal, que, concomitantemente, retrate o microcosmo da realidade cultural luso-brasileira e da América Latina. A respeito desta colocação, Santiago enfatiza que:

Essa seria uma das diferenças básicas entre a obra de Suassuna e a dos outros romancistas do Nordeste, pois em Suassuna não existe a intenção de se fazer um levantamento artístico-sociológico da região nordestina, dentro dos moldes da escola naturalista, mas antes busca ele uma recriação poética do Nordeste através dos textos do romanceiro popular, graças aos folhetos da literatura de cordel.
(1974, p. XIV).

Segundo as ponderações de Santiago, o intento de Suassuna em recriar poeticamente o Nordeste, conferindo-lhe uma dimensão universal que transgrida a mera representação “realista” da região nordestina, constitui-se como fator diferencial entre o autor paraibano e os demais escritores regionalistas emergentes após o manifesto pronunciado por Gilberto Freyre, no ano de 1926. Nesta declaração, Freyre (1976, p. 52) revela o surgimento de um grupo de intelectuais que se esforçam para promover a reabilitação de valores regionais e tradicionais das regiões brasileiras, sobretudo a do Nordeste. Posicionando-se contra a política republicana, em função do seu caráter separatista, o movimento regionalista propõe a instauração de

um novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os Estados, se complementem e se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira organização nacional. Pois são os modos de ser – os caracterizados brasileiros por suas formas regionais de expressão – que pedem estudos ou indagações dentro de um critério de inter-relação que, ao mesmo tempo que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano norte-rio-grandense, piauiense e até maranhense, ou alagoano ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano
(FREYRE, 1976, p. 55).

Como é possível notar, os regionalistas pretendem a inspiração de uma nova organização social, na qual as regiões – mais importantes que o Estado – logrem se complementar e se articular de modo ativo, configurando um novo “sistema”, capaz de atender de modo mais preciso as necessidades políticas econômicas e culturais do Brasil. Tangenciando esta proposta freyreana, está a tentativa de se livrar a nação das “estrangeirices” que lhe têm sido impostas (FREYRE, p. 55). Embora reconheça a importância deste movimento para a valorização da cultura popular do Nordeste e apesar de compartilhar, em termos, com o pensamento regionalista de 30, Suassuna deles se afasta com relação ao modo pelo qual aborda a realidade nordestina:

Eles – os romancistas de 30 – são naturalistas. Eu não gosto de literatura psicológica, intimista neo-naturalista. Eu prefiro a tragédia e a comédia que são formas puras ao drama, que é a parte psicológica, mais burguesa mais intimista. Eu prefiro os extremos: as formas mais aristocráticas ou as mais populares
. (apud FARIAS, p 62).

Em geral, os romances regionalistas tendem a produzir um retrato pretensamente objetivo da realidade nordestina, inserindo na estrutura romanesca elementos históricos e sociais, com o fim de conferir maior verossimilhança à obra. Suassuna, por sua vez, opõe à tendência neonaturalista do movimento regionalista o “espírito mágico” e épico dos folhetos populares e as formas barrocas da arte ibérica. Às formas burguesas, intimistas e psicológicas do drama, que apontariam, segundo Suassuna, uma certa disposição do romance regional idealizado inicialmente por Freyre, contrapõe a tragédia e a comédia, concebidas por ele como modalidades “puras” de arte por representar, respectivamente, a expressão mais aristocrática e a mais popular.

Quando, em seu discurso, Suassuna reitera “eu prefiro os extremos”, constatamos que a sua concepção de arte e literatura brasileira é formulada a partir de uma perspectiva dicotômica, dentro da qual cosmopolitismo versus regionalismo, tradicional versus vanguarda, recriação poética versus tendência neonaturalista, popular e aristocrático versus formas intimistas e burguesas instauram-se como pilares que sustentam o seu ideário. A reverência às formas aristocráticas e populares, edificadas à luz da “unificação cultural” e do enfoque “mágico”, implica em uma exaltação dos valores artesanais do mundo rural sertanejo e da cultura popular, considerados pelo autor como expressões mais “puras” da cultura brasileira, em contraposição aos valores industriais e burgueses dos centros capitalistas hegemônicos.

A concepção de cultura popular como “autenticidade” que se opõe aos valores da civilização industrial é defendida por Suassuna de maneira explícita em vários artigos. No artigo “A arte popular no Brasil” (1969), o escritor explicita que a

cultura popular é feita pelo povo, pelo ‘quarto estado' [...]. É o conjunto dos espetáculos como o ‘bumba-meu-boi’, dos versos do Romanceiro, dos contos orais, das xilogravuras das capas dos folhetos, das esculturas em barro queimado, das talhas, dos ornatos, das bandeiras e dos estandartes – enfim, de tudo o que o Povo cria para viver ou para se deleitar e que, tendo sido criado à margem da civilização européia e industrial, é por isso mesmo mais peculiar e singular
. (apud FARIAS, 2006, p. 64).

Neste sentido, observamos que, ao se contrapor à sociedade industrial capitalista e, conseqüentemente, ao imperialismo, o escritor paraibano nega com veemência as influências estrangeiras que dizia estarem presentes nos movimentos artísticos de vanguarda brasileira. Esta é, pois, uma das posições polêmicas do pensamento estético de Suassuna. Maria Thereza Didier (2000, p. 44) aponta a presença de artigos publicados pelo Jornal do Commercio em que a postura defendida pelo escritor é em si contraditória. Em um dos textos, datado do dia 29 de dezembro de 1974, observa-se o paradoxo expresso entre as posições teóricas de Suassuna e a sua prática: o autor recusa receber as influências internacionais, mas não se nega a “buscar” – não apenas receber – os influxos ibéricos do passado que também, de certa forma, não deixam de ser frutos de uma imposição cultural.

Para Ariano Suassuna, nem tudo o que era estrangeiro era “estranho”. Neste caso, as influências ibéricas são consideradas como elementos fundamentais para o desenho dos matizes da cultura brasileira, formada pela miscigenação racial. Deste ponto de vista, a identidade nacional encerrava-se no desenho da mistura entre brancos, negros e índios, de modo que a contribuição peninsular era tida como essencial para a definição do caráter nacional.

Verificamos que a visão do autor dialoga com o discurso de Sílvio Romero que, calcado em uma perspectiva naturalista e evolucionista, concebe a nação como o resultado da progressiva transformação das matrizes européias pela mestiçagem, como se pode constatar nos Contos populares do Brasil (1885) e em sua História da literatura brasileira (1888). Além disso, o pensamento de Suassuna reflete algumas das concepções de Gilberto Freyre que, igualmente influenciado pelas proposições de Romero, em Casa-grande e senzala (1933) reinterpreta e desloca o eixo racial para o cultural, recobrindo com uma aura “positiva” a questão da miscigenação. Logo, é nítida a contribuição das idéias de ambos os estudiosos na formação do pensamento de Suassuna que, da mesma forma, assinala o pluralismo sincrético racial e cultural como a marca emblemática da cultura brasileira.

O intento de criar uma arte nacional fundamentada na fusão dos elementos populares e eruditos e na rejeição dos influxos estrangeiros – sem, contudo, discorrer acerca do colonialismo cultural e econômico – aponta para outra contradição presente nas idéias de Suassuna. Por diversas vezes, as críticas incidem sobre o caráter elitista de suas produções, visto que, embora se baseie em temas e técnicas da “arte popular”, seus escritos apresentam uma linguagem hermética, capaz de ser desfrutados apenas por um círculo restrito de intelectuais. A pedra do reino é um exemplo ilustrativo do cerne destas discussões. Mesmo assimilando em sua estruturação os aspectos da literatura de cordel, tal romance, ao contrário dos folhetos, não se destina a um público leigo, mas a determinados leitores capazes de fruírem a beleza do folclore nordestino mediante o tratamento requintado que o escritor paraibano lhe confere.

Deste modo, indo ao encontro das palavras de Georg Rudolf Lind (1974, p. 29), notamos que o leitor ideal desta obra deveria carregar consigo alguns atributos peculiares, entre eles, ser brasileiro e interessar-se pelas raízes populares de nossa cultura e pelos aspectos de sua brasilidade; além disto, mostrar-se, dada à sua formação literária, suficientemente distanciado do típico público consumidor de folhetos de cordel para, assim, ter a possibilidade de avaliar a dimensão estética que estes ocupam em tal narrativa. Seria, pois, este distanciamento uma condição previamente necessária para que o leitor ideal percebesse como o escritor transfigura a literatura de cordel em seu texto, dando-lhe novas dimensões poéticas.

Além da crítica ao caráter hermético e elitista dos textos de Suassuna, convém mencionar as divergências apontadas pelo escritor pernambucano Jomard Muniz de Britto (apud DIDIER, 2000, p. 47) a propósito do resgate da cultura popular como essência do “espírito nacional”. Para Britto (apud DIDIER, 2000, p. 47), o discurso da valorização dos antepassados culturais em detrimento de tudo aquilo que vinha de novo, empobrecia a compreensão da cultura brasileira. Deste modo, o escritor revela o seu desacordo com a argumentação que privilegia as expressões realizadas no Nordeste, à margem das influências cosmopolitas, como matrizes da cultura nacional, considerando este ponto de vista como parte de um discurso arcaizante e medievalista. Assim, Britto considera que os pensamentos que localizam na região nordestina as bases autênticas da nossa cultura, parecem estar configurados sob a forma de compensação, cuja finalidade é colocar em evidencia as potencialidades culturais de um espaço privado da supremacia econômica e política. Portanto, as críticas tecidas por Britto atingem também a postura de Suassuna, para quem a cultura popular nordestina é concebida como a representação simbólica de resistência à racionalização da sociedade industrial, cujas imposições tendem a corromper e a sufocar a espontaneidade existente no passado.

Com efeito, é possível constatar que, dentro do conservadorismo de Ariano Suassuna, a noção de autenticidade aparece sempre associada à espontaneidade do povo, visão que prescreve uma distinção entre o caráter intuitivo do artista popular em oposição ao caráter normativo do artista erudito, sempre “preso” às convenções. Neste sentido, observamos que as imagens que relacionam o “popular” à espontaneidade muitas vezes o ligam à idéia de “primitivo”, originário e “infantil”, segundo assinala Didier (2000, p. 72).

Esta associação parece estar vinculada aos próprios princípios românticos que sustentam o discurso de Suassuna. A propósito, Renato Ortiz (1992, p. 23) chama atenção para o pensamento de Herder, filósofo que introduz uma distinção entre “poesia da natureza” e “poesia de cultura”. A primeira teria um cunho intuitivo, constituindo-se como parte de uma sabedoria que não se adquire com o conhecimento formal e, portanto, capaz de resistir aos impactos dos processos civilizatórios. A ela correspondem a tradição oral, as lendas, os mitos, as canções etc. Já a segunda, a “poesia culta” se notabilizaria por apresentar um caráter individual e reflexivo. Por derivar da intelecção, esta se afastaria da intuição e da leveza espontânea. É evidente, portanto, como as concepções estéticas do escritor paraibano dialogam com esta tese herderiana.

Não por acaso, em A pedra do reino, as seqüências narrativas mais impregnadas por uma atmosfera saudosista, são aquelas que retratam o passado, ou seja, a infância do narrador Pedro Dinis Ferreira Quaderna. Elaborada desde uma focalização romântica, na qual o indivíduo e o ambiente formam um todo orgânico, e a partir de uma linguagem que busca incorporar, na prosa, a musicalidade da poesia, as passagens referentes à mocidade do protagonista apresentam uma série de recursos poéticos que, conforme apontaremos no segundo capítulo do trabalho – tendem a representar o caráter “espontâneo”, “intuitivo” e “infantil” das manifestações populares, em oposição ao rigor acadêmico.

Eis, portanto, esboçados os pontos centrais – e ao mesmo tempo polêmicos como pudemos observar – do pensamento estético de Ariano Suassuna. Aproximando-se dos ideais propagados pelo romantismo, o autor formula um conceito peculiar de “cultura brasileira”, tomando-o como base para a elaboração daquilo que denominou a “verdadeira” arte brasileira e universal. Assim, partindo da união entre elementos populares e eruditos, o escritor paraibano idealiza a elaboração de uma estética que, além de valorizar as expressões artísticas do “Povo, do quarto estado” (apud FARIAS, p. 59) – concebidos como emblemas da nacionalidade brasileira –, possibilita também que esta se instaure como uma forma de resistência às imposições “cosmopolitas” e “estrangeiras” resultantes de um imperialismo cultural.

Logo, é importante salientar que as concepções do escritor paraibano não se restringem a um ideal solitário. Motivados por este mesmo afã, em 1970, intelectuais pernambucanos reúnem-se e organizam, sob a coordenação do próprio Ariano Suassuna, aquele que ficaria conhecido como o Movimento Armorial"...

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Fonte:
JULIANA BEVILACQUA MAIOLI: “ASPECTOS DA LITERATURA DE CORDEL EM A PEDRA DO REINO, DE ARIANO SUASSUNA”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de conhecimento: Literatura e vida social. Orientadora: Heloisa Costa Milton).Assis, 2008.

Nota
:
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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