Alberto Caeiro e Álvaro de Campos



Alberto Caeiro e Álvaro de Campos

Nos poemas “XVIII” d’O Guardador de Rebanhos, do heterônimo Alberto Caeiro e “Datilografia”, do heterônimo Álvaro de Campos, percebemos o desejo de inconsciência através do querer ser outro, do querer ser o que se não é, do anseio pelo estado de inconsciência de seres inanimados, do aspirar à inocente existência inconsciente de viventes alheados e distraídos, do expressar nostalgia do espaço edênico interditado, demonstrando melancolia em ansiar pelo perdido espaço-tempo da criança inocente e despreocupada, do desejar aflitivo por um estado gozoso e inconsciente da vida, por um estado de anestesia e de passagem incólume pela dor do mundo e da vida que seria trazida à instância íntima do sujeito melancólico pela experiência racional e o pensamento reflexivo.

Alberto Caeiro foi concebido por Fernando Pessoa para ser um “poeta bucólico de espécie complicada”, pretensamente avesso à reflexão racional, ao pensamento reflexivo que pudesse falsear a percepção exclusivamente sensorial da Natureza.

Os poemas de Alberto Caeiro estão distribuídos em três livros O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos. Segundo as considerações de Cleonice Berardinelli (2004), no ensaio “Recuperando um olhar sobre Pessoa” e no ensaio “Vogando em águas pessoanas”, poderíamos encontrar um Alberto Caeiro em três momentos ou faces: “a ortodoxa, de ‘O Guardador de Rebanhos’, a heterodoxa, de ‘O Pastor Amoroso’, e a terceira, pendendo para uma e outra, a dos ‘Poemas Inconjuntos’. À heterodoxa se devem agrupar, também, os poemas XVI a XIX de ‘O Guardador’” (BERARDINELLI, 2004, p.252)17. Desse modo, O poema “XVIII” compõe a face “heterodoxa” de Caeiro:

XVIII
QUEM ME DERA que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...
(O.P. p. 215)

Em destaque, no primeiro verso, o sujeito poético apresenta um drama essencial, pressentido na produção poética do heterônimo Alberto Caeiro e apontado por ele como doença: o querer ser o que o sujeito poético não é, o desejo de transmigração para outras experiências de ser e de existir no mundo, o anseio pelo estado de inconsciência em que existem os seres animais e inanimados indicados nos primeiros versos dos dísticos desse poema.

O poema “XVIII” faz parte de um grupo de quatro poemas que foram anunciados, pelo heterônimo Alberto Caeiro, em um poema que os antecedeu e justificou, como sendo a produção natural de estado melancólico de um sujeito poético intimamente doente “As quatro canções que seguem/[...] Escrevi-as estando doente” (O.P. p. 214).

O desejo patente do sujeito poético de ser o que ele não é ficou ressaltado pela expressão volitiva “Quem me dera que eu fosse”, cujo modo subjuntivo pode indicar que o sujeito poético possui dolorosa consciência de que seu querer ser outro seria irrealizável. O desejo de ser o que não é e a angústia consciente da impossibilidade de seu existir em outras formas inconscientes na natureza surgem reiterados em quatro das cinco estrofes do poema e adicionam um novo traço doloroso ao estado melancólico do sujeito a cada repetição daquela expressão volitiva. No primeiro verso do poema “XVI”, que forma o grupo de poemas anunciados como produto do estado combalido de Caeiro doente, o sujeito poético de Alberto Caeiro expressou semelhante constatação melancólica no uso da expressão volitiva “Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois”.

Notemos que o sujeito poético de Alberto Caeiro dos poemas “XVI” e “XVIII” completou a expressão de sua volição com seres geralmente inanimados e irracionais, simples cenário do mundo ou da natureza, “um carro de bois”, “o pó da estrada”, “os rios que correm”, “os choupos à margem do rio”, “o burro do moleiro”. Esse íntimo desejo de vivenciar animicamente outras experiências de ser e de existir no mundo parece estar relacionado com uma outra aspiração, realizada por Fernando Pessoa na concepção do processo heteronímico, presente desde a infância (com a criação do Chevalier de Pas), de outrar-se em diferentes personalidades poéticas. Em tudo, o querer ser outro, diferente do que se é, aproxima-se de uma espécie de rejeição ôntica radical que, como desejo de inconsciência, não sendo o que se é, parece beirar à alienação, tentativa de fuga à dor do mundo, anestesia para a dor do pensar.

Alberto Caeiro, “mestre” de Fernando Pessoa - ortônimo e de todos os outros heterônimos pessoanos apresentados em Ficções do Interlúdio, por vários versos, insistente, afirmou não sofrer esta dor do pensar, ou dor do mundo, e com a exceção do momento da doença, não apresentou a rejeição ôntica radical ou o desejo de outrar-se no simples sentido de querer ser o que se não é. Excetuando-se esses poemas do desequilíbrio doentio de Caeiro, o restante de sua produção poética dissimulou os seus momentos de angústia, através da entrega completa e da sintonia do sujeito poético com a Natureza, pois em Caeiro sadio Natureza e homem não discrepam e compõem um cenário exemplar de fruição natural.

Além do desejo de querer ser o que não é, no poema “XVIII”, Caeiro, nomeadamente, revelou que queria ser os elementos da natureza, sendo os três primeiros inanimados e o quarto e último animado, mas irracional. Esse desejo de inconsciência, manifestado através do querer metamorfosear-se em elementos destituídos de racionalidade, parece demonstrar a intenção de Caeiro de passar pela vida sem perceber ser o que é, passar sem ser tatuado por ela, inconsciente de ter passado, de ter presente, ou de ter porvir - sem a historicidade da memória humana, demonstrou a intenção de não deixar marca alguma nos seres que com ele conviveriam em relação necessária e natural.

É desse modo que o sujeito poético de Alberto Caeiro do poema “XVIII” nos apresentou os dois versos finais que se diferenciam dos anteriores quanto à repetição do desejo de ser o que se não é. Nessa última estrofe, o sujeito poético expressou, de maneira amarga e ressentida, o que ele é e não gostaria de ser, ou seja, aquele que tem racionalidade e analisa com pesar toda a sua trajetória existencial.

Fernando Pessoa também concebeu Álvaro de Campos, um poeta futurista citadino, um homem do século XX, das fábricas, da energia elétrica, das máquinas, da velocidade. Dos vários heterônimos talvez seja aquele que apresentou mais claramente fases distintas, que na proposição de Jacinto do Prado Coelho (1969, p. 60) seriam três: - a do “Opiário” (data fictícia 03/1914); - a do futurismo whitmaniano na “Ode Triunfal” (06/1914); - a pessoal, na qual já não se perceberia claramente nenhuma influência, que começaria em “Casa branca nau preta” (11/10/1916) e iria até a morte de Fernando Pessoa. Nessa última fase, Campos viria a ser o poeta do cansaço, da abulia, do vazio, inquieto e nauseado. Passando a ser o poeta do abatimento, da abulia, da atonia, da aridez interior, do descontentamento de si e dos outros. Esse momento da curva desenvolvida por sua poesia demonstrou que sua inicial aderência ao mundo moderno, o seu pretenso dinamismo e vigor do primeiro momento da produção de seus poemas poderiam ser narcótico para afogar o tédio. O poema “Datilografia” de 19/12/1933 pertenceria, portanto, a esta última fase proposta por Jacinto do Prado Coelho (1969).

DATILOGRAFIA
Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verde.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tique taque estalado das máquinas de escrever.
(O.P. p.389)

O sujeito poético de Álvaro de Campos do poema “Datilografia” está rodeado dos objetos que lhe caracterizam espaço e ofício da vida adulta e consciente. O sujeito está apartado, distante do mundo externo ao seu escritório, profundamente mergulhado em seus afazeres de engenheiro. No entanto, essa vida de ocupação adulta e consciente não lhe basta para companhia, ressalta sua solidão, o sujeito poético expressa um estado de angústia íntima que produziu as melancólicas reflexões sobre o paradisíaco espaço-tempo da infância.

Pelo ruído da máquina de escrever, o sujeito foi levado a pensar sobre dois planos diferentes daquele do cubículo que os contém como enfadonho invólucro, mas não os comporta plenamente. Esses dois planos são: o da vida feliz de outrora, da infância inconsciente e o da angustiosa vida prática, da utilidade, do enfadonho. Dois planos que foram comentados alternada e pendularmente no decorrer do poema.

Se em poemas de um momento anterior ao desse poema de Álvaro de Campos a máquina absorvia, aguçava e extasiava todos os sentidos do sujeito poético e era exemplo máximo da modernidade muitíssimo louvada por ele, nesse último momento de sua produção poética, a máquina apareceu como estorvo “banalmente sinistro” que impede, como âncora, a decolada do sujeito para o mundo idílico do passado infantil, mundo tão desejado por este heterônimo. A tentativa de decolagem para o mundo idílico da infância perdida é também observada no poema “Aniversário” de Álvaro de Campos:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
[...]
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
[...]
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
[...]
(O.P. p. 379).

Essa busca da mítica infância perdida é a que coloca Campos mais próximo da temática seguida neste trabalho. Nessa busca empreendida por Álvaro de Campos, o desejo de inconsciência pode ser percebido através da aspiração de regresso ao íntegro paraíso ingênuo da infância, quando ser inconsciente é uma “grande saúde”.

Em “Datilografia”, os dois planos discutidos por Campos são relacionados um à vida falsa e o outro à vida verdadeira. Temos a oposição entre vida falsa, que é a vivida, e a do sonho; oposiçao entre a vida-angústia consciente do presente, a aflita vida prática e do enfado doloroso, e a do passado de ingenuidade, de inocência infantil. Essa é uma oposição que aproxima este heterônimo ao Fernando Pessoa - ortônimo do poema “Tenho tanto sentimento”, de 18/09/1933:

[...]
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
(O.P. p. 172)

Nesse poema, o sujeito poético de Fernando Pessoa - ortônimo apresentou semelhante dicotomia entre vida verdadeira e falsa. Na primeira estrofe do trecho destacado, a oposição foi apresentada entre a vida vivida e a vida pensada (sinônimo de desejada) e, na última estrofe, o sujeito poético levanta um questionamento sobre qual seria a vida verdadeira e a errada, dizendo que a vida que levamos é a que nos obriga a pensar.

Os três versos finais da segunda estrofe do poema “Tenho tanto sentimento”, nos quais foi apresentada a vida “[...] E a única que temos/ É essa que é dividida/ Entre a verdadeira e a errada”, são versos que lembram o cubículo isolado do engenheiro no poema “Datilografia”, como espaço onde o sujeito poético estaria numa posição limítrofe, intersecção entre o plano da vida falsa e a verdadeira.

No poema “Datilografia”, tomamos o cubículo como fronteira entre o estar remoto até do próprio ser e o ruído da vida banal e útil, representado pelo tique-taque da máquina de escrever. Ruído este que irá intervalar todo o corpo do poema, apresentando, de início, a náusea à regularidade enfadonha da vida. O sujeito poético busca a fuga ao ruído no “Outrora”, no ser outro do passado, da infância das ilustrações que surgem como grandes paisagens explícitas e opulentas de natureza, de castelos e cavaleiros e de cores. Nesse contexto, “Outrora” surge na página como afirmação de algo no passado, contudo, impossibilitado no presente de continuar servindo de ponto de fuga para o sujeito poético em seus devaneios, pelos versos “Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,/ O tique-taque estalado das máquinas de escrever”. Novamente, o “acompanhamento banalmente sinistro” foi fronteira entre a vida verdadeira carregada de anseios infantis e sonhos, que a inocência ou a inconsciência infantil torna realizáveis, e a vida de reflexão e pensamento discursivo que analisa e segmenta a vida “Temos todos duas vidas”.

O sujeito poético, embalado pelo ruído ritmado e constante do tique-taque da máquina de escrever, que pode ser facilmente associado ao tique-taque de um relógio, ao passar das horas que alertam para o esvair do tempo, quando teríamos, no máximo, um substrato das grandes paisagens explícitas e opulentas de natureza, de fantasias e de cores da infância perdida, pusera-se a avaliar o que seria verdadeiro e o que seria falso no existir, em uma estrofe de seis versos em que o primeiro é uma afirmação “Temos todos duas vidas”, e os cinco seguintes tratam dois do onírico como verdadeiro, e os três restantes do pragmático como falso.

Na penúltima estrofe de oito versos desse poema, o sujeito parece que tenta se entregar, mesmo que ainda esteja em processo de reflexão, ao devaneio fantástico da vida plena na infância. No penúltimo verso da estrofe, porém, o sujeito poético interrompeu a decolagem para o mundo onírico e retomou as suas reflexões sobre a vida falsa, afirmando que nesta, viver quer dizer morrer.

O desejo de inconsciência foi revelado pelo sujeito poético de Álvaro de Campos, no último verso dessa penúltima estrofe, através da derradeira esperança de viver, pela náusea, no mundo da inocência infantil, mas as reticências, que findam o verso, antecipam a sobreposição absoluta do som estalado e opressivo da máquina de escrever /relógio, fazendo a realidade invadir, sufocar completamente o momento de fugacidade do sujeito poético, introduzindo, em ritmo crescente, o tique-taque como se fosse um cortejo fúnebre.

“Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, / Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever”, nesses versos que ressurgem na última estrofe, pela terceira vez no poema, de maneira amplificada pela conjunção adversativa “mas”, pelo uso do verbo “erguer” e o vocábulo “voz” contíguo, que atribui personalidade e voz ao tique-taque, o sujeito procurou ressaltar ainda mais o seu aborrecimento pela interrupção da decolagem, tornando-a definitiva, pois essa voz amplificada ecoa infinitamente na vida falsa, na vida das aflições íntimas conscientes.

Em Alberto Caeiro
doente, observamos o desejo de inconsciência através do querer ser o que não é, do querer refugiar-se, metamorfosear-se no inanimado e no ingênuo destituído de reflexão, como a tônica temática do poema “XVIII” apresentado acima. Em Álvaro de Campos do poema “Datilografia”, percebemos o desejo de inconsciência através do querer ser o outro da infância, do querer ser o inconsciente sonhador infantil, do querer ser o que o poeta foi e já não é.

Em Alberto Caeiro
doente visto no poema “XVIII”, temos o desejo de inconsciência pela aniquilação do ser humano nas instâncias íntimas e essenciais que o definem, pelo querer ser o pó que existe sob os pés dos pobres, o rio ao lado das lavadeiras, ou mesmo o burro estimado pelo moleiro. Nesse querer a rejeição ôntica radical do desejo de inconsciência, Alberto Caeiro só estabeleceu relações de completa inconsciência e de afeto na relação moleiro-burro, mas não razão. Lembremos de como Alberto Caeiro apresenta o seu estado de doença no poema “XV” e que lhe deu maior naturalidade humana e como ente poético autônomo:

As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo que eu sinto,
São do contrário do que sou...

Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais [...]
(O.P. p. 214)

Este poema anunciou os quatro outros, um dos quais é o “XVIII”, que o sujeito poético produz influenciado pela noese ou pela dianoética da Natureza, do mundo e do homem. Ele se anunciou como doente, porque não admite geralmente que o pensamento interfira e falseie a Natureza. Seu estado de consciência racional e discursiva desestabilizou seu ser, tornando-o adoentado, mas, semelhantemente ao seu estado de homem apaixonado nos poemas de O Pastor Amoroso, conferiu-lhe maior naturalidade humana e como ente poético autônomo.

Alberto Caeiro é considerado o mestre dos outros heterônimos e de Fernando Pessoa - ortônimo porque propusera e foi o que mais se aproximou, exceto nos seus coerentes momentos de doença, da completa execução de sua proposição de suspensão do pensamento que deforma, põe na “fôrma”, classifica e falseia a Natureza. Em seus poemas Caeiro demonstrou abdicar do pensamento em favor do sentir completamente sinestésico, anoético. De modo anti-cartesiano, ser é, para Caeiro, sinônimo de existir, e existir é o domínio do ser, da inconsciência; o pensar é o domínio do não ser, do parecer, da opinião, da falsidade, da dor. Assim, para Caeiro, existir é não pensar, é ser inconsciência, é ser inocência. À abdicação do pensamento expressa por Caeiro parece combinar com o Sófocles do trecho: “Como é bom viver, entretanto, sem sabedoria, visto que é o veneno da vida” (SÓFOCLES, apud ROTTERDAM, 2003, p.28).

Aproximados os poemas “XVIII”, de Alberto Caeiro, e “Datilografia”, de Álvaro de Campos, percebemos que há o desejo de inconsciência através do querer ser o inocente da infância “quando fui verdadeiro ao meu sonho”, e através do querer ser o que não é: ser de existência inconsciente, inanimado, irracional ou inocente.

O desejo de inconsciência também se revelou em alguns outros de poemas de Fernando Pessoa através do elogio ao ser que, em qualquer idade, seria inocência, seria inconsciência, o inconsciente tresloucado: “Sem a loucura que é o homem/ mais que besta sadia” (O.P. p. 76) e “Só quem puder obter a estupidez/ Ou a loucura pode ser feliz. [...] Nunca aos loucos o engano se desfez” (O.P. p. 104). Semelhantemente ao que podemos depreender de Erasmo de Rotterdam (2003), os poetas, guiados pelas lições e experiências do mundo adentraram na infeliz carreira da sabedoria e passaram pela vida invejando os dons da loucura: embriaguez, alienação, inconsciência infantil, misoponia, irreflexão, sono profundo. Conforme disse a personagem Loucura da obra O Elogio da Loucura: “Conseqüentemente, por graça de minha bondade, torna-se o velho criança, devendo-me a libertação de todas as aborrecidas aflições que atormentam o sábio.” (ROTTERDAM, 2003 p. 30).

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Fonte:
Hélio Valdeci Rodrigues : “O desejo de inconsciência em poemas de Fernando Pessoa – ortônimo e heterônimos Alberto Caeiro e Álvaro de Campos”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Profª Drª Maria Helena Nery Garcez). São Paulo, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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