Fernando Pessoa ele-mesmo: os primeiros passos de uma obra

Fernando Pessoa ele-mesmo: os primeiros passos de uma obra

Um olhar sobre o percurso de conformação de uma obra, gerada em muito pela sensibilidade do sujeito frente às questões de seu tempo, faz-se oportuno, no caso de Fernando Pessoa, tendo em vista seu reconhecimento enquanto co-participante ativo de um elevado ideal de arte e cultura, signo da modernidade que reclama seu espaço em meio à aura de obscurantismo que marca a vida portuguesa, por volta do início do século XX.

O ano de 1915 contextualiza acontecimentos relevantes, os quais suscitaram, no meio cultural, a expectativa por transformações capazes de inaugurar uma nova ordem que, para além do âmbito político, também alcançasse a condição sociocultural presente. A Europa depara-se, então, com o advento da Primeira Guerra Mundial; o meio artístico inunda-se de manifestos vanguardistas; Portugal vive um momento político delicado, envolto em conflitos originados pela suplantação da Monarquia e pelo estabelecimento da República.

Os anos subseqüentes são ainda de turbulências e de transformações no cenário europeu e mundial. A Primeira Guerra prolonga-se até 1918; em 1917, deflagra-se a Revolução Russa; os Estados Unidos da América ascendem como potência mundial. Em Portugal, ainda prevalece o clima de instabilidade, e os conflitos internos mostram que a República, enquanto novo regime, não aplaca os efeitos da crise econômica, política e social originada no período anterior. A insatisfação relativa ao passado recente e ao presente, que não se confirma como solução dos problemas de antes, faz surgir no país um clima de profundo nacionalismo e de saudosismo que se prende à revalorização do passado grandioso de Portugal, às grandes navegações, ao Sebastianismo, à glória do passado literário presente nos Lusíadas de Camões.

As primeiras publicações de Fernando Pessoa coincidem, pois, com este humor nacionalista, tom de sua época, o qual explica em parte sua atuação enquanto elemento participante das intenções predominantes no sentido do resgate da pátria gloriosa, ainda que especificamente no âmbito da arte e da cultura. Colaborou, no período de 1910 a 1915, na revista A Águia, considerada órgão da Renascença Portuguesa, movimento de tendência saudosista que buscava “ressuscitar” Portugal, fazendo-o emergir do obscurantismo do presente.

Em 1915, com a publicação de Orpheu – revista trimestral de literatura –, tem início o movimento do Modernismo português que, no cenário literário e cultural, propicia o surgimento de nomes marcados por uma forte índole inovadora, como os de Fernando Pessoa e de Mário de Sá Carneiro, entre outros, que garantirão às concepções de arte e literatura nova orientação, suplantando os modelos vigentes à época. O primeiro número de Orpheu conta com a publicação da obra O marinheiro – drama estático em um quadro, de Fernando Pessoa, e dos poemas “Opiário” e “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos, heterônimo pessoano.

Publicações posteriores sucedem-se, confirmando o valor da figura literária de Fernando Pessoa junto ao público. Após a extinção de Orpheu, Pessoa empreende outra iniciativa de publicação, assumindo, quase sozinho, as cinco edições da revista Athena, na qual vão se confirmando elementos que se tornarão essenciais à composição de sua poética. Nos cinco números de Athena, “se afirmam predominantes o espírito e a arte do melhor Caeiro e do melhor Reis até mesmo onde seus nomes não assinam o que está escrito” (PESSOA, 1985: 29). Com Athena, Fernando Pessoa recebe o reconhecimento público, enquanto proponente de novas reflexões sobre arte e cultura e como realizador de suas proposições em composições próprias, em que se percebe um elevado nível estético e artístico.

Outro passo na evolução da obra de Fernando Pessoa foi a Contemporânea, revista em que retorna à colaboração em grupo. Por seu alto nível intelectual, recebeu em sua época reconhecimento como veículo de utilidade pública. Por fim, a Presença, “a mais relevante folha de cultura e arte depois do episódio de Orpheu” (PESSOA, 1985: 35), aponta a confirmação do valor do gênio poético de Fernando Pessoa e a credibilidade de uma obra que se anunciava duradoura para além de seu tempo.

Fernando Pessoa ele-mesmo: a personalidade poética

A poesia atribuída a Fernando Pessoa ortônimo exige um olhar sobre o que se pode identificar, no espaço de sua criação, como poesia saudosista-nacionalista e poesia lírica.

No livro Mensagem, grande exemplo da sensibilidade de Pessoa, homem e poeta, frente às questões nacionais de seu tempo, observam-se poemas imbuídos do sentimento saudosista-nacionalista, fruto da percepção das crises que se impõem sobre a pátria portuguesa, provenientes dos conflitos que marcam o início da fase republicana. Em Mensagem, confirma-se uma obra orientada por um “misticismo nacionalista” que evoca a grandiosidade de um passado voltado às antigas conquistas do período das Grandes Navegações, ao Sebastianismo como ânimo que subsidia as proféticas promessas de resgate de uma nação portentosa, dimensionada no sonho de um império glorioso, “O império por Deus mesmo visto [...]” (PESSOA, 1985: 86). Os versos de Mensagem preenchem-se de exortações à vontade da conquista, ao ânimo de ousar frente ao perigo e ao mistério, à abstenção do comodismo capaz de impedir ao homem (ou nação) a realização de uma obra suprema:

TRISTE de quem vive em casa,
Contente com seu lar,
Sem que o sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem! (PESSOA, 1985: 84)

Nos versos de Mensagem, Pessoa constrói um universo composto por heróis e ações elevados ao plano do mito, aludidos através das brumas de um simbolismo que impõe ao recorte nacionalista-saudosista da obra um tom de idealismo místico, que, envolto numa aura de profecia, anuncia a Portugal sua predestinação a uma glória vindoura, como observa Jacinto do Prado Coelho (1973: 53):

São as potências do invisível, o mito (“nada que é tudo”), a lenda, a chama que desce a iluminar o herói, são essas potências que, fecundando a realidade, tornam a vida digna de ser vivida, ou melhor, transformam a existência, mero vegetar, em vida, quer dizer promessa do que não há, perseguição do Impossível, grandeza de alma insatisfeita.

“O mito que é tudo”, em Pessoa de Mensagem, comparece como a crença numa pátria potencializada à grandeza. Crença que, embora fortemente subjetivada, propõe ser possível a conciliação entre o sonho e a realidade:

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com visíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade. (PESSOA,1985: 78)

Por sua vez, a busca do eu profundo, o desejo obsessivo de poder dizer sou, com o pleno conhecimento do termo, é uma tendência preponderante na poesia lírica de Fernando Pessoa ortônimo. Para tal tendência, observa-se como causa provável a atuação da consciência intelectiva do sujeito, que esquadrinha a vida e nela percebe o vazio ou o mistério no qual imerge, “Grandes mistérios habitam o limiar do meu ser [...]”, (PESSOA, 1985: 175). Acreditar no realismo incontestável da vida só é possível quando nos colocamos diante dela de maneira inconsciente, desprovidos de todo senso crítico. Para se crer é, portanto, necessário não pensar, “Saber? Que sei eu? /Pensar é descrer [...]”, (PESSOA,1985: 119), pois, através da ação incisiva do pensamento, a aparência objetiva da dita realidade se dilui, revelando a vacuidade que a preenche. A consciência do vazio surge, assim, como produto final da ação do pensamento:

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco
Mesmo o meu ser estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo em redor –
Fica mais exterior. (PESSOA, 1985: 111-112)

A atitude reflexiva perante a realidade acaba por desencadear no ser a sensação de uma queda no vazio da existência, cuja grandiosidade do mistério não pode ser abarcada pela ação de uma consciência reflexiva:

Da minha idéia do mundo
Caí ...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem ali ...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensando como ser...

Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver... (PESSOA, 1985: 112)

Para o poeta, as dúvidas pairam sobre todas as coisas. O não domínio da autêntica significação do que chamamos realidade é motivo bastante para não se crer em nada. O mistério que envolve o mundo objetivo se remete, por sua vez, ao espaço do sujeito. Tudo é nada, quando a essência nos foge. Assim, a vida é nada e o próprio ser é nada, porque não se sabe, não se conhece:

NADA SOU, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei de ser, sendo nada, o que serei. (PESSOA, 1985: 145)

A sensação de nada ser por se desconhecer, presente em Pessoa, leva o sujeito a assumir posturas diante do mistério de “haver ser”, que se lhe afigura, paradoxalmente, como limite e como infinito. Limite por prender o sujeito no espaço da consciência da sua impossibilidade de superação. Infinito por atirá-lo, apesar disso, na busca infrutífera de si mesmo, que jamais termina, já que o desejo de ser nunca se atenua ou alcança a satisfação.

Não sabermos o que somos é, pois, sermos estranhos para nós mesmos, é sermos um outro ou muitos outros, e todos sem a definição de uma essência fundamental:

Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma... (PESSOA, 1985: 111)

Chegando aqui, onde estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou. (PESSOA, 1985: 159)

Esta colocação do ser diante de si mesmo, através da atuação de uma inteligência expressivamente sensível, propõe, em Pessoa ortônimo, a ação de um sujeito consciente e lúcido frente à realidade e a edificação de um lirismo melancolicamente introspectivo, como esclarece Jacinto do Prado Coelho (1973: 41):

Lirismo puro (se impura, no dizer do poeta, é a humanidade em que se enraíza), voz de anima que se confessa baixinho, num tom menor, melancólico, duma resignação dorida, agravada, de quem sofre a vida sendo incapaz de a viver. Uma imagem da sua poesia, a “viúva pobre que nunca chora”, define-a simbolicamente.

Poeta em que o primado do pensamento se confirma, garantindo-lhe uma sofrida lucidez no que concerne à existência, Pessoa propõe em sua poética que a felicidade possível estaria na inconsciência. Reconhece, contudo, que a perda definitiva da felicidade se dá mediante o alcance da lucidez de se pensar; ato que, uma vez praticado, torna-se um hábito insuperável. Reconhece, igualmente, que um retorno ao primitivo estado de inconsciência do ser é algo impraticável. As evocações da infância, considerada como espaço da inconsciência e inocência diante da vida, perpassam, algumas vezes, os poemas de Fernando Pessoa ele-mesmo e, com freqüência, os de Álvaro de Campos, heterônimo de personalidade mais próxima ao ortônimo. Ambos evocam a infância com saudade, reconhecendo nela um tempo feliz, baseado no viver simples e harmônico, no qual o sujeito se encontra inteirado com a realidade:

Pessoa:
QUANDO ERA criança
Vivi, sem saber
Só para hoje ter
Aquela lembrança. ( PESSOA, 1985: 174-175)

Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar

E toda aquela infância
Que não tive me vem
Numa onda de alegria,
Que não foi de ninguém (PESSOA, 1985: 169)

Álvaro de Campos:

NO TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa, nenhuma, [...] (PESSOA, 1985: 379)

Mas a infância como espaço edênico está no passado e se constitui em algo irremediavelmente perdido:

Com que ânsia tão raiva
Quero aquela outrora. (PESSOA, 1985: 141)

No espaço da consciência, portanto, o sujeito torna-se presa do pensamento e alcança a condição de se dizer de uma maneira indefinida, embora lúcida. Mesmo sem um delineamento preciso, o ser enunciado possui uma forma visível, ainda que intocável na palavra que o revela (COELHO, 1973: 43):

A sua extrema lucidez torna límpida, definida, a expressão dos próprios sentimentos indefinidos. Se há obscuridade, não é no texto mas no pretexto, no motivo, tantas vezes um quase, um não sei quê, uma vivência incoercível. A lucidez que dita as palavras fica intacta para aquém do muro, chamando impalpável ao impalpável, insusceptível de conhecimento ao que não conhece.
[...]

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Fonte:
Elisete Eustáquio Ferreira da Silva: “PROJEÇÕES DO ANTIGO Horácio e Ricardo Reis”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Literatura. Área de concentração: Estudos Clássicos Orientadora: Mônica Valéria Costa Vitorino). Belo Horizonte, 2007.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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