A ética protestante no pensamento de João Calvino



“A Escritura usa esta palavra VOCAÇÃO para mostrar que uma forma de viver não pode soar boa nem aprovada, a não ser que Deus seja o seu autor. E esta palavra VOCAÇÃO também quer dizer “chamado”; e este “chamado” implica em que Deus faça um sinal com o dedo e diga a cada um: quero que vivas assim ou assim. Eis, pois, o que chamamos estados: é que não nos ocupemos naquilo que Deus condena por Sua palavra.” (CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 528)

João Calvino nasceu na França e se fez notável líder da Reforma Protestante do século 16 a partir de seu tratado teológico As Institutas da Religião Cristã, bem como por sua atuação enquanto líder religioso e social na cidade de Genebra, até sua morte em 1564. Fundador da Universidade de Genebra, humanista cristão, dedicado estudioso da Bíblia e reconhecido como literato entre acadêmicos, Calvino irá fomentar através de sua doutrina e liderança o início de um movimento de transformação na religião e sociedade que atravessam gerações e nações. A Igreja Reformada, no Brasil, Igreja Presbiteriana, carrega consigo as doutrinas deste reformador, conquanto qualquer movimento protestante jamais possa negar influências teológicas ou éticas que saíram do entendimento deste homem que, junto a Martinho Lutero, formalizou-se como líder mor da Reforma Protestante.

O Calvinismo é o movimento religioso cristão originário da Reforma Protestante do século XVI a objetivamente propor uma reforma religiosa que atua em aproximação ao mundo: "Se houve qualquer movimento religioso, no século 16, que tenha tido uma atitude afirmativa em relação ao mundo, esse foi o Calvinismo. "(McGRATH, 2004, p. 249). Esta é a perspectiva que unidade e rumo às práticas dos fiéis cristãos calvinistas enquanto reação de devoção religiosa diante de Deus e seus mandamentos.

Esta atitude afirmativa para com o homem e seu mundo realiza-se através de um olhar cristão reformado que percebe o ser humano positivamente, a partir de dois momentos: quando criado pôr Deus, e assim bom, como toda a criação no início; e quando transformado por Deus, e assim renovado através de Cristo para viver novamente com o Criador – aqui, o cerne da proposta religiosa de salvação no cristianismo. O estado “comum” de todo homem natural que é o afastamento e a autosuficiência perante Deus, distinto se faz, portanto, destes dois momentos: o tempo da origem do ser humano, em que fomos criados por Deus e bom éramos e, o tempo em que convertemo-nos ao Evangelho de Cristo, e bons podemos nos tornar pelo relacionamento com Deus que este nos traz.

O conhecimento destes dois momentos permitirá à religiosidade reformada, especialmente a calvinista, a perspectiva de que o homem e seu mundo errantes não devem ser renegados através do afastamento, mas sim, reconquistados para o propósito inicial do Criador. Pois um mundo e seres humanos originalmente criados por Deus não devem ser abandonados em seu estado de imperfeição e rebeldia, mas sim, observados à luz de sua origem e visualizados na esperança do dia em que tudo irá retornar a existir somente segundo o bom propósito de Deus – uma proposta do evangelho que somente se cumpre no fim dos tempos, mas que já começou, e a religião cristã deve apregoar agora e viver desde hoje os primeiros passos deste ideal último de Deus à criação e existência humana. São as razões, pelas quais, segundo Knudsen, em Calvino e sua influência no mundo ocidental, "o Calvinismo teve em mira não a reforma na doutrina, na vida individual e na vida da igreja, mas também a transformação de toda a cultura, em nome de Cristo." (1990, p. 12)

A dominação da conduta do homem na sociedade é o projeto de redenção dos talentos e capacidades do homem que lhe foram entregues e possibilitados a desenvolver-se a partir de Deus, na criação. A mesma perspectiva que não amaldiçoa definitivamente o que é secular e humano no mundo, ao contrário de proposta regular em religiosidades outras, que afirmam o afastamento do homem do mundo desgraçado pois somente assim se fazem dignos de Deus e seus santos valores o que não no calvinismo; é também o princípio que visualiza e projeta o tratamento da vida humana dentro deste mundo, pois isto se faz à luz, do que lhe é originalmente bom - a vontade primeira de Deus ao homem e sua vivência social. Pois, afinal, a existência social do homem não origina do homem sem Deus, mas ao contrário, nasce do homem inicial que de Deus veio e com Deus existia plenamente.

Portanto, necessário é não desprezar a ação do homem no mundo, mas sim, volver tal ação ao que era bom – rumo a uma experiência social humana e no mundo segundo a vontade original de Deus. Enquanto ensina acerca da distinção entre o estado de pecado do homem um terceiro momento, e seu estado original quando criado por Deus, Calvino apresenta esta peculiar distinção representativa do momento em que a raça humana foi criada:

Deste conhecimento dois ramos, a saber, o conhecimento do homem conforme originalmente foi criado, e o conhecimento da condição do homem desde a queda de Adão (...). Pois antes de tratarmos do estado miserável ao qual o homem caiu, vale a pena lembrar-nos daquilo que ele era originalmente (...). “(CALVINO, 1984, p. 80)

Aprofundando o entendimento do tema, Calvino esclarece a singularidade do estado original do homem na criação: “(...) ao passo que o verdadeiro conhecimento de si mesmo consiste em conhecer os poderes e privilégios que Deus nos deu na Criação, como também a condição miserável à qual fomos reduzidos pela queda de Adão.” (CALVINO, 1984, p. 105)

Aspecto fundamental também, do Calvinismo em relação ao mundo do homem é sua percepção de que nem tudo requer ser redimido como se nada de bom carregasse em si; pois humanidades e artifícios do agir do homem que conseguem ser construídos à luz da boa vontade de Deus, mesmo a partir da premissa básica que afirma estar o homem distante e contrário ao plano original do Criador.

“Atribuir ao homem cegueira total que não lhe deixa inteligência alguma, não é apenas contrário à Palavra de Deus, mas também contrário à experiência e ao bom senso (...) Lembremo-nos, portanto, desta distinção: o conhecimento de assuntos terrestres é uma coisa, o conhecimento de assuntos celestiais é outra. Por assuntos terrestres quero dizer os que se referem à vida presente (...).”
(CALVINO, 1984, p. 112)

Calvino adverte que a situação de rebeldia do homem para com o Criador não afasta da existência humana a ação providencial de Deus a fim de manter a continuidade e a vivência da humanidade - é a Graça Comum divina que permanece sobre todos os homens e suas ações nesta vida.

Visto que o homem por natureza é de disposição social, está inclinado pelo instinto natural a estimar a sociedade e a conservá-la (...) Além disso, todos nós temos alguma aptidão para aprender as artes liberais e mecânicas; e esta é outra prova do vigor da mente humana (...) E embora a razão seja uma bênção comum que é outorgada a todos nós, cada um deve reconhecer que sua participação nela é um favor especial que Deus lhe conferiu.”
(CALVINO, 1984, p. 112 – 113)

Segundo Knudsen, as artes liberais e as ciências exatas eram percebidas com premissa positiva pelo Calvinismo, ao contrário de outros movimentos religiosos cristãos que as afirmavam totalmente renegadas ou inicialmente percebiam-nas negativamente. Nesta perspectiva, por exemplo, a cultura do homem não apenas se permitia ser redimida e também continuar sendo sua cultura - pois não se nega ao homem a vivência de suas humanidades enquanto este busca sua santidade; como ainda, tornava possível a observação da cultura existente como possivelmente boa em certos aspectos - um passo e tanto enquanto premissa de movimento religioso que busca resgatar a pureza religiosa em tempos de crise.

À luz da Reforma Protestante enquanto movimento de transformação social a partir do cristianismo ocidental, que se desenvolveu em países diversos e com lideranças múltiplas, é preciso perceber que esta peculiar doutrina do reformador João Calvino, enxergando integralmente a vida humana, individual e social enquanto passível de ser vivenciada na presença de Deus; não resulta em grave conflito doutrinário, por exemplo, com o iniciador da Reforma, Martinho Lutero. Tal reflexão acerca das diferentes posturas entre os reformadores mais conhecidos apresenta-se no pensamento de Biéler, a partir de obra sua: A Força Oculta dos Protestantes, enquanto diferença de ênfase apenas, que acontece, inicialmente, em razão do momento histórico, tanto religioso quanto social, com que cada um deles se deparou e, portanto, buscou responder, à luz da liderança que individualmente personificaram.

Quando a Reforma Protestante resgata da mensagem do Evangelho de Jesus a possibilidade do homem relacionar-se diretamente com Deus, e isto através de conquista gratuita oferecida pôr Deus ao homem; as consequências deste fato na vida da sociedade se farão presentes tanto através do olhar de Lutero quanto de Calvino. Porém, enquanto Lutero desbravou na leitura bíblica e expôs os versos da Palavra de Deus que anunciavam o evangelho da justificação pela fé - movendo indivíduos pessoalmente a Deus – não mais institucionalmente; Calvino observa estes indivíduos agora em relação pessoal perante Deus, e sobre este fato escreve teologicamente - refletindo e descrevendo as possibilidades e compromissos das mudanças que diante deles surgem: as concernentes à vida em sociedade.

Dentro deste entendimento teológico acerca da criação do mundo e do ser humano, o teólogo João Calvino expõe as amplas possibilidades de vivência cristã ao professo reformado, perfazendo uma experiência religiosa dentro do mundo que resultará naquilo que Henri Hauser denominou de "secularização do sagrado" e, que, segundo Mcgrath, "envolvia trazer toda a esfera da existência humana para dentro do âmbito da santificação divina e da dedicação humana." (2004, p. 250). Eis o aspecto relevante e fundamento da doutrina calvinista que oportunizou ao cristão protestante uma ação ativa no mundo, a qual irá se desenvolver enquanto ética de conduta através da crença da vocação o chamado de Deus ao homem para uma vivência no mundo a partir dos propósitos do governo do Criador, e que se faz realidade social através do trabalho profissional do cristão.

Isto porque o reformador João Calvino irá refletir acerca deste momento virtuoso da criação original do homem, observando igualmente sob olhar positivo muitas de suas consequências – pois toda a vivência relacional do homem, bem como suas capacitações para um bom e eficaz existir da espécie na criação, são potencial e possibilidades a ele entregues originalmente pelo Criador. De tal forma que as humanidades desenvolvidas pelo ser em sua cultura e trabalho, não são uma obra declarada malditas à luz do sagrado pelo calvinismo; em contrário, oportunizam uma devocional ação intra-mundana do homem, que não a vivencia nem contra nem separadamente de Deus. Pois de Deus o homem recebeu a oportunidade e o talento para existir no mundo enquanto ser que constrói uma vivência criativa e rica em suas humanidades.

Portanto, segundo seu entendimento acerca da criação do homem é que João Calvino irá propor uma válida redenção de toda a vida social humana. "Contudo, o Calvinismo validava o mundo com a finalidade de dominá-lo, dirigindo-se às suas situações específicas, em vez de se deliciar em especulações abstratas." (McGRATH, 2004, p. 249). Ao observar esta proposta que concretiza a relação do homem com Deus dentro da sociedade, enxergamos nas conseqüentes ações cotidianas que lhe seguem, a edificação de uma conduta moral que se organiza a partir da religião. Na união deste conceito que abarca o mundo enquanto campo de e prioriza a sociedade para o exercício dos mandamentos religiosos, denotamos a origem de uma ética protestante especialmente ativa no mundo, que “um código de ética, portanto, é uma explicitação dos princípios éticos de um grupo e sua aplicação prática na conduta do indivíduo no seio de uma determinada comunidade.” (DE LIBERAL, 2002, p. 66)

Ética cotidiana a partir do chamado divino que se apresenta a nós tanto como orientação como também enquanto rumo vivencial: “É também nosso dever observar diligentemente que Deus ordena que cada um de nós leve em conta a sua vocação em todas as ações de sua existência.” (CALVINO, 2006, p. 224) Pois, enquanto uma ação de governo do Criador sobre a vida do homem através de sua providência, Deus deseja orientar a existência humana adiante dos muitos projetos vazios que podem levar à inquietação e insatisfação:

“Por isso, para que não compliquemos tudo por nossa temeridade e loucura, ele ordenou a cada um o que fazer, estabelecendo distinções entre posições ou estados e diversas maneiras de viver. E, para que ninguém ultrapasse levianamente os seus limites, deu a tais maneiras de viver o nome de vocações.”
(CALVINO, 2006, p. 225).

Assim, toda a vida terrena do homem, todos os seus papéis sociais e relacionamentos em cada situação e oportunidade de sua existência, coordenam-se à ação de providência pela qual Deus governa e mantém em curso a vida no planeta:

“É suficiente que saibamos que a vocação de Deus é como que um princípio e fundamento baseados no qual podemos e devemos governar bem todas as coisas (...) Além de tudo mais, se não tivermos a nossa vocação como uma regra permanente, não poderá haver clara consonância e correspondência entre as diversas partes de nossa vida.”
(CALVINO, 2006, p. 225)

Calvino desenvolve os fundamentos acerca da vocação do cristão para a vida em sociedade em seu último livro das Institutas – IV, no capítulo 17, com o título Sobre a Vida Cristã. Importante resgatar que no capítulo anterior, ao versar acerca do governo civil, e salientando que este se estabelece divinamente na comunidade dos homens através das ordenanças ao Estado Político, o reformador estabelece especial valor à vocação quando do estabelecimento deste governo civil segundo a providência divina; o qual se personaliza também a partir de um chamado de Deus aos homens: “Bem, há três partes. A primeira é o magistrado, que é o guardião e o mantenedor das leis. A segunda é a lei (...) A terceira é o povo, que deve ser governado pelas leis e obedecer ao magistrado.” Ainda acerca da relevância deste chamado vocacional ao homem para assumir a autoridade delegada por Deus ao Estado Político, afirma Calvino: “Não se deve, pois, ter a menor dúvida de que o poder civil é uma vocação não somente santa e legítima diante de Deus, mas também deveras sacrossanta e honrosa entre todas as demais.” (p. 145, 148, 150)

Conquanto em diferentes regimes de governo, um sobre todos os homens a partir dos governos civis e outro sobre os cristãos a partir da igreja, o sagrado chamado de Deus aos homens para assumirem suas posições na sociedade revela do uno princípio divino da vocação, iguais conseqüências sociais. Ao unir magistrados e príncipes a todo e comum trabalhador, Calvino resgata da bíblia a dignidade de todos os homens, orientando a todo ser um outro reconhecimento social, pois seu valor origina de perspectiva superior – o chamado de Deus ao homem para com Ele trabalhar no mundo: “Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante os olhos de Deus.” (CALVINO, 2001, p. 77)

A perspectiva vocacional é o fundamento que permitirá ao homem participar conjuntamente da obra de Deus para a criação, quando então o homem se percebe em suas atividades cotidianas como um partícipe e co-agente do Criador, pois o agir de Deus a fim de bem governar e orientar a vida humana convoca os homens tanto a reconhecerem que d’Ele vêm suas aptidões quanto a se perceberem por Ele convocados a funções e atividades com propósito comum e dignificante: o de bem regular a vida dos homens em sociedade - obra constante de Deus à qual o homem é convocado a participar, nela atuando através de sua profissão: “Desse modo de entender e de agir nos resultará esta singular consolação: não há obra, por mais humilde e humilhante que seja, que não brilhe diante de Deus e que não lhe seja preciosa, contanto que a realizemos no serviço e cumprimento da nossa vocação.” (CALVINO, 2006, p. 225)

Segundo Calvino, este trabalho de Deus no mundo ao qual o homem se associa através de sua vocação, tornando-o digno em quaisquer atividades, necessita primariamente ocorra uma ação redentora de Deus em relação aos ideais do homem: “Pois bem, a ordem da Escritura da qual falamos consiste em duas partes. Uma visa imprimir em nosso coração o amor pela justiça (...). a Escritura tem muitas razões excelentes para inclinar o nosso coração ao amor pela retidão” (2006, p. 178) O padrão desta vocação enquanto missão conjunta e oriunda de Deus, claramente se estabelece: “Acresce que, para nos despertar mais vivamente, a Escritura nos demonstra que, assim como Deus em Cristo nos reconciliou consigo, assim também ele o constituiu em exemplo e padrão ao qual devemos amoldar-nos.” (CALVINO, 2006, p.179)

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Daí aprendemos que precisamos converter a Deus e bem transformar o nosso coração e valores morais, pois nosso chamado é para trabalhar conjuntamente ao trabalho santo que Deus está fazendo não se trata simplesmente de abraçar uma ocupação na ordem social e econômica a fim de que a sociedade progrida, mas sim, de assumir na comunidade dos homens a bendita ação que o Criador está realizando:

“Que fundamento seria melhor para começarmos do que admoestar-nos no sentido de que devemos ser santificados porque o nosso Deus é santo. (...) Por isso a Escritura nos ensina que esta é a finalidade da nossa vocação, finalidade à qual devemos estar sempre atentos, se queremos responder positivamente ao nosso Deus. “
(CALVINO, 2006, p. 178, 179)

O segundo aspecto da ordem que Deus está a estabelecer no mundo social, conjuntamente aos homens, vocacionados que são a implementar certos propósitos divinos a partir de suas vidas profissionais; surge do princípio que afirma não devermos mais buscar “as coisas que nos agradam, mas as que agradam a Deus e que se prestam para exaltar sua glória. (...) Porque, quando a Escritura nos proíbe preocupar-nos particularmente com nós mesmos, não somente elimina do nosso coração a avareza, (...) mas também quer extirpar de nós toda ambição e apetite de glória humana e outros males ocultos.” (CALVINO, 2006, p. 185)

João Calvino procura instruir os homens acerca dos perigos que rondam a humanidade quando esta imagina poder associar-se a Deus a partir somente de atos externos – sem transformação de caráter, imaginando serem os propósitos divinos possíveis de realizar a partir do natural esforço humano:

O primeiro passo, é, pois, que nos afastemos de nós mesmos a fim de aplicarmos todas as forças de nossa mente ao serviço de Deus. Chamo serviço não somente o que consiste na obediência à Palavra de Deus, mas também aquele pelo qual o entendimento do homem, despojado de seus próprios sentimentos, converte-se inteiramente e se sujeita ao Espírito de Deus.” (2006, p. 184)

A vocação do cristão ao trabalho é um chamado com propósito de aprofundar e amadurecer o relacionamento do homem com Deus, por isso, a manutenção de nosso orgulho natural de início impedirá reconheçamos que estamos, extraordinariamente, na presença do Criador. “Devemos notar que a abnegação ou renúncia de nós mesmos em parte visa ao bem dos homens, na verdade principalmente, visa à nossa relação com Deus.” Se não enxergamos o Criador quando de nosso chamado, menos ainda perceberemos o propósito social de nossa vocação. Pois ao nos tornarmos agentes de obras do governo divino sobre a sociedade dos homens, o que se requer é a derrocada de nosso orgulho para com Deus e o próximo, pois, caso contrário, as capacidades e bens a nós entregues pelo Criador nesse processo de associação secular jamais renderão os fins destinados à comunidade dos homens.

“Quão difícil é cumprir o dever de trabalhar pelo proveito do próximo! Se não deixarmos de lado a consideração de nós mesmos e não nos despojarmos de todo afeto ou interesse carnal, não conseguiremos fazer nada nessa esfera. Porque como havemos de cumprir os deveres que o apóstolo quer que cumpramos com amor, se não renunciarmos a nós mesmos (...)”
(CALVINO, 2006, p. 188)

Enquanto inicia o esclarecimento à boa e eficaz utilização das riquezas adquiridas através do labor profissional, Calvino ressalta o princípio base a ser visualizado e compreendido em sua essência superior a fim de prover o correto destino social às mesmas: “Ora, se os dons de Deus nos são finalmente santificados, após os havermos consagrado de nossas mãos, certamente se que é um abuso condenável negligenciar a referida consagração.” (2006, p. 189). Não vocação cristã sem consagração pessoal a Deus! O processo nem se inicia posto que a relação do que chama perante o que responde não acontece em seus passos primários. Quando o homem se presta entregar a Deus seu coração para a necessária transformação de caráter, enquanto visualiza e inicia a dedicação das riquezas alcançadas com seu trabalho, requer assim atue segundo um mesmo e supremo propósito: efetivamente associar-se ao Criador para então conjuntamente se unir à obra que Deus tem governado para com a sociedade dos homens pois os dons de Deus somente são santificados após os havermos consagrado.

Isto porque é preciso estar disposto ao Criador de alma e corpo, a fim de que a relação moral perante os homens subsista integralmente a partir desta feliz edificação da relação espiritual do vocacionado junto de Deus. Pois a vocação somente se realiza em processo de interação entre Deus e os homens. Portanto, processo espiritual em meio ao social, de intenção religiosa a edificar no mundo um estado e situação a partir do sagrado. É assim que a vocação cristã ao trabalho revela o cerne de sua existência: desde que a relação do homem diante do Criador mantenha a todo instante, a supremacia da Pessoa de Deus e seu controle sobre toda a relação vocacional proposta.

Segundo Calvino, “quando as riquezas dominam no homem, Deus é despojado de sua dominação.”. Mas, porém, “aquele que, obedecendo a Deus, não é escravo das riquezas, deles pode usar na fé.” (apud BIÉLER, 1990, 421, 417). A compreensão deste fato essencial e a resposta continuada do homem ao bem resguardar sua relação com a Pessoa de Deus, em sua consciência e vontade, proverá a oportunidade de bem demonstrá-la em sua realidade de consagração sacro-social, quando da dedicação dos bens ao proveito e necessidades comuns aos homens: “Visto, pois, que o bem que podemos fazer não pode subir a Deus, como diz o profeta, devemos praticá-lo em favor dos seus servos que vivem neste mundo.” (CALVINO, 2006, p. 189).

Antes de partirmos ao desenvolvimento primordial da conduta protestante concernente ao uso das riquezas em nossa realidade social – o bem comum da sociedade materializado no tocante ao próximo; importa recuperar em Calvino a origem de toda aptidão e bens do homem, pois da objetiva ação do Deus criador em seu governo de providência e sustento sobre os homens, reconhecemos e aprofundamos o entendimento da associação divina de nossa vocação. Segundo Biéler, “O desígnio de Deus, em nutrindo o homem, não é apenas prover-lhe às meras necessidades materiais. Visa a um fim espiritual. Através do sustento, Deus se faz conhecer à criatura, revela-se a ela como o Criador.” (1990, p. 410) Através do chamado a construirmos com Deus seus propósitos na sociedade dos homens, somos instados a um necessário relacionamento íntimo em nossa alma e integral em nosso corpo e espaço social, exatamente porque Deus está se revelando e fazendo-se conhecido de nós conforme vivenciamos esta associação com Ele. Não conhecimento de Deus nem de sua realidade a não ser que as experimentemos – e somente o faremos vivendo com Deus. Calvino: “Quando somos abastecidos de pão de que somos sustentados, de mister é que reconheçamos que isso nos provém da pura bondade de nosso Deus...” (apud BIÉLER, p. 410). Porém, a associação com Deus na vocação provê muito mais conhecimento de Deus do que somente o perceber de sua bondade.

Em verdade, Deus deseja adentrar a todos os recônditos da existência pessoal e social do homem a fim de manifestar não somente seu apreço por nosso estado atual de vivência neste mundo, mas especialmente, ir revelando e tornando conhecida em nossa realidade o que d”Ele podemos aguardar para a vida eterna:

“A bom direito, pois, o Profeta adverte aos fiéis de que recebem já certo fruto de sua integridade, quando Deus lhes propicia seu alimento, abençoa-nos na mulher e na prole, e condescende até o ponto de tomar-lhes cuidado da vida, mas louva ele a presente graça de Deus com esta intenção: fazê-los correr mais alegremente à sua herança eterna.” (CALVINO, apud BIÉLER, p. 412)

A partir deste olhar à vida plena na eternidade com Deus é que se constrói em valor a atual associação que a Ele nos aproxima nossa vocação profissional: “Entrementes, que Deus nos chama diretamente para com o céu e nos eleva o espírito para com a vida espiritual, que aquilo que São Paulo nos diz nos basta, a saber, que não somente a esperança da vida vindoura, mas também da vida presente, dada nos é para o temor de Deus, ou a piedade.”(CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 413) O real temor a Deus somente irá se edificar em nossa alma a partir do instante quando mais integralmente com Ele nos relacionarmos, o que muito se dará a partir da necessária consagração de nossa vida material a que convoca nossa vocação. Este é o chamado divino que igualmente viveremos de forma digna, somente a partir do conhecimento da honra devida a Deus pelo que clama nossa associação a seus desígnios.

Portanto a vocação cristã faz-se o desafio que busca estabelecer na vida profissional do homem este senhorio de Deus, tendo em vista o amadurecimento de seu ser, oportunizando tanto ensino de humildade para com Deus quanto de quebrantamento do orgulho visando seu relacionamento com o próximo: “Se desejamos refrear nossas paixões, devemos recordar que todas as coisas nos têm sido dadas com o propósito de que possamos conhecer e reconhecer o seu autor.” (CALVINO apud HERMINSTEN, 2006, p. 71)

Somente a consagração do coração do homem a Deus é que proverá a renovação de seu caráter rumo aos propósitos divino prescritos à sua conduta cristã na sociedade. Por isso, o Criador institui o sábado, o descanso do homem, a fim de que ache em sua agenda tempo de relacionamento com Deus – o qual lhe será por oportunidade de transformação: “Os fiéis devem descansar de suas atividades próprias a fim de deixar Deus neles agir.” (CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 516). Conquanto não estejamos ainda a tratar diretamente das práticas morais com que o homem deverá reger suas relações econômicas, visualizamos fruto prático do Sábado de Deus no cotidiano dos homens, pois ensina aos patrões que todo homem requer se reconheça seu tempo de descanso. É Calvino quem identifica tal valor transformador da sociedade, conforme o Criador quis nos oferecer: “Quis Ele dar um dia de repouso aos servidores e à gente que trabalha que estão sob poder de outrem (...) a fim de que aos servidores e operários seja dada folga de seu labor.” (apud BIÉLER, 1990, p. 518).

“Portanto, para nos orientarmos na prática do bem e das ações humanitárias, adotemos esta norma: de tudo o que o Senhor nos deu com o que podemos ajudar o nosso próximo, somos despenseiros ou mordomos, sendo que teremos que prestar contas de como nos desincumbimos de nossa responsabilidade.”
(CALVINO, 2006, p. 189).

Em compreensão ao modo como o senhorio de Deus se estabelece na relação do cristão concernente ao uso das riquezas, volvemos nosso olhar ao ensino da mordomia cristã. Deste conhecimento localizado acerca da doutrina da Soberania de Deus enquanto regência de nossa relação de submissão diante d’Ele, é possível extrair entendimento para visualizar os reais destinos atuais de nossa vocação profissional para com a sociedade dos homens.

O conceito calvinista de mordomia cristã é o aspecto doutrinário que identifica nossas riquezas dentro da obra maior que Deus realiza no mundo. De um lado, portanto, reconhecemos a autoridade e governo de Deus sobre as riquezas em nossas mãos. Calvino:

“Quando Deus nos envia riquezas não renuncia à sua titularidade, nem deixa de ter senhorio sobre elas (como o deve ter) por ser o Criador do mundo. (...) E ainda que os homens possuam cada um sua porção segundo Deus os tenha engrandecido mediante os bens deste mundo, não obstante ele sempre continuará sendo o Senhor e Dono de tudo.” Um soberano senhorio divino sobre as riquezas em nossas mãos que requer, para sua efetivação, associemo-nos com Deus através da consagração:
(CALVINO apud BIÉLER, p 419)

“A que propósito, então, quer nosso Senhor que Sua Igreja seja excelente acima de todo o mundo? É a fim de que domine Ele só e tenha toda a preeminência (...) E por isso impõe-se diligentemente notar este fim, onde ele diz: Tu lhes consagrarás as riquezas ao Senhor.” Isto se faz aguardando com os bens em mãos até que Deus bem nos oriente acerca de seu destino, pois a partir de uma existência em estado natural de pecado, o homem somente se associa a Deus através da mediação de Cristo – aqui realizada através do ouvir do homem a ordem de Deus e então sair à prática na força de Seu Espírito. É mister compreender que sem este ato de religação a Deus, a consagração sequer inicia, resultando assim que o homem faz uso próprio de seus bens, negando então todo o relacionamento a que propõe sua vocação.

Por isso, de outro lado, a mordomia cristã não somente avisa-nos que Deus é o dono do que adquirimos, mas implementa o completo propósito divino ao nos instruir acerca do correto e bom uso sagrado dos bens que fez Deus chegar em nossas mãos. Calvino:

“Nada possuo senão da mão de Deus; e onde haja eu de ver falta ou indigência, impõe-se que, segundo minha possibilidade, socorra eu aos que se acham em necessidade (...) que ninguém seja tido como separado, antes, pelo contrário, que saibamos que Deus misturou os ricos e os pobres, uns por entre os outros, a fim de que tenhamos ocasião de fazer o bem.”
(CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 419)

Resultando em que, na visão calvinista conforme Biéler, “consagrar a riqueza a Deus é pô-la a serviço do próximo”.

Conscientes de que somos depositários dos bens de Deus em tudo que nos chega às mãos, volvemos nosso olhar para uma redenção que o Criador deseja fazer no mundo, iniciando no coração do cristão, mas com vistas à ordem social: Calvino assevera: “Segundo o Evangelho, todo ser é promovido à liberdade espiritual pela Redenção de Jesus Cristo, e esta liberdade deve expressar-se também na condição política e social da pessoa humana.” O propósito de Deus observa a ordem social como um organismo que irá abençoar, regendo sua existência tanto a partir do Estado como igualmente a partir da Igreja e dos cristãos: “Em permanecendo fiel ao Evangelho (..) não cessa a Igreja de exercer seu ministério de regeneração da sociedade.” (apud BIÉLER, 1990)

Esta perspectiva é essencial ao entendimento da vocação ao secular que Deus orienta aos cristãos, pois a intenção não é apenas bem fazer progredir o relacional comum dos homens, mas sim, manifestar a vontade e valor de Deus à sociedade enquanto organismo comum de vivência da humanidade.

Quando o homem adentra às relações sociais enquanto um subordinado de Deus convocado a com seu labor e riquezas construir uma sociedade organizada, isto significa não somente que a faça progredir, mas sim, exemplarmente, que a edifique em sua estrutura a tornar-se o que Deus lhe idealizou enquanto organismo um estado de vivência solidária para o bom proveito de todos os homens que lhe participam:

“Ainda mais, a indústria com que exerce cada um seu cargo, e a própria vocação, a capacidade de bem dirigir, e outras graças, são como mercadorias, porquanto o fim e o uso lhes é que haja natural comunicação entre os homens.” “(...) nasceram os homens uns para os outros, que devem manter mútua comunicação entre si para a preservação do gênero humano.”
(CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 316)

O conselho de Deus é que as riquezas sejam de tal maneira relacionadas à vida de todos os homens para seu comum bem, de forma que verdadeira solidariedade social se estabeleça entre eles eis o propósito de integração social das riquezas, à luz da mordomia cristã enquanto seu viés secular, quando do chamado vocacional ao homem para que atue dignamente junto a Deus em seu modo de vida: Calvino: “Esta é a fonte de que todo o resto depende, a saber, que esteja cada qual contente com sua vocação, que a siga, que não esteja inclinado a buscar outra. Vocação no Espírito significa um estado e maneira de viver legítimos (...).” (apud BIÉLER, 1990, p. 348)

Calvino, ao descrever o alvo final da obra de redenção de todo o mundo, reflete acerca do fim dos estados atuais de organização do cosmos; isto ocorrendo somente porque na eternidade não mais haverá corrupção das relações humanas. Nisto refletir, apresenta igualmente a amplitude e propósito do atual projeto de Deus para a sociedade: “os poderes legítimos e ordenados de Deus não mais terão razão de ser e serão supressos, assim como todas as desigualdades sociais.” (apud BIÉLER, 1990, p. 352) Nesta final ocasião, em que os propósitos de redenção da criação serão integralmente visualizados pelos homens, ocorrerá igualmente a essência relacional que Deus tem propósito de fazer ver ao homem desde quando de seu instituir do chamado à vocação secular do cristão. Calvino: “Assim, confundir-se-ão a Igreja e a sociedade, todos terão reencontrado seu verdadeiro fim: viver para a glória de Deus em Sua comunhão e sob Seu domínio.

“Da própria ordem da criação aprendamos que Deus opera por meio de Suas criaturas.” (apud BIÉLER, 1990, p. 353, 308 309) Quando o homem descobre que suas aptidões e oportunidades são tanto governadas pelo Criador, quanto igualmente estão a serviço dos propósitos divinos; visualiza então, no seu pessoal e específico chamado à vocação secular, a maneira efetiva em que irá partilhar do governo de Deus perante a criação.

Acerca desta integração do trabalho do homem à obra de Deus no governo da sociedade, esclarece Calvino: “Se, pois, a providência de Deus encorpora em sua operação as causas segundas da própria natureza, com razão quão mais forte associará à obra do homem, estabelecendo-lhe real responsabilidade.”

“Observa-se quando os homens trabalham, observa-se quão diligentes sejam, se tem expediente e habilidade, a isso se observa (...). Ora, a tudo isso responde Moisés, dizendo: ainda que trabalhem os homens, que se esforcem (...) nada há para que Deus seja privado de Sua honra. E por que ? Quem é que aos homens a prudência, a destreza do corpo, a força para trabalhar, as aptidões, e os meios, não é Deus que tudo põe em suas mãos?”
(CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 522)

Assim, é mister perceber que o homem que se reconhece recebendo do Criador os bens que conquista, convocado ainda ao dever de assumi-los em mordomia e cuidado, e devendo movimentá-los no projeto de construção de uma sociedade digna de Deus; tais tarefas efetivamente realizará na sociedade, ao passo que observe ser em seu trabalho e nas relações econômicas a ele inerentes que tal chamado divino deve-se bem construir: “Se a providência de Deus usa a atividade do homem, determinando-lhe o trabalho – a obra do homem sendo um dos instrumentos do grande labor de Deus (...).” (BIÉLER, 1990, p. 311) Tal perspectiva de ministério ressalta Calvino aos homens quando lhes orienta acerca da responsabilidade de seu trabalho diário: “Assim, pois, lembre-se cada um de que foi criado por Deus a fim de trabalhar diligentemente e de entregar-se à sua tarefa (...).” (CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 522)

O trabalho profissional do homem e sua atuação econômica na sociedade são assim interligados ao governo de Deus para bem ordenar toda a criação aqui identificada em seu aspecto de organização da comunidade dos homens. Quando o homem apreende esta benigna realização de Deus na criação e, submisso ao Criador atua socialmente conforme os valores e propósitos divinos, então trabalha respondendo eficazmente à sua vocação, abandonando o ato de trabalhar que tem valor em si próprio e que tanto afasta o homem de Deus quanto de suas benesses divinas distribuídas em todo este projeto. Biéler: “Na medida em que o trabalho toma o lugar de Deus, absorve toda a existência (...) está ele voltado ao fracasso (...). Na medida, ao contrário, em que o trabalho é relacionado com Deus, na fé e na obediência, é ele acompanhado de bênção.” (1990, p. 527) Quando o homem adentra sua vida secular e assume suas funções de trabalho, enxergando a realidade do que Deus está construindo e associando-se a Ele de forma integral, então observará que seu labor, simples que seja no cotidiano, assumiu realidade nova, provendo-lhe ainda satisfação outra. Calvino: “Em contraposição, aqueles que descansam no Senhor são assegurados de que seu labor prosperará, pois que deles se diz: a bênção do Senhor está sobre as mãos daquele que trabalha (Salmo 127).” (CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 527)

Ao trabalhar em seu cotidiano social perante Deus e a partir de seus mandamentos obrar valores de solidariedade à economia humana, o homem irá submeter aos propósitos do Criador a esfera em que atuar, provendo à comunidade dos homens, então, seu fim destinado. Calvino: “É a este domínio sobre a natureza e a soberania sobre a matéria que deve tender todo o labor da sociedade (...) a que fim são produzidos frutos de tantas espécies (...) senão para uso e conforto de todos os homens.” (apud BIÉLER, p. 313). O chamado do homem ao trabalho somente será real vocação de Deus quando sua obra prática vincular-se do início ao fim aos conselhos e destinos que o Criador está constantemente governando em meio à sociedade dos homens – a assistência ao próximo, o bem comum de todo homem. Calvino: “E daí coligimos a que fim foram todas as coisas criadas: é que nada falte aos homens, em todas as situações e passos de sua vida.” (apud BIÉLER, p. 314)

“Eis, ademais, em que condição Deus põe os bens na mão dos ricos: é a fim de que tenham oportunidade, e recurso também, para vir em ajuda ao próximo que esteja em necessidade. Em suma, esta humanidade deve ser guardada entre nós, que aquele que dispõe de quê, de sua abundância, prodigalize ao próximo; embora não haja aqui uma taxa ou tributo, impõe-se que pense cada qual que é sob esta condição que Deus lhe deu trigo e vinho, que deles liberalmente àqueles que deles tem falta e carência (...) Eis, pois, uma equidade que Deus aqui infunde, a fim de que saibamos que, se Deus nos deu bens que excedem à nossa utilização, não devemos ser excessivamente avaros quanto a eles, pelo contrário, que todos quantos deles carecem sejam, de qualquer forma, aquinhoados.”
(CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 429)

No propósito de não deixar dúvidas acerca do significado da vocação em exercício de no trabalho profissional, mesmo após explicitar a relação de mordomia às riquezas, bem como o alvo de seu uso para salvaguarda da existência dos homens; Calvino particulariza em meio à sociedade os papéis e funções que o governo de Deus está gerenciando na vida do homem, a fim de tornar clara e indubitável sua real intenção ao convocá-lo como servo seu ao mundo: “Ensinados que somos que os ricos receberam maior abundância, com esta condição, que sejam ministros dos pobres, a dispensarem os bens que foram postos nas suas mãos pela bondade de Deus.” – Biéler desenvolve o que Deus define acerca da função de seus vocacionados assistentes, bem como esclarece sobre o propósito da gerência que lhes designou: “Estes termos, ministro, lugar-tenente, oficial, ressaltam bem, de um lado, o regime de mútua comunicação dos bens materiais que Deus tem o propósito de estabelecer entre os homens no seio da sociedade (...)”. (1990, p. 429)

A expressão que Calvino utiliza aos chamados por Deus a servi-Lo em suas vidas profissionais, bem revela o entendimento de conduta que pretende ensinar quando desenvolve esta doutrina da vocação ministros dos pobres os chama:

“Ensinados que somos que os ricos receberam maior abundância, com esta condição, que sejam ministros dos pobres, a dispensarem os bens que foram postos nas suas mãos pela bondade de Deus.(...) Todos os ricos, então, quando tem o que de que fazer o bem, certo é que aí estão como oficiais de Deus e que fazem o que lhes incumbe, isto é, ajudar o próximo na vida.”
(CALVINO apud BIÉLER, 1990, p. 429).

Calvino: “Ainda que tenhamos toda sorte de bens em grande abundância, não temos, entretanto, nada senão pela só bênção de Deus, uma vez que só ela nos ministra tudo o de que temos necessidade.” (apud BIÉLER, 1990, p. 430). Ao cristão cabe refletir acerca da origem divina dos talentos pessoais que lhe oportunizam certa profissão, bem como do gerenciamento dos ganhos que com estes adquire, pois Deus está lhe definindo o que importa e lhe é essência de conduta a fim de participar junto ao Criador do governo em providência humanitária que propôs ao homem partilhar. Calvino: “Para bem servir a Deus, e resistir a Satanás, aprendamos a contentar-nos cada um com a sua medida; e os que são ricos reflitam que tem obrigação muito maior, e que terão de prestar contas dos bens que Deus pôs em suas mãos.” (apud BIÉLER, 1990, p. 432)

“Pôr o coração nas riquezas significa mais que simplesmente cobiçar a posse delas. Implica em ser arrebatado por elas a nutrir uma falsa confiança. (...) É invariavelmente observado que a prosperidade e a abundância engendram um espírito altivo, levando prontamente os homens a nutrirem presunção em seu procedimento diante de Deus, e a se precipitarem em lançar injúria contra seus semelhantes. Mas, na verdade o pior efeito a ser temido de um espírito cego e desgovernado desse gênero é que, na intoxicação da grandeza externa, somos levados a ignorar quão frágeis somos, e quão soberba e insolentemente nos exaltamos contra Deus.”
(CALVINO, O Livro dos Salmos, Vol. 2, p. 580)

Calvino preocupa-se especialmente com as regras que deverão direcionar o uso dos bens terrenos disponíveis às mãos dos homens. Reconhece que bons servos de Deus, em observando o mau uso e desperdício ao seu redor, “querendo corrigir tão grande mal, proibiram aos homens o uso de bens materiais, a não ser em caso de real necessidade.” Nesta atitude, porém, afirma o reformador, “ataram as consciências muito mais apertadamente do que as obriga a Palavra de Deus.” (CALVINO, 2006, p. 219).

Por isso mesmo, ao refletir acerca da boa utilização dos bens terrenos, Calvino irá traçar alguns princípios que julga bom fundamento de ascese no tocante às riquezas: “O primeiro princípio a considerar é que, se os dons de Deus são dirigidos ao mesmo propósito para o qual foram criados e destinados, não podem ser utilizados equivocadamente.” (CALVINO apud HERMINSTEN, 2006, p. 103). Buscar o equilíbrio que o próprio Deus nos oferta, em sua sabedoria superior que é distinta da nossa para regular esta noção, sempre foi o parâmetro de Calvino. Pretendeu sempre ordenar sua reflexão e propor conduta relativa a qualquer situação dentro dos limites do que a Palavra de Deus expõe ao homem. O equívoco, portanto, está no uso distorcido, corrompido, mas jamais, ao uso próprio de cada bem e fruto que tivermos em mãos:

“O primeiro ponto que se deve adotar é que o uso dos dons de Deus não é mau se limitar ao fim para o qual Deus os criou e os destinou, visto que os criou para o nosso bem, e não para o nosso mal. (...) Ora, se considerarmos o fim para o qual Deus criou os alimentos, veremos que ele não quis prover à nossa necessidade, mas também ao nosso prazer e recreação
.” (CALVINO, 2006, p. 219)

Calvino orienta ao homem este equilibrado bom governo dos bens e frutos que tem à disposição em seu cotidiano. Quão distante está da visão comum religiosa que propõe determinada ascese a distorcer a relação do ser humano com as coisas da criação e obras materiais do homem, desprezando assim tanto a natureza de um como do outro. Calvino:

“Deixemos de lado, pois, essa filosofia desumana que, não concedendo ao homem nenhuma utilização das coisas criadas por Deus, a não ser por sua real necessidade, não somente nos priva sem razão do fruto lícito da benignidade divina, mas também, quando aplicada, despoja o homem de todo sentimento e o torna insensível como uma acha de lenha.”
(2006, p. 220)

Duas preocupações revelam os limites da reflexão de Calvino na busca do equilíbrio que Deus indica ao homem no trato com os bens terrenos: o exagerado resguardo de uso através da proibição de qualquer sensação e prazer, próprios que são à situação que se deseja regrar; bem como, o uso desmesurado que pode revelar dependência e também redundar em desperdício impedindo ao alcance dos propósitos de Deus. Calvino:

“Ainda que a liberdade dos fiéis com respeito às coisas externas não deva ser limitada por regras ou preceitos, sem dúvida deve regular-se pelo princípio de se regalar o mínimo possível (...) devem estar longe da intemperança! - ,e guardar-se diligentemente de converter em impedimentos as coisas que se lhes têm dado para que lhes sirvam de ajuda.”
(apud HERMINSTEN, 2006, p. 56).

Igual e fundamental atitude teve Calvino para com a usura – buscando regrar atos extremos ou desprovidos de valor, governando-os para bom fim. Em observando o reformador que a neutralidade ou o amaldiçoar dos empréstimos a juros não refletia o ensino de Deus, desenvolveu o princípio da utilização do capital a fim de gerar progresso econômico, permitindo-o em medida razoável como associação entre o investidor e o trabalhador jamais visualizando a profissão de usurário, mas sim, a possibilidade de que este empréstimo ocorresse e viesse a partilhar os lucros do empreendimento. Assim esclarece Walace, negando ao calvinismo um espírito capitalista, afirmando serem outros os seus propósitos: “Certamente, ele aprovava o desenvolvimento do comércio e ele esclarecia os pensamentos confusos dos homens a respeito do assunto da usura.” (2203, p. 84.)

De tal forma que toda “ajuda” divina através dos bens terrenos visa promover, tanto o conhecimento da Pessoa e propósitos de Deus para a vida eterna do homem; quanto ainda, servir literalmente de ajuda ao próximo – objetivo direto material de uso dos bens terrenos no tempo atual, e por isso, caridade a se resguardar pelo uso profícuo dos bens e riquezas.

“Portanto, ao fazer o bem a nossos irmãos e mostrar- nos humanitários, tenhamos em mente esta regra: que de tudo quanto o Senhor nos tem dado, com o que podemos ajudar nossos irmãos, somos dispensadores; que estamos obrigados a dar conta de como o temos realizado; que não há outra maneira de dispensar devidamente o que Deus pôs em nossas mãos, que se ater à regra da caridade. Daí resultará que não somente juntaremos ao cuidado de nossa própria utilidade a diligência em fazer o bem ao nosso próximo, senão que, inclusive, subordinaremos nosso proveito ao dos demais
.” (CALVINO apud HERMINSTEN, 2006, p. 55)

Ao finalizar este tópico da dissertação e em bom esclarecimento deste que é o principal texto da pesquisa, pois busca revelar os elementos e a unidade de associação que João Calvino visualiza ao descrever os valores de conduta do cristão em sua atuação na sociedade – a ética protestante calvinista; refletimos: a vocação do homem diante de Deus percebida como um chamado a bem conhecer Seu Criador e assim junto dEle trabalhar na obra divinal dentro do mundo; o dever e a responsabilidade declarados ao homem a fim de que possa bem assumir este privilégio e oportunidade, tanto para a edificação de sua relação com Deus, quanto para trazer satisfação à sua existência atual; a devoção enquanto lema no tocante ao que homem alcance seu objetivo, a se realizar em conscienciosa atuação no trabalho, bem como no uso regrado e destino devido que der às riquezas que possa ali adquirir; e finalmente, à boa ordenação deste chamado santo do Criador a fim de que, sim e verdadeiramente, toda sua vida e momento adentrem à este plano magistral de benção atual do mundo - ao qual o homem foi convocado não somente a ver e experimentar, mas especialmente, a junto de seu Senhor realizar: tornar solidária a humanidade a fim de que todo ser possa ser abastecido por tudo que Deus tem derramado e provido aos homens a fim de que subsistam dignamente no planeta. Eis assim, os argumentos básicos e valores fundamentais de João Calvino a fim de propor ao cristão uma atuação religiosa em meio à sociedade – A Ética Protestante no Pensamento de João Calvino.

“Quando o Senhor nos abençoa, também nos convida a seguirmos seu exemplo e a sermos levados para com o nosso próximo. As riquezas do Espírito não são para serem guardadas para nós mesmos, mas sempre que alguém as recebe deve também passá-las a outrem. Isto deve ter uma aplicação especial aos ministros da Palavra, mas também uma aplicação geral a todos os homens, a cada um em sua própria esfera.”
(CALVINO, 2006, p. 221)

“Porém, Calvino percebeu que no período de desenvolvimento comercial até a maior generosidade pessoal não poderia garantir o bem-estar do pobre. (...) As ordenanças que Calvino dispôs em 1541 falam do “hospital comunitário” que devia ser “bem mantido”, com comodidades disponíveis para o doente e para o ancião que eram incapacitados de trabalhar, com uma ala bem separada para as viúvas, para as crianças órfãs e outras pessoas pobres e com um abrigo para viajantes. Além disso, “seria necessário também, tanto para os pobres no hospital, quanto para aqueles que estavam na cidade que não tinham meio de sobrevivência, que um médico e um cirurgião fossem especialmente nomeados às expensas da cidade.”
(WALLACE, 2003, p. 82)

No terceiro e findo tópico desta dissertação, serão desenvolvidas certas doutrinas e conceitos teológicos de João Calvino, a fim de que toda conduta orientada neste capítulo enquanto edificação de uma ética protestante seja adequadamente compreendida dentro da necessária estrutura teológica sistematizada pelo reformador."

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Fonte:
IVAN SANTOS RUPPELL JÚNIOR: A ÉTICA PROTESTANTE NO PENSAMENTO DE JOÃO CALVINO”. (Dissertação apresentada ao curso de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Ciências da Religião. Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Cavalcante). São Paulo, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

3 comentários:

  1. muiiiiiiiiiiiiiiiiiiitooooooooooooo grande mas me ajudou no trabalho da escola !

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  2. achei mto grande... mas foi mto útil pro meu trabalho de filosofia...

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  3. Eu realmente precisava ler esse texto...muito obrigado de verdade, não tem ideia de como me ajudou.

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