O bom selvagem e o homem civilizado


“Começamos a primeira parte de nosso trabalho onde abordaremos a questão pedagógica do ensino aos meninos tratada no Emílio. No presente capítulo e no próximo, trataremos exclusivamente de Rousseau. Explicaremos a questão do bom selvagem e do homem civilizado neste capítulo e no seguinte, ilustraremos a educação exclusiva de Emílio por Rousseau.

Nosso filósofo aborda o tema do “Bom Selvagem” em quase toda a sua obra literária. Em algumas de suas incursões filosóficas, ele chega até mesmo a considerar os orangotangos como “homens selvagens”, como por exemplo, no Discurso sobre a origem da desigualdade:

De modo algum se encontram nessas passagens os motivos nos quais os autores (da Histoire Générale des Voyages) se fundamentam para recusar a esses animais o nome de homens selvagens, mas é fácil imaginar dever-se isso à sua estupidez e, também, a não falarem; são razões fracas para aqueles que sabem que, apesar de o órgão da palavra ser natural ao homem, a palavra em si, todavia, não lhe é natural.
(p.304)

Segundo Rousseau, a fala é um sinal de destruição, de algo não-natural. Quando o homem começou o processo oral, ele falava de amor. Nesse caso, o bom selvagem se expressava com seu coração utilizando as palavras. Ao longo do tempo, as palavras criaram uma forma literária. Entretanto, hoje o ser humano usa o discurso oral para obter mais poder e dinheiro, o que é totalmente dispensável em uma vida natural, embora, imprescindível em uma vida social. Podemos dizer, então, que a palavra pode ser considerada como algo não-natural, já que a sua utilização é maléfica e degenerativa ao homem. O homem civilizado usa as palavras como principal via de comunicação. Entretanto, o homem selvagem se comunica de uma maneira mais lúdica, com poucas palavras e mais expressão de sentimentos.

No que diz respeito ao assunto da fala, Rousseau fez um ensaio sobre a filosofia da linguagem, que se chama O Ensaio sobre a origem das línguas. Na referida obra, ele aborda idéias admiravelmente originais e claras, tais como a distinção entre sensações e juízos. Porém, esses conceitos não serão abordados no presente trabalho.

Voltando ao nosso tema do capítulo: o homem selvagem é governado por seus desejos e sensações imediatos. Ele segue seus instintos e vive com a natureza. Rousseau considera o homem selvagem em seu estado natural, que não deve sofrer nenhum tipo de mudança para conservar-se. A idéia da natureza está presente constantemente no pensamento de Rousseau, assim como na educação do homem selvagem, como veremos no seguinte trecho:

Trabalhamos de concerto com a natureza, e enquanto ela forma o homem físico nós procuramos formar o homem moral, mas nossos progressos não são os mesmos. O corpo já está robusto e forte enquanto a alma ainda está inerte e fraca e, faça a arte humana o que for, o temperamento sempre precede a razão. Concentramos até aqui todas as nossas atenções em reter um e exercitar a outra, para que o homem seja sempre uno, o mais possível. Desenvolvendo o caráter, despistamos sua sensibilidade nascente, ordenamo-lo cultivando-lhe a razão. Os objetos intelectuais moderavam a impressão dos objetos sensíveis. Remontando ao princípio das coisas, subtraímo-lo ao império dos sentidos; era simples elevar-se do estudo da natureza à busca de seu autor.
(Emílio, livro IV, p.450)

Entretanto, mesmo sendo um naturalista, como Rousseau era considerado, ele sabia que tal criatura não era inteiramente humana. Aquele ser pacífico e de vida simplória não tinha as capacidades nem as potencialidades humanas desenvolvidas para viver em uma sociedade. Rousseau tinha evidente clareza que aquele selvagem não teria o estado ideal do homem moderno, era algo inconcebível um ser natural vivendo em sociedade. Ele era ingênuo e bom demais para viver em uma sociedade. Porém, Rousseau acreditava que na verdade era possível viver em sociedade, mesmo permanecendo fiel à natureza humana. Mas como isso seria possível? Há uma ambigüidade aí, mas vamos tentar explicá-la: Rousseau educa Emilio para que este seja capaz de viver em sociedade e por outro lado, educa Sofia para que esta possa viver com Emílio sendo sua boa esposa. Contudo, Rousseau era um especialista na educação dos meninos, ou mais especificamente, na educação infantil dos meninos. Na verdade, Emilio é um selvagem que está sendo preparado para viver em sociedade. Porém, Emilio não será um homem civilizado por completo, ele não será como os outros. Mas devido à educação recebida, ele estará apto a viver e conviver com os outros homens civilizados da sociedade na qual viverá. Veremos mais sobre a educação de Emilio no capítulo seguinte.

O bom selvagem expressa o amor de si mesmo, que é um sentimento natural, onde o ser humano procura cuidar de sua própria preservação e esbanja humanidade e virtude. O homem quer viver em harmonia consigo e com os outros. Devido a tal concepção, podemos concluir que quando o homem dá o amor de si mesmo, ele está sendo naturalmente bom. Tiramos algumas conclusões a partir da concepção do amor de si mesmo:

1. É certo e sadio acreditar que os seres humanos lutem para e pela sua existência, por isso eles devem se amar. Só amando muito, eles serão capazes de lutar. O amor é muito maior que a luta e por isso, seguirão lutando para conseguir seus objetivos.
2. Tal amor conduz o ser humano a uma disposição natural, boa e benigna. O amor é o sentimento mais natural e puro que existe entre os seres humanos. Devemos amar a si mesmo primeiro para depois amar o outro.
3. Esse sentimento dirige o ser humano a uma conduta boa e benéfica. O amor nos leva a agir sempre levando em consideração o bem estar de si e do outro.

Podemos, então, afirmar que o amor de si mesmo é o oposto do amor-próprio. Este é outro conceito importante no pensamento de Rousseau, ele é o sentimento que domina o homem civilizado. Enquanto o bom selvagem nutre o amor de si mesmo, o homem civilizado nutre o amor-próprio.

O amor-próprio é aquele sentimento de superioridade, de vaidade que um ser humano nutre quando convive com outro. Ou seja, na vida em sociedade, sempre há a relação entre pessoas, dentre elas a relação de superior e submisso e de dominante e dominado. As relações de hierarquia dominam a vida dos homens em sociedade. Quando o homem convive com outros e estabelece uma vida em sociedade, ele passa a nutrir o amor-próprio.

O amor de si mesmo, que só considera a nós mesmos, fica contente quando nossas verdadeiras necessidades são satisfeitas. Enquanto que o amor-próprio, que é um sentimento que sempre se compara aos outros, nunca fica contente. Este último sempre está preferido aos outros e também exige que os outros prefiram a ele, o que é evidentemente impossível. Visto isso, podemos dizer que somente as paixões doces e afetuosas nascem do amor de si mesmo. Por outro lado, as paixões odiosas e irascíveis nascem do amor-próprio. Os bons sentimentos são originados no amor de si mesmo, enquanto que os maus sentimentos são oriundos do amor-próprio.

Dando um grande salto de conceitos, Rousseau propõe no Contrato Social uma forma de sociedade humana que pode ser criativa, benéfica e engrandecedora para todos os envolvidos nela. Mas, como poderia tal sociedade ser criada? Contudo, primeiramente, vamos ampliar nossos conceitos primordiais de Rousseau antes de chegarmos à tal ponto.

Pensemos de imediato na seguinte citação: A natureza fez o homem bom e feliz, mas a sociedade o deprava e o faz com que ele se torne miserável (p. 13). Esta é uma frase bem famosa e discutida do pensamento de Rousseau. Ela está presente no seu livro Rousseau juge de Jean-Jacques, onde nosso autor expressa claramente seu pensamento em relação ao homem: o qual ele declara bom por natureza. O homem natural é bom por si mesmo, mas quando passa a conviver em sociedade, ele se transforma em uma criatura deplorável. Segundo Rousseau, o que torna o homem essencialmente bom é ter poucas necessidades e pouco se comparar com os outros. Enquanto que o que o torna essencialmente mau é ter muitas necessidades e dar muita atenção à opinião alheia. O homem é bom e feliz vivendo livremente no campo, porém quando passa a viver em sociedade, ele se torna miserável. Há dois tipos de vida a considerar: a do campo e a da cidade.

A natureza possui um papel grandioso no pensamento rousseauniano. Rousseau foi considerado um pensador naturalista de sua época, pois ele usava muito os termos associados a natureza em seus escritos, tais como:

1. “O homem naturalmente bom”. Deus o concebeu bom, natural e puro. Ele é uma criatura divina. Só uma criatura divina poderia possuir tais predicados.
2. “O estado de natureza”, que considerado o estado ideal para passar toda uma vida e é como o bom selvagem vive. Quando vivemos na natureza, somos livres e vivemos mais felizes. Amamos a natureza e convivemos muito bem com ela.
3. “O campo”, que o local mais adequado para viver e receber a educação proposta por Rousseau no Emílio. Veremos as especificações da vida levada no campo no capítulo seguinte.
4. “A educa ão natural” conceituada como a mais adequada e onde o indivíduo tem todas as chances de progredir de forma plena e satisfatória nos seus estudos. Tal educação só poderia ser aplicada ao individuo que vive livremente no campo, em total estado de natureza.

Rousseau concebe o homem natural como aquele ser de caráter límpido e intacto. Logo, podemos entender porque o “bom selvagem” do nosso autor o homem primitivo e original. Ele é o ser que nasceu com todos os melhores atributos positivos que nenhum outro poderia nascer. Ou seja, ele é naturalmente bom, pacífico, inocente, sereno, saudável, benigno etc. O bom selvagem é o ser que possui todos os atributos positivos e bons que um ser pode possuir. Todavia, ainda nutre o amor de si mesmo como um sentimento essencialmente natural que leva todo e qualquer animal a cuidar de sua própria preservação e a buscar a harmonia com o todo.

O homem natural não possui vícios nem virtudes, pois em seu estado selvagem, ele não é virtuoso nem tampouco mau. Ele desconhece totalmente tais conceitos. O homem selvagem está com a mente ocupada por outras prioridades, que são suas necessidades pessoais. O que importa para o bom selvagem é satisfazer suas necessidades pessoais – tais como, comer, dormir, fazer necessidades fisiológicas, amar e cuidar de si mesmo e de todos e tudo em sua volta. Essas são as grandes preocupações do homem selvagem.

No que diz respeito ao trabalho, o bom selvagem é bem parecido com o artesão, que é aquele ser que faz trabalhos manuais e é totalmente livre. O artesão só depende do seu trabalho para ser feliz. Tal atividade é absolutamente honesta e útil e por isso a mais nobre atividade que o homem exerce.

Entretanto, como Rousseau pôde afirmar que a sociedade corrompe o homem bom de tal maneira a torná-lo mau? Será que esse homem tão inocente e primitivo não possuía uma natureza essencialmente pura e boa como foi afirmado por Rousseau? Ou será ainda que a sociedade teve um poder de influência tão forte sobre esse homem indefeso que foi capaz de transmudar tanto a sua própria natureza?

Faremos uma analogia para exemplificar e resumir o pensamento do “bom selvagem / homem civilizado” de Rousseau. Vamos imaginar que esse ser natural e selvagem é como uma criança. Pensemos melhor: o bom selvagem é uma criança inocente e ingênua. Rousseau afirma que foi a natureza que concebeu o homem e como foi dito anteriormente, o homem é uma criação divina e natural. Continuando, Deus criou o homem bom e feliz para viver harmoniosamente com a natureza que o cerca. Logo, como tal criação divina transformou-se num produto corrompido pela sociedade? O homem natural, criação de Deus todo poderoso, sofreu influências tão exacerbadas do mundo externo que o transformaram num homem civilizado, degenerado e mau? Refletindo um pouco, poderemos chegar à conclusão que o homem só era bom e puro enquanto vivia de acordo com as regras da natureza. Logo depois que ele passou a conviver em sociedade, ocorreram mutações gigantes em seu íntimo que o transformaram em um homem civilizado, que tem todos os defeitos imagináveis. Tais como: artificial, corrupto, maligno, dissimulado e que nutre o amor-próprio como um sentimento exagerado. Podemos conceber o conceito de amor-próprio como sendo similar ao sentimento de vaidade e orgulho, onde o ser humano se satisfaz sendo superior e dominador. Rousseau designa o homem degenerado como aquele ser puro e bom que sofreu más influências externas. Devido a tais influências, ele foi corrompido pela sociedade e se tornou mau e egoísta. No pensamento rousseauniano, a maldade é antinatural e no momento que o homem se torna mau, ele deixa de ser puro e natural.

A seguir, vamos dar outros exemplos usando uns conceitos opostos para compor as idéias dos homens natural/selvagem e civilizado/degenerado:

1. O homem selvagem trabalha bastante, porém não pensa tanto quanto deveria. Enquanto que o homem civilizado pensa mais do que trabalha.
2. O conceito de felicidade para o homem natural é tão simples quanto sua vida o é. Ou seja, a felicidade consiste na sua saúde, na sua liberdade, na sua necessidade e no não-sofrer. Enquanto que o conceito de felicidade para o homem civilizado consiste em uma complexidade de fatores e, sobretudo no poder que ele tem.

Em seus últimos escritos, alguns comentadores crêem que Rousseau revela que O Contrato Social coloca em questão o amor-próprio. E, sobretudo, reforça e amplia sua influência na vida do ser humano. Mas, esse é um assunto para ser tratado em uma outra pesquisa. Contudo, ele nos dá a esperança de haver um homem ideal e verdadeiro. Rousseau nos incita a pensar em duas hipóteses para a construção de tal homem:

1. Deveríamos polir o bom selvagem através da boa educação do Emílio, transformando-o em um homem natural que vive em sociedade. Logo, o selvagem não é o homem ideal...
2. Deveríamos corrigir o homem degenerado através do contrato social, transformando-o em cidadão. Mas, esse também não seria o homem ideal.

Poderíamos assegurar que Rousseau constata a partir das idéias expostas que o homem ideal e verdadeiro é uma mescla do bom selvagem com o homem degenerado. O homem ideal seria a justa-medida entre o homem selvagem e o homem civilizado. Seria ele real? Ainda seria possível afirmar que para a construção de tal homem seria necessário que se faça uma busca interna, dentro de si mesmo. Rousseau, como bom escritor romântico, acreditava que o homem ideal, natural e verdadeiro estava adormecido dentro de cada um de nós e cabe a nós mesmos acordá-lo.

Tendo em vista as idéias expostas até aqui, podemos concluir que os dois homens existem somente na imaginação fértil de Rousseau. Na vida real, não há exclusivamente bons selvagens nem homens degenerados. Acreditamos que há variações entre os dois, mas nada nem como um nem como o outro puramente. Rousseau criou dois personagens tão diferentes e fez com que os leitores se dividam e tendam a torcer mais por um e nada pelo outro.

Nosso filósofo foi um homem ambíguo, ao longo dos seus sessenta e seis anos de vida. Ele escrevia com o coração, porém agia com a razão. Ele era doce e sereno nos escritos, enquanto que na vida real, ele era amargo e impaciente. Rousseau sempre trabalhava com conceitos opostos. Isso o fascinava. Ele sempre escreveu usando pelo menos dois lados, dois opostos. Assim ficava mais fácil para argumentar e para criar polêmica. Nosso mestre buscava levar uma vida simples e natural, o que contrariava suas idéias complexas e fora do padrão de sua época. Na realidade, Rousseau era o bom selvagem vivendo em uma sociedade. Ele era a real oposição personificada e podemos afirmar, visto seus escritos e tendo estudado seu comportamento segundo comentadores, que os dois homens residiam nele. Só uma figura ilustre como ele poderia encarnar dois tipos de homem tão diferentes.

Como início do nosso trabalho, nesse primeiro capítulo, tentamos situar o leitor no universo rousseauniano e expor as idéias principais dos homens selvagem e civilizado segundo Rousseau. Concluímos com a seguinte citação:

O homem e o cidadão, qualquer que seja ele, não tem outro bem para colocar na sociedade a não ser ele próprio, todos os outros bens estão ali mesmo contra a sua vontade
. (Emílio, livro III, p. 261)"

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Fonte:
Andréa Ferreira dos Santos Santoro: “A Questão Pedagógica A Partir do Emílio de Rousseau”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Wilson John Pessoa Mendonça). Rio de Janeiro, 2010.

Nota
:
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