A heteronímia enquanto conceito


A heteronímia enquanto conceito

Ao aproximar o sujeito de um espaço neutro, de um vazio, Michel Foucault, leitor de Maurice Blanchot, busca radicalizar a ficção colocando-a no lugar da verdade, uma vez que um Eu, um centro de consciência, estaria erradicado do âmbito da enunciação, existindo apenas, ele mesmo, como um ente fictício. Segundo Deleuze, não dependeríamos, para pensar, “de uma bela interioridade que reuniria o visível e o enunciável”. O pensar “faz-se sobre a intrusão de um de-fora que cava o intervalo e força, desmembra, o interior” (DELEUZE, 1998, p. 119). Não faz mais sentido falar em uma interioridade que organiza sistematicamente ou desordenadamente o que busca expressar. Ao se expressar de forma impessoal, a própria linguagem promove o estofo para sua experiência, e não um sujeito ou um autor. Desta forma, busca-se um afastamento da interioridade que havia sido enfatizada pela tradição metafísica ocidental, operadora de uma separação esquizofrênica entre Homem e Natureza, abrindo-se para o exterior, para as forças que coagem a expressão desde o Fora, que pode ser entendido, na acepção deleuzeana, como o elemento informe das forças.

Dado seu caráter informe, podemos aproximar, com fins didáticos e de aprofundamento, ao que Deleuze denomina, em outro texto, dramatização (DELEUZE, 2004, p. 94-116). A dramatização traduz-se em um método que inaugura no pensamento uma perspectiva que privilegia o acaso, a contingência, isolando-se do necessário, do universal e do formal, produzindo a organização e a representação a partir de uma dimensão sub-representativa da vida, onde permeiam os jogos de forças. São as forças de uma profundidade inextensa e informe – dinamismos espaço-temporais – que engendram acontecimentos singulares, designando um teatro particular que atua sob todas as formas de representação. A linguagem e o discurso, ao nos apresentar na superfície uma certa organização, estariam apenas escamoteando seu fundo: caótico, pré-individual, composto de agitações de espaço, síntese de velocidades e tempos, direções e ritmos, anterior ao próprio processo de individuação. A organização se dá, em seu próprio movimento diferenciante, a partir da construção de ficções que preconizam este teatro no qual se encena a realidade, que admitiria, enfim, a dramatização como método, em oposição ao método pretensamente racional que suporia uma instância transcendente que viria a legitimar a experiência segundo conceitos formais e universais.

Levando em conta a descontinuidade deste clamor do Fora, a heteronímia pode ser pensada conceitualmente. A presença de heterônimos na obra de Fernando Pessoa, não só um recurso, é produção desta potência que toma a linguagem por um campo de diferenças, à medida que dá voz aos diversos sujeitos que dizem através do heterônimo. Tal concepção daquilo que é dito, afastada de algo intrínseco ou pessoal, descentralizando o local enunciador do sujeito, nos proporciona um exemplo vivo de uma literatura que se afasta das significações e produz sentido, livre de ideologias que buscam representar ou corresponder à realidade, atingindo uma dimensão intransitiva da linguagem e possibilitando uma relação com o mundo que não se diferencia da criação artística, onde a vida e a ficção se tornam indiscerníveis.

A heteronímia, pensada como um conceito, como experiência do Fora, como ausência de um sujeito de enunciação, nos permite pensar como inexistente uma percepção correta ou uma expressão adequada de um objeto por um sujeito. Um autor, neste sentido, escreveria sempre em nome de outra pessoa. Não só um autor, mas todos os homens, viveriam já vidas repletas de vozes que deslocariam a posição, até então tida como central da consciência, à medida que o exercício do próprio pensamento não pode se dar fora dele mesmo, já que a linguagem não pode dizer uma realidade fora daquela que ela mesma produz como seu drama. A heteronímia, afirmando uma potência impessoal, desnuda a exterioridade constitutiva de qualquer interioridade ilusória (Cf. DELEUZE, p. 69, 1998).

Este pavor metafísico, aludido na carta de Fernando Pessoa, é trabalhado por Álvaro de Campos nesta passagem:

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos. (PESSOA, 1951, p.103)

A realidade é, portanto, entendida como um excesso, como tardia, um adicional à dimensão sub-representativa. Enquanto alucinação vivida pela estranha tendência à centralização das psiques humanas, o mundo, notadamente aquele herdeiro da tradição do pensamento metafísico ocidental, aquele que faz com que sejamos um monte confuso de forças cheias de infinito / Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço” (Ibid., p. 103), se configura como um teatro, ou já como um grande cinema, visto que suas expressões são descontínuas, não-lineares, remetendo a uma temporalidade pura, não cronológica.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão Todos os movimentos que compõem o universo, A fúria minuciosa e dos átomos, A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam. (Ibid., p.107)

A realidade é já cortada por fluxos impessoais pré-individuais que engendram atmosferas variadas, plurais, de consistências variáveis, onde a vida de um indivíduo é liberada tanto da vida interior como da exterior, permanecendo neste meio, neste estado neutro entre o que somos e os personagens que nos atravessam, onde o homem não seria mais que “um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio” (Ibid., p.107).

Seria possível conceitualizar uma potência expressiva impessoal, que se afasta de modelos e estruturas, a partir da qual podemos entender todo e qualquer discurso como que indissociáveis em seu fundo, uma vez que se produziriam, sem exceção, de perspectivas singulares, contingentes, sempre atrelados a uma malha de interesses? Dado que todo discurso é, em seu fundo, heteronímico, podemos pensar a vida, enfim, como um fenômeno estético, onde o mundo se encontraria sempre em vias de ser criado, apresentando-se a cada instante como matéria da poesia. Desdobraremos a questão da impessoalidade ao analisarmos alguns elementos sobre retórica para aprofundarmos o conceito de dramatização, tal qual pensado por Gilles Deleuze.

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Fonte:
GABRIEL CID DE GARCIA: “ONTOLOGIA E POESIA: UMA ESTÉTICA DA IMANÊNCIA EM FERNANDO PESSOA”. (Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Literatura Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Mário Bruno). Rio de Janeiro, 2007.

Nota
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