Rousseau, o bom rebelde



“Para entendermos a obra de Rousseau, não basta voltarmos nosso olhar para a França do século XVIII. É necessário olharmos algo também do contexto suíço, de onde ele veio.

Rousseau nasceu em Genebra e esse fato influenciou muito toda sua trajetória tanto como cidadão quanto como escritor. Diferentemente das cidades vizinhas, Genebra era uma república e não uma monarquia. Conforme Doudet (2004, p. 20), a população era dividida em quatro categorias. Os cidadãos que tinham plenos direitos, podendo exercer qualquer profissão ou cargo; os burgueses, que eram hierarquicamente inferiores e podiam exercer os principais cargos, mas não podiam votar no Conselho Geral; os nativos, filhos de pais estrangeiros, mas que nasceram em Genebra e que tinham direito revogável à residência, pagavam taxas e impostos e não podiam ascender a cargos no legislativo ou no executivo; finalmente, havia os sujeitos que eram soldados mercenários ou pessoas oriundas dos países sob autoridade genebrina. Nesse contexto, as mulheres e os menores eram excluídos da hierarquia e não votavam. O poder político era dividido entre o Conselho Geral que era a Assembléia Legislativa e o Pequeno Conselho.

Havia dois partidos que dividiam a população e essa divisão era também geográfica: a cidade alta, dos ricos, e a cidade baixa, onde ficavam os bairros populares.

Finalmente, é preciso não esquecer que Genebra era uma cidade calvinista, onde a política e a religião se distinguiam e a vida era marcada pela austeridade e rigor moral. Decretos e leis regiam um puritanismo sem concessões, onde o teatro era proibido, jóias e adornos excessivos eram condenados, os adúlteros eram condenados à exposição pública, prostitutas eram lançadas à água e ter filhos fora do casamento era um crime impensável (DOUDET, 2004, p. 21).

Sobre a vida de Rousseau, Doudet (2004, p. 22 a 25) relata detalhadamente os fatos. Ele perdeu a mãe pouco depois de nascer, em 1712, e foi criado pelo pai que não era muito rigoroso na tradição genebrina, apesar de ser de origem protestante. Rousseau aprendeu a ler nos romances deixados pela sua mãe e nos livros de história de seu pai que não o submeteu à educação formal rígida. Aos dezesseis anos de idade, saiu de Genebra e foi acolhido por um missionário na fronteira suíça que prometeu ajudá-lo se ele se convertesse ao catolicismo, o que ele concordou em fazer. O cura o enviou à casa de Mme. de Warens que se tornou o centro de gravidade de sua juventude. Ela assumiu sua educação e eles se tornaram amantes. Quando ela arranjou outro amante, ele partiu para continuar sua instrução como autodidata. Tornou-se professor em Lyon na casa de M. de Mably que era irmão de um dos enciclopedistas. Foi ali que Rousseau descobriu o mundo intelectual francês.

Aos trinta anos, com uma vasta bagagem cultural e tendo viajado e exercido vários pequenos ofícios, ele partiu para Paris, confiante em seu talento de intelectual e de músico.

Ali ele conheceu Fontenelle (1615-1757), Marivaux (1688-1763) e Diderot (1713-1784) e entrou para a sociedade parisiense. Durante um ano ficou em Veneza como secretário do embaixador Montaigu. Ao voltar, retomou as atividades musicais e viveu maritalmente com Thérèse Levasseur. Foi nessa época que conheceu Voltaire (1694-1778). Em 1747 teve um filho que abandonou, como viria a fazer futuramente com outros quatro.

O fato de ter abandonado seus filhos está em acordo com o que Doudet (2004, p. 26-7) diz a respeito de Rousseau. Segundo a autora, ele era vítima de pensamentos baixos e mesquinhos, mas também de sentimentos sublimes. Essa tensão interna se refletia em todos os aspectos de sua vida. Rousseau queria ser aceito socialmente, mas não suportava as obrigações e rituais da vida social. O ato de abandono de sua prole não parece ser a ação da mesma pessoa que escreveu Emílio que é um tratado sobre a educação de uma criança desde seu nascimento até que seja homem feito. A obra traz orientações sobre praticamente todos os aspectos, desde a alimentação até a escolha de uma companheira, e defende que a criança deve passar por todas as etapas do crescimento guiada por um adulto, de preferência a mãe.

Suas atividades artísticas aumentaram e ele passou a ter contato com Condillac (1715-1780, Diderot, Jacob Grimm (1785-1863), D’Alembert (1717-1783) e redigiu os artigos sobre música para a Enciclopédia. Foi nesse período que ele conheceu Mme. d’Epinay, que desempenharia um papel importante em sua vida.

Em outubro de 1749, a caminho de Vincennes para visitar Diderot, Rousseau leu num jornal algo sobre um concurso da academia científica de Dijon acerca de se o progresso da ciência e das artes estaria contribuindo para corromper ou melhorar a moral. Rousseau disse ter tido ali uma experiência que chamou de “l’ilumination de Vincennes” e redigiu seu Discours sur les sciences e les arts que foi publicado em 1750 e o tornou reconhecido. Sua tese era a de que, diferentemente do que pensavam os iluministas, o progresso perverte a humanidade e desnaturaliza sua virtude natural.

Essa tese, influenciada por sua infância livre e próxima da natureza, bem como pelas decepções da vida mundana, e devido ao insucesso de uma obra musical sobre a qual ele colocara suas ambições, foi totalmente contrária ao movimento em voga, que enaltecia o espírito científico e o progresso. Foi assim que o escritor, cujo pensamento se elaborava sobre temas musicais, como a presciência da melodia sobre a harmonia, decidiu se tornar filósofo e propor uma tese paradoxal que defendia o antagonismo entre a civilização e a virtude, denunciando a vaidade do conhecimento, a inutilidade da filosofia e a nocividade do luxo.

As reações ao documento foram sensíveis e Rousseau decidiu então voltar para Genebra e rejeitar o catolicismo. Em 1755, publicou o Discours sur l’inegalité, no qual denunciou a artificialidade do sonho dos enciclopedistas, propôs um retorno à natureza, à simplicidade e à virtude. A essa altura ele havia se indisposto com toda a intelectualidade da época. Foi então que aceitou a oferta de Mme. d’Epinay de viver na sua propriedade, Ermitage, perto da floresta de Montmorency. Ali conheceu Mme. d’Houdetot, por quem se apaixonou; e foi essa paixão romanesca que ecoou mais tarde em Júlia, ou A nova Heloísa. Mas ele também acabou se desentendendo com Mme. d’Epinay e deixou a Ermitage, aceitando a hospitalidade do Marechal de Luxembourg, em Montmorency, onde ficou até 1762. Durante esses anos, ele teve uma intensa atividade criativa, produzindo três grandes obras: Júlia, ou A nova Heloísa em 1761, que foi um imenso sucesso, Do contrato social e Emílio, ambos em 1762. Esta última provocou tal escândalo que, em 9 de junho, o parlamento de Paris condenou a obra, principalmente, pelas idéias religiosas ali expostas. Foi expedido um mandato de prisão contra Rousseau, que foi para a Suíça apenas para sofrer mais uma decepção. Sua obra foi também condenada e queimada publicamente em Genebra. A partir daí, ele passou a ser perseguido política e religiosamente. Rousseau buscou refúgio então em Môtiers, perto de Neuchâtel, onde escreveu as Confissões. Em 1764 escreveu as polêmicas Cartas escritas da montanha e teve como conseqüência sua casa atacada. Em seguida, ele se refugiou na ilha Saint-Pierre e depois foi para a Inglaterra a convite do filósofo David Hume. No entanto, logo se desentendeu com seu anfitrião. Todos esses acontecimentos perturbaram a existência do filósofo que se tornou paranóico e obcecado pela idéia de um complô para destruir suas idéias e sua pessoa. Ele retornou a Paris, onde recomeçou a ganhar sua vida copiando música e dividiu seu tempo entre a botânica e os passeios. Morreu em julho de 1778 em Ermenoville, deixando inacabado o livro de memórias Les reveries du promeneur soliteur.

Sobre a personalidade de Rousseau, Doudet (op. cit, p. 27 a 29) comenta que ele vivia uma discordância entre o que ele era e o que a sociedade queria que ele fosse. Como autor da moda ele recusava as obrigações da vida social. Para ele, conversar, escrever cartas e fazer visitas era um suplício. Sua obra política foi apresentada como uma das fontes da Revolução, apesar de ele não ser revolucionário nem um homem de ação. Reivindicava a liberdade de pensamento, mas tomava todas as precauções necessárias para não trazer inquietação e recomendava o respeito ao governo, obediência às leis e a não violação dos direitos das pessoas. A autora relata que:

Cette discordance entre ce qu’il est et ce que la société voudrait qu’il sois esta u centre de la personnalité de Rousseau et éclaire l’ensemble de sés ouvres. [...] Toujours mal à l’aise em société alors qu’il était um auteur à la mmode, Il refuse les obligations de la vie sociale. (p.27)
[...]
... défenseur farouche de La liberte individuelle, Il repugne au désorde social e conserve une certaine prudente. (p.29)

O mandato de prisão após a publicação de Emílio foi um verdadeiro trauma, pois ele defendia a liberdade individual, não gostava de desordem social e se considerava prudente.

Ainda para Doudet (p. 48-50), não se pode separar o Rousseau escritor do Rousseau filósofo, sonhador sentimental e construtor da filosofia moderna. Ele gostava tanto do imaginário que, ao refletir sobre suas leituras quando jovem, ele as responsabiliza pela sua dificuldade de encontrar-se com a realidade.

A dificuldade de Rousseau de se sentir bem como escritor é claramente explicada no Discurso sobre as ciências e as artes – a ruptura que existe entre o gosto que se desenvolve no progresso das civilizações e a exigência moral. Rousseau considerava que existe uma ligação entre a moral e as artes, mas essa ligação é negativa. Ele viu no progresso das artes a degradação da moral. Segundo ele, essa lei da história afetou a França da mesma maneira como havia feito no Egito, em Atenas, em Roma e em Constantinopla.

Quanto ao homem, Rousseau dizia que o que o distinguia dos outros animais não era a razão como diziam os iluministas e sim a liberdade, o poder de escolha e o livre arbítrio.

No tocante à religião, ele considerava que esta e o Estado deveriam ser distintos. A religião deveria ser no Estado e para o Estado e não do Estado ou de Estado. A fé é pessoal e sobre ela o Estado não deveria ter qualquer controle. Ele não gostava dos ritos protestantes nem dos católicos. Para ele, o êxtase da natureza narrado nas Rêveries e ilustrado em La nouvelle Héloïse é um meio de identificação mística com um Deus compassivo e pessoal (DOUDET, p. 57, 67, 68).

Vemos, assim, na apresentação de Doudet, um músico por gosto, um filósofo por escolha, autobiógrafo e romancista por imposição, que cria numa polifonia de obras, típicas de sua época, a contradição genérica que mascara sua unidade ideológica (p. 9).

Butler (2002, p. 217 a 219), outra autora que refletiu sobre a vida e a obra de Rousseau, diz que a questão do cuidar teve um papel constantemente presente e problemático na vida dele. Pelos seus escritos autobiográficos, percebe-se que nas funções de receptor ele matou a mãe (mesmo involuntariamente), passou sua vida rodeado de mulheres que cuidavam dele, e viveu da bondade de outros. Ele não conseguia conciliar sua necessidade de independência com suas demais necessidades. Inclusive suas amizades acabaram desastrosamente devido à sua falta de habilidade em administrar suas relações. Tampouco ele era eficiente no cuidado de outros, pois abandonou seus cinco filhos por não se sentir capaz de cuidar deles. Ele afirmou que eles estariam em melhor situação separados dele do que sob seus cuidados.

Em relação à obra de Rousseau, Fermon (1997, p. 1, 2) afirma que ela sempre une as pessoas, seja para condená-lo ou para aprová-lo, pois busca conhecer os problemas mais profundos do ser humano, os que tratam de autonomia, da comunidade, do amor sexual, ilegal ou legítimo. Ela considera (p. 5) que Rousseau era consciente de que o que ele havia concebido como problemas particulares eram, na verdade, males sociais gerais. Sua experiência perde, assim, seu caráter privado e se torna paradigmático do que ele diagnostica como sendo o mal social e político de seu tempo.

A publicação de Júlia, ou A nova Heloísa, explica Doudet (2004, p. 109), veio reforçar a atitude aparentemente contraditória de Rousseau face ao gênero romance. Ele se nutriu de leituras de romances na sua infância e viu no romanesco o acesso privilegiado ao ideal, principalmente amoroso. Mas ele condenava severamente o que considerava ser quimeras. Esse aspecto será retomado mais adiante ao analisarmos a obra. Segundo a autora (p. 82), Júlia, ou A nova Heloísa é a única concessão que Rousseau faz ao romanesco. Ele o escreveu para proteger no plano ideal seu amor por Sophie d’Houdetot e para sonhar com a realização da sociedade ideal. O longo romance epistolar teve o poder de renovar o gênero pastoral e associar, numa paisagem suíça, o romanesco ao lirismo e a filosofia à utopia. Além disso, sintetizou o pensamento de Rousseau, cristalizando por meio das personagens a maior parte das aspirações ou questões que interessavam os indivíduos na época: o amor da natureza, os sofrimentos da alma sensível, as restrições sociais, a renovação da religião, a dialética do desejo e melancolia, a presença da morte.

Como afirma Fermon (1997, p. 55), Rousseau desdenhava romances em nome da verdade e da moralidade. Isso ocorria, embora sua correspondência indique que, apesar dessa condenação e de sua ocupação em escrever e publicar, ele estava constantemente lendo, pedindo e dando emprestado romances. Assim, Rousseau colocava-se numa situação de ter que se defender contra seus próprios ataques de que tais formas literárias podiam corromper a moral social. Por outro lado, Rousseau definiu seu público como a ala da cultura dominante que estava pronta para uma reforma e que, embora a literatura fosse perniciosa para o bem-estar dos que ainda levavam uma vida mais primitiva, era necessária para os habitantes das grandes cidades, onde as pessoas já estavam corrompidas, como defendia sua metáfora homeopática. Dessa maneira, Rousseau relacionou o tipo de público com a forma literária que, segundo ele, seria mais adequada.

Conforme Lange (2002, p. 10), ele acreditava que o significado pode e deve ser manipulado para fins sociais, através da educação dos sentimentos, da religião cívica e do espetáculo emocional, para se ter uma sociedade civil bem estruturada.

A concessão de Rousseau ao romance foi feita na forma epistolar. Isso, de acordo com Doudet (2004, p. 116), o fez escapar da condenação do gênero romanesco por ser confidência pessoal que aceita o discurso didático. Sobre a motivação de Rousseau, a autora pondera (p. 109) que Júlia, ou A nova Heloísa, escrita na maturidade de Rousseau, tem como origem sua paixão por Mme. d’Houdetot, com quem era impossível ele se relacionar por ela ser fiel ao seu companheiro. Depois de tentar viver uma amizade a três, Rousseau escreveu o romance, não para contar o que aconteceu, mas para aprovar o que ecoou na realidade. Assim, nasceu o mundo perfeito e rasgado de paixões de Júlia, ou A nova Heloísa. Metaforicamente, nas páginas do seu discurso Rousseau prendeu a virtude. Como vimos anteriormente, a forma epistolar foi também utilizada por Richardson com fins didáticos, visando promover a virtude.

Para Doudet (p. 111), a originalidade dessa obra está no fato de Rousseau pintar um amor impossível utilizando as cenas tradicionais dos romances barrocos: amores frustrados, amantes perseguidos pela tentação do suicídio, tempestades no lago, o reconhecimento do marido da existência de um amor antigo cheio de culpa, e outros episódios parecidos. Mas em Júlia, ou A nova Heloísa esses ingredientes são renovados e integrados ao modelo que Rousseau cria: ele não fala dos amantes, mas do amor. Para a autora, a originalidade está na ausência da intriga: Rousseau consegue fazer “algo” com “nada”. Júlia, ou A nova Heloísa é uma soma de temas articulados em torno de um eixo romanesco oferecendo ao leitor acesso privilegiado à idealização rousseauneana do Éden perdido: os povoados suíços, os rios de Leman, lugar da infância inscritas no gênero literário pastoril ou das histórias do século XVII. Essa união de lembranças pessoais e de licenças poéticas permite a transfiguração das convenções do romance de amor. A obra apresenta, desde o subtítulo Cartas de dois amantes habitantes de uma pequena vila ao dos Alpes, paisagens da montanha propícias à meditação, à melancolia ou ao desespero. Rousseau escreveu um romance útil e exemplar que mostrou a vitória da virtude sobre o amor, pregou a boa moral e a tolerância, o que torna coerente todo o conjunto da sua obra voltada para a reforma moral, religiosa e política.

Um aspecto que deve ser mencionado aqui é a idéia de que Rousseau foi influenciado por Richardson. Essa ligação nos interessa pois que, ao olharmos cada uma das duas obras, percebê-mo-las enriquecidas à medida que elas dialogam e revelam mutuamente aspectos relevantes para a compreensão das sociedades da época, da gênese do gênero romance e da repercussão que suas publicações tiveram no contexto social do período. Vários autores comentam a relação entre Richardson e Rousseau. Baker (1929, p.152) afirma que Rousseau conhecia bem a obra de Richardson, que havia sido traduzida para o francês por Prevost logo após sua publicação na Inglaterra. Ele considera que as personagens de Richardson reapareceram sob novos nomes nos trabalhos de romancistas franceses e ingleses. Eram tipos de melancolia, cada um achando ser o único escolhido para sofrer, ancestrais da raça reconhecida tanto no Saint-Preux de Rousseau, como no Werther de Goeth, no René de Chateaubriand e nos heróis de Byron (p. 129, 130).

Vasconcelos (2007. p. 82-88), tratando do surgimento do romance inglês, comenta que

A questão das influências de quem leu quem, de quem inspirou ou copiou quem é, para dizer o mínimo, terreno minado. Basta que se reitere que os intercâmbios foram inauditos e o trânsito de romances intenso, tendo assumido a forma de adaptações, seqüências, variações, plágios, paródias, ou simplesmente traduções, em que a fidelidade nunca foi cláusula pétrea nem regra inflexível. As imitações também eram comuns, pois o conceito de autoria não era moeda corrente e a exigência de originalidade não era condição...
(p. 82,83)

Ao se referir especificamente à situação de intercâmbio entre a Inglaterra e a França, ela afirma que

A França, por sua vez, foi, notadamente a partir de 1740, literalmente tomada pelos ingleses. A direção da flecha havia-se invertido e o fervilhante mercado de livros e traduções vai, de forma crescente, alimentando-se da produção inglesa e enchendo as estantes dos cabinets de lecture. (p. 85)
[...]
Pâmela, [...] traduzido por Prévost em 1742, foi recebido de modo elogioso e entusiasmado pelos críticos do romance pela maneira como tratava as questões morais e forneceu [...], pela capacidade de Richardson de conciliar realismo e moralismo, uma fórmula cara aos franceses dos anos de 1760, presos no dilema entre a verossimilhança e o imoralismo. (p. 88)

Embora Ulmer (1972, p. 289) analise a relação entre as personagens Clarissa, de Richardson e Júlia, de Rousseau, seu artigo contribuiu para nossa análise entre Júlia e Pâmela que foi, em se tratando de Richardson, a personagem que promoveu o amadurecimento do autor, possibilitando a criação de Clarissa. Ulmer defende a originalidade de Rousseau, ao declarar que sua obra não fica comprometida ao ser comparada com a de Richardson. Ao contrário, uma comparação torna clara a natureza peculiar do gênio de Rousseau que não tentou fazer de novo o que Richardson havia feito, e sim o utilizou como fonte e ponto de partida, estendendo o assunto. Para o autor tanto um como o outro concordavam, como moralistas, que os tempos necessitavam de novos direcionamentos, inclusive, no campo literário e no do gênero romance, principalmente. Ao compararmos as duas heroínas, a Clarissa de Richardson que “perdeu sua virtude”, e a de Rousseau, Júlia, veremos que a diferença está no fato de Rousseau permitir que Júlia se redimisse do que considerava seu erro humano, tornando-se um modelo accessível capaz de demonstrar que a natureza e o dever podem sobreviver juntos (p. 290).

Hauser (1982, p. 711) fala da influência que o sucesso de Richardson teve sobre Rousseau ao se referir, por exemplo, aos sermões moralizadores nas digressões contidas no seu romance. É ele também quem delega a Rousseau o feito de ter tomado as tendências pré-românticas de Richardson e ter lhes dado significado europeu, conferindo-lhes uma forma universal e aplicável (p. 720).

Van Thiegem (s/d, p. 100), por sua vez, afirma que Richardson reconheceu que Rousseau o imitou e chegou a admitir que o fez bem. O autor considera ainda (p. 103) que a maior parte dos estudos um pouco aprofundados sobre Júlia, ou A nova Heloísafaz uma comparação entre Richardson e Rousseau; ora Rousseau é preferido, ora é Richardson que é elogiado. Van Thiegen conclui que os dois autores apresentam níveis diferentes de um mesmo gênero.

Darnton (op.cit., p. 312) também refere-se à relação entre as duas obras, a de Rousseau e a de Richardson, quando afirma: La Nouvelle Héloïse não produziu a primeira epidemia de emoção na história literária. Richardson deflagrara ondas de soluços na Inglaterra e Lessing fizera o mesmo na Alemanha”.

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Fonte:
ESTHER MAXINE TREW: “Personagens femininas nos primórdios do romance moderno: Pâmela e Júlia, ou A nova Heloísa”. (Tese de Doutorado, apresentada à Faculdade de Ciências e Letras– UNESP/Araraquara, para a obtenção do título de Doutor em Estudos Literários.Linha de Pesquisa: Teorias e Crítica Literária Orientador: Prof. Dr. Sidney Barbosa). Araraquara, 2007.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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