Suassuna: do homem ao mamulengo



A arte de dar conselhos é tecida na substância viva da existência e tem um nome: sabedoria. A sabedoria é o lado épico da verdade. (Walter Benjamin)

“Ariano Suassuna nasceu em 16 de junho de 1927, em João Pessoa, na Paraíba, e era o oitavo de nove filhos. Perdeu o pai muito cedo, aos três anos de idade, decorrido de um tiro nas costas, em meio à Revolução de 1930. Dor esta que foi personificada no poema “A Acauhan”, no qual enaltece seu pai, sempre referido em letra maiúscula (mesmo no meio da frase), e que passaria a ser uma influência constante em sua vida.

Mas, a influência paterna pode ser percebida em sua arte para além de uma análise biográfica. Advindo de uma formação calvinista, Suassuna se converteu ao catolicismo e essa crença está profundamente presente em seus textos. No entanto, é interessante o fato de que o Pai celestial humaniza-se ao ser trazido para o texto dramático assim como o pai humano é divinizado quando aparece no texto escrito. Essas observações do uso indiscriminado dos termos pai e Pai poderiam, dado o conhecimento da obra como um todo, apontar para a própria figura do criador – autor da obra de arte – que, no teatro suassuniano, é desnudado durante o processo de criação, como se verá no decorrer da análise.

Suassuna se formou em Direito e em Filosofia e teve em sua infância uma educação tradicional, estudando em colégio interno e se dedicando às leituras. Fazia parte de sua rotina caçadas com o tio Alfredo Dantas Vilar e muitas cantigas do romanceiro popular que aconteciam ao redor do piano que a família tinha na sala. Segundo ele, o que vem depois disso, é acréscimo. Esse acréscimo desembocou, em 1990, na cadeira número 32 da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono é Manuel José de Araújo Porto Alegre, o Barão de Santo Ângelo (1806-1879). Entre sua vasta obra, encontramos romances, ensaios e inúmeras peças de teatro, dentre as quais, a mais popularmente difundida, é o Auto da Compadecida, de 1955.

Entre os anos de 1933 e 1937, Suassuna pela primeira vez assistiu a uma apresentação de uma peça de mamulengos e a um desafio de viola, em Taperoá, elementos que estariam presentes em toda a sua obra teatral. Outro resgate da infância foi o circo, em especial, o palhaço Gregório que era astro do circo Stringhini. Estas apresentações ocorriam em Taperoá. Tudo muito simples e humilde, o conforto, para quem quisesse, era trazido de suas próprias casas: cadeiras que formavam arquibancadas. Lembra Suassuna:

Depois de eu assistir aos espetáculos, eu ficava dias e dias repetindo exatamente tudo o que os palhaços haviam dito, as brincadeiras, as graças. Minha mãe e minhas irmãs se cansavam da mesma história – uma delas chorou depois de tanto eu repetir as brincadeiras de Gregório. Na verdade, sou um palhaço frustrado
. (apud VICTOR e LINS, 2007, p. 29).

Essa fala de Suassuna é bastante provocativa, afinal nela o autor se auto-define. Pode-se inferir que essa colocação se deve ao fato de que a arte que Suassuna acompanhou quando criança de forma descomprometida é, depois, recriada por ele de forma consciente, ampliando a função do palhaço que, por si só, é a de provocar o riso e de entreter. O que vemos nas obras de Suassuna é um riso comprometido à medida que traz uma reflexão ou uma denúncia social. Como diz Bergson, o riso ocorre “para corrigir o desvio e tirar a pessoa do seu sonho” (apud SILVA, 1994, p. 27). Por tudo isso, talvez, Suassuna tenha escolhido o riso como forma de conscientizar as pessoas sobre suas condições, ou propor, a partir dele, a reflexão seguida de uma ação libertadora.

Não é de se estranhar, por isso, que em seu discurso de posse, na Academia Brasileira de Letras, Suassuna esclareça sobre suas influências:

Ainda menino, no sertão da Paraíba, o palco mágico e festivo do Teatro, com seus violentos contrastes entre recantos sombrios, povoados de assassinatos, e zonas de luz cheias de gargalhadas, todo esse mundo me foi revelado, ao mesmo tempo, pelo Circo [...] Ora, ainda hoje a receita do meu teatro continua a ser essa fórmula, para mim mágica, que entrou em meu sangue na infância com a Comédia brasileira, o Drama, o Romanceiro, os espetáculos populares e o Circo. Ou seja: o palhaço Gregório, Silvino Pirauá, Silvino Lopes, Barreto Junior e Joracy Camargo
. (apud VICTOR e LINS, 2007, p. 34).

Como se vê, desde muito novo Suassuna se interessou por várias formas de expressões artísticas: pintura, música e escultura. Aprendeu a tocar um pouco de violão e piano. Como começou a levar a arte a sério, achou que precisava se dedicar a apenas uma delas, então optou pela carreira de escritor, sem esquecer, porém, das outras artes. Em 1945, estudando no Colégio Oswaldo Cruz, Ariano faz amizade com Francisco Brennand, que mais tarde seria ilustrador de seus poemas publicados no Jornal Literário, organizado pelo próprio escritor. Assim, surge inicialmente a carreira do escritor: aos 17 anos, publicava suas primeiras tentativas de poemas no Jornal Literário, e aos 18, oficialmente, inicia-se sua carreira literária. Teve seu primeiro poema publicado em um jornal de Pernambuco, sem que ele soubesse, no dia 07 de outubro de 1945, no suplemento cultural do Jornal do Comércio.

Federico García Lorca e sua obra cheia de cavalos, grupos ciganos, festas de ruas, tão semelhantes à cultura nordestina, tornou-se uma fonte de inspiração. Mesmo estando em diferentes contextos culturais, Suassuna justifica sua linhagem:

Toda obra de arte é ligada a um local determinado, toda arte é nacional. Ninguém mais espanhol do que Cervantes e ninguém mais universal do que Cervantes /.../ Obras criadas em locais determinados e com todas as características dos países em que foram realizadas tornam-se universais por sua alta qualidade e pela divulgação que alcançaram, o que permitiu que elas fossem incluídas no patrimônio comum da Arte mundial”.
(apud VICTOR E LINS, 2007, p. 57).

Na Faculdade de Direito, Ariano Suassuna conheceu Hermilo Borba Filho, e desta união nasceu o “Teatro de Estudantes de Pernambuco” (TEP), em 1945. Antes de fundar o TEP, Suassuna trabalhou no “Teatro de Amadores de Pernambuco” (TAP), grupo que existe até os dias de hoje. O objetivo do TEP era não só de levar ao público novos dramaturgos nordestinos, mas também de conquistar novos públicos com espetáculos mambembes, utilizando, inclusive, da praça como local próprio para essas apresentações. Segundo Laurenio de Melo (apud Victor e Lins, 2007, p. 59), o TEP tinha por objetivo principal criar a consciência da problemática teatral, por meio não só do estudo das obras capitais da dramaturgia universal, mas também da observação e pesquisa dos elementos constitutivos das várias modalidades de espetáculos populares da região; e finalmente, estimular a criação de uma literatura dramática de raízes fincadas na realidade brasileira, particularmente, a nordestina.

Após 10 anos, quando retorna a Recife, Hermilo Borba Filho volta e cria o Teatro Popular do Nordeste (TPN), cujo principal objetivo era dar continuidade aos trabalhos do TEP. A ideologia do grupo era subsidiada por dois pólos: por um lado, valorizar a literatura e a poesia popular nordestina; e por outro lado, unir público/espectador e artistas por meio do canto, dança, máscara, boneco, etc.

A partir disso, Suassuna direciona sua arte para a mesma linha e filosofia: divulga as cantorias do povo sertanejo, dá voz ao oprimido, prioriza o sertão que, segundo ele, é onde está a verdadeira raiz do Brasil. Em 1970, em Recife, na Catedral de São Pedro dos Clérigos, num evento chamado ‘Três séculos de Música Nordestina: do Barroco ao Armorial’ estreia o movimento cultural e artístico idealizado pelo próprio autor: o “Movimento Armorial”, explicitamente apoiado pelas esferas governamentais.

O Movimento Armorial, que se mantém até os dias atuais, tem como objetivo criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste Brasileiro e procura orientar para esse fim todas as formas de expressões artísticas: música, dança, literatura, artes plásticas, teatro, cinema, arquitetura, entre outras expressões. Santos (1999) explica que o movimento passou por três fases distintas: uma fase preparatória (1946 a 1969), quando Suassuna identifica pontos em comum e tendências paralelas em artistas e escritores e viabiliza meios de realização desses projetos; uma fase experimental (1970 a 1975) marcada por uma evolução criadora dos escritores e artistas que deram ao movimento vida e forma; e uma fase romançal (a partir de 1976) que surge para delimitar, reduzir e definir melhor a maioria das controvérsias e confusões mantidas em torno do movimento. Esta última fase reafirma a ligação privilegiada com a cultura popular, modelo da criação armorial.

Segundo Victor e Lins (2007), a palavra ‘armorial’, que dá nome ao movimento, foi escolhida de uma forma criteriosa por Suassuna. Seus significados como substantivo e adjetivo justificam essa escolha: primeiro, como nome de um livro onde se registram símbolos de nobreza como os brasões; e, segundo, por estar ligado aos esmaltes da heráldica. Suassuna explica a escolha da palavra da seguinte forma:

[este termo] é ligado aos esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre o metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. Foi aí que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era “armorial”, isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque de clarim
(apud SANTOS, 1999, p. 25).

Suassuna define a arte Amorial Brasileira pela ligação com o espírito mágico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (a literatura de cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha os cantos, e com xilogravuras associadas à forma das artes e aos espetáculos populares.

Entretanto, para Didier (1999), por trás do movimento armorial há uma crítica à sociedade e à arte industrializada, pressupondo a preservação da identidade cultural do país:

Nesse sentido, podemos perceber que o estreitamento armorial com as raízes da cultura brasileira relaciona o seu passado com um tempo de espontaneidade sufocada pela racionalização da sociedade industrial, por isso, a sua posição de luta ante o moderno. Dessa maneira, estabelece-se a Região Nordeste e, mais especificamente, o sertão e sua cultura popular como reduto de autenticidade cultural
. (1999, p. 52).

Devido a esse mergulho profundo em sua própria cultura, Suassuna passa a buscar aqueles elementos da infância constantes na ideologia herdada do pai, que nunca deixou de habitar o seu imaginário, em especial o mamulengo.

No estudo “Fisionomia e espírito do mamulengo: o teatro popular do Nordeste”, Borba (1966) aponta as características do mamulengo e o define como um teatro do riso ou, ainda, como uma escultura animada, partindo de um sentimento religioso que foi se profanando através dos séculos, e hoje é uma mescla de teatro, circo e music-hall. Os enredos são recriações já conhecidas, advindas da literatura de cordel, e, geralmente, compõem-se por uma farsa baseada em motivos populares, com brigas, mágicas e ações heróicas. Além disso, todas as histórias de mamulengo começam com dança e música e nunca se afastam da tradição, haja vista que a linguagem necessita ser o mais próximo possível de seu público, para que a compreensão e o reconhecimento se realizem.

Com relação à identificação entre público e arte popular proporcionada pelos mamulengos, Santos (1979) aponta o uso de três elementos:

[...] Verbal, enquanto síntese do falar do povo da sua área ou região, compreendendo as expressões, os ditados, a poesia, os gracejos, o cantar e a terminologia própria a esse povo; plástica como síntese configurada de um tipo ou ser, expresso pelo talhe da cara ou do corpo e complementado pelo figurino e adereços do boneco na busca da identidade dramática; gestual, posto que os mamulengos se expressem, sobretudo pelo gesto que, sem uso da fala, manifestam ideias ou intenções sob formas gestuais através das caras, das mãos e dos corpos [...]
(1979, p. 177-8).

Observa-se, com isso, no teatro de mamulengos, certa intenção evangelizadora semelhante à que tinha o teatro medieval. Ao ser destinado ao povo, o mamulengo pretende operar como elemento de difusão de crenças, costumes, falares, em suma, de todo o conteúdo humano que a cena absorve facilmente e que vai se espalhando com o próprio movimento do teatro.

Santos (1979, p. 166) acrescenta que o mamulengo se caracteriza por personagens fixos que se dividem em três categorias: os humanos, os animais e os seres fantásticos. Há a presença de um apresentador, que pode variar entre as seguintes personagens típicas desse teatro: Tiridá, Benedito, João Redondo ou ainda Simão; as Quitérias; o capitão Manuel de Almeida; o Padre e o sacristão (que aparecem para realçar o caráter libidinoso e perdulário dos religiosos); o Janeiro, o Causo-Sério, a Chica da Fubá e Pisa-Milho, os militares, os advogados, os negros de briga, cangaceiros, entre outros. Na esquematização de tipos, acentua-se o típico abstraindo os detalhes fenomênicos e casuais da imagem natural (DITTMER apud BORBA, 1966, p. 254). Na maioria das peças, há também a participação de animais, que não falam, mas trazem à tona questões relativas ao mal, à utilidade ou à beleza.

Ainda de acordo com Santos, (1979, pg. 141-2) a estruturação do enredo obedece a um sistema de pequenos conjuntos de cenas ou passagens entremeadas por números de dança e improvisações e que podem se dividir em: passagens-pretexto (o boneco aparece, faz um gracejo e some), passagens narrativas (dois bonecos narram fatos acontecidos ou histórias imaginárias), passagens de briga (variados jogos de movimentação guerreira), passagens de dança (servem para ligar diversas passagens que compõem o espetáculo) e por último, no qual se enquadra a peça em estudo, as passagens feitas por pequenas peças ou tramas (têm a estruturação formal do teatro, aproximando-se da comédia, moralidade, farsas, autos religiosos ou sátiras sociais).

A dança e o canto, que iniciam e encerram cada ato, também caracterizam o mamulengo: a função da música é dar um apoio, agindo como elemento de ligação entre as cenas, além de comentar a ação, provocando um efeito jocoso, ou ainda atuando como suporte ou pano de fundo para as personagens se identificarem com o público."

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Fonte:
Elisabete dos Santos Fiedler: “O TEATRO COMO METÁFORA E ALEGORIA DA VIDA: A PENA E A LEI, DE ARIANO SUASSUNA”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Profa. Dra. Maria Rosa Duarte de Oliveira). São Paulo, 2010.

Nota
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