Rousseau leitor de Plutarco



Outra grande influência sofrida por Rousseau, diz respeito às obras de Plutarco. Este é uma das primeiras leituras de sua infância e uma das últimas de sua vida. Nas Confissões, ao descrever o período de sua infância que vai de 1719 a 1723, Rousseau relata que seu pai e ele, após esgotarem a biblioteca de sua mãe recorreram aos livros que haviam herdado de seu avô. Ele nos lista alguns dos principais títulos desta biblioteca, dentre os quais “A História da igreja e do Império, por Le Sueur, os Discursos sobre a História Universal, de Bossuet, os Homens Ilustres de Plutarco,(...) as Metamorfoses de Ovídio e alguns tomos de Molière”. Tais livros teriam sido transportados para o gabinete de seu pai onde ele os desfrutara diariamente enquanto seu pai trabalhava. Sobre essa fase de sua infância, ele escreve: “Adquiri um gosto raro e talvez único, nessa idade. Sobretudo Plutarco tornou-se minha leitura favorita”.

As influências destas primeiras leituras teriam sido fundamentais para a formação do caráter do pensador genebrino, e não é de surpreender que no
Emílio, ao tratar da formação moral de seu jovem aluno, Rousseau sugira Plutarco como uma das principais leituras a serem realizadas. O autor afirma que “dessas interessantes leituras” e das conversas que elas produziram entre ele e seu pai, “formou-se este espírito livre e republicano, este caráter indomável e altivo que não suporta jugo nem servidão”.

Em seu artigo de 1926, Morel analisa algumas das principais ocorrências nas quais Rousseau exprime seu entusiasmo por Plutarco. Entusiasmo este que surge, como pudemos perceber, em sua mais tenra infância, e que não o abandona jamais, evidenciando-se ainda ao final de sua existência.

A partir da análise do manuscrito 7842 da Biblioteca de Neuchâtel, um caderno de notas no qual Rousseau registrava passagens das obras que lia e que considerava próprias a serem conservadas para lhe auxiliarem na construção de sua própria obra, Morel afirma que
“as pesquisas de fontes perdem muito de seu caráter hipotético e conjetural”. Tal manuscrito é, em seu entender, “o documento mais seguro para quem se dedica a seguir a evolução das idéias de Rousseau”. O documento em questão, segundo o autor, demonstra claramente que, para além das Vidas Paralelas que marcaram a infância do genebrino, as Obras Morais de Plutarco também contribuíram fortemente para a construção da personalidade de Rousseau e percebemo-las de forma evidente em sua escrita. Oltramare confirma esta ampliação dos horizontes de leitura das obras de Plutarco, que vão das Vidas às Obras Morais, chegando mesmo a precisar a data do início destas.

Por volta de que idade Rousseau empreende a leitura das obras morais ? Deve ter sido provavelmente ao 27 anos, por ocasião da febre de trabalho que desenvolveu durante os dois invernos passados nas Charmettes. (...) Serão doravante as
Obras Morais das quais ele fará o maior número de citações textuais. Ele continua a encontrar nas biografias o mesmo charme de outrora; mas são os tratados filosóficos que ele utiliza com mais prazer até a sua velhice.

Segundo Romano:
“Seja qual for a opinião sobre Plutarco, o fato é que ele foi lido e ajudou a formar as percepções éticas, políticas, estéticas e filosóficas da França cultivada, até a época em que Diderot liderou as luzes, enquanto seu irmão e adversário Rousseau se consolava da solidão lendo o tratado ‘Como tirar proveito de nossos inimigos’.” É verdade que Rousseau escreve seus Devaneios tendo Plutarco como companhia e influência, para acompanhá-lo em seu exílio. É em momentos como este que Plutarco fazia jus à designação de ‘mestre consolador’ que Rousseau lhe atribuía. Mas, para além de inspirar esses passeios nostálgicos e contemplativos, Plutarco também se fez presente na obra de Rousseau em momentos nos quais o genebrino pretendia imbuir em seus contemporâneos sentimentos mais aguerridos e menos efeminados, e uma linguagem de ação e não simplesmente de divertimento. Nesse sentido, parafraseando uma passagem de Rousseau, escreve Romano: “O leitor de Plutarco considera grave defeito, na fala e na escrita, utilizar ‘um estilo demasiado florido e demasiado suave se, além disso, ele nada significa e não pode produzir nenhum efeito além do som das palavras”.

Tal influência mostra-se claramente quando Rousseau no primeiro capítulo do
Emílio critica a forma efeminada e sem energia como ensinavam os jovens a falar no século XVIII, que era destinada somente às tagarelices dos salões e que não possuía nenhuma utilidade para o bem comum. Segundo ele, “um homem que só aprendeu a falar nos aposentos não será ouvido à frente de um batalhão e não se imporá ao povo numa revolta. Primeiro, ensinai às crianças a falar aos homens, pois elas saberão falar às mulheres quando preciso”.

Além disso, outro sinal indelével da presença plutarquiana nos textos rousseaunianos é seu elogio ao laconismo lacedemônio, inspirado na leitura das
Vidas dos homens ilustres de Plutarco, que aparece já no primeiro capítulo do Essai sur l’origine des langues, por ocasião do que poderíamos chamar de elogio da ‘eloquência turca’ em contraposição à francesa. Segundo Rousseau, “enquanto um francês se agita e martiriza o corpo dizendo muitas palavras, um turco tira por um momento o cachimbo da boca, diz a meia voz duas palavras e esmaga-o com uma sentença”.Esse mesmo elogio do laconismo e desta eloquência muda pode ser encontrado também no Emílio onde o autor escreve:

O que os antigos fizeram com a eloqüência é prodigioso; mas essa eloqüência não consistia apenas em belos discursos bem ordenados, e nunca ela teve mais efeito do que quando o orador menos falava. O que se dizia com maior energia não se exprimia por palavras, mas sim por sinais; não se dizia, mostrava-se.[...]. Trasíbulo e Tarquínio cortando cabeças de papoulas, Alexandre aplicando seu selo na boca de seu favorito, Diógenes andando diante de Zenão não falavam melhor do que se tivessem feito longos discursos? Que rodeio de palavras teria expressado tão bem as mesmas idéias?

Insistamos ainda sobre a questão da linguagem, do seu uso bajulatório e dos efeitos deste uso, de como sua utilização pode interferir em nossa sociabilidade, para melhor ou para pior. Segundo Morel, Rousseau vai encontrar em Plutarco,
“o germe desta verdade que pouco a pouco se descobre, e se precisa: os homens não são maus, mas corrompidos. Outros homens perversos os desviaram, depravaram. Existem, diz Plutarco, terríveis bajuladores que não se limitam a prejuízos superficiais, e que por meio de mentiras sagazes promovem uma corrupção irremediável.” Tal corrupção se estabelece através de uma perversão da linguagem que ocorre ao darem “aos vícios o nome de virtudes”, deflagrando assim tanto uma deturpação lingüística quanto moral.

Estas marcas da influência plutarquiana na obra de Rousseau demonstram bem a extensão do interesse do mesmo pelos textos de Plutarco. Tal influência se mostra também no que concerne ao tema da história.

Rousseau no capítulo IV do
Emílio, ao tratar da formação moral, escreve que ao começar a sentir o seu “ser moral” o jovem ou adolescente “deverá estudar-se por suas relações com os homens”. Este, segundo o autor, seria“o trabalho de sua vida inteira”. No intuito de melhor conhecê-los e orientar suas ações no mundo é que o autor ressalta a importância de se conhecer a história do mundo e dos homens. Segundo ele:

Para conhecer os homens, é preciso vê-los agir. No mundo, ouvimo-los falar; eles mostram seus discursos e escondem suas ações; na história, porém, elas são reveladas e julgamo-los pelos fatos. Suas próprias palavras ajudam-nos a apreciá-los, pois, comparando o que fazem com o que dizem, vemos ao mesmo tempo o que são e o que querem parecer; quanto mais se disfarçam, melhor os conhecemos.

Como podemos perceber, para o autor, é na história que se revelam as ações ou o conhecimento acerca das mesmas, no sentido de que, por mais que os homens disfarcem suas verdadeiras intenções, ou que se pronunciem de tal ou tal maneira, suas verdadeiras intenções ou seu caráter, são revelados com o passar do tempo. A história coloca a descoberto os traços de caráter que se procurou disfarçar através de belos discursos ou dissimulações."

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Fonte:
Evaldo Becker: “Política e Linguagem em Rousseau”. (Tese de Doutoramento apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Orientador. Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento). São Paulo, 2008.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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