A interpretação da Escritura como coisa natural

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO MÉTODO INTERPRETATIVO

A interpretação da Escritura como coisa natural

Tendo como principal objetivo separar a filosofia da teologia, Espinosa explicita, ao longo do Tratado teológico-político, o sentido prático da Escritura – isso que ela ensina para o uso da vida, as máximas da fé. O sentido dos textos sagrados há de ser buscado removendo-se os diversos problemas especulativos que lhes foram atribuídos pela interpretação teológica, tradicionalmente confundida com a própria filosofia. Pois as especulações levantadas em torno do objeto da fé não são essenciais à prática religiosa dos fiéis, uma vez que os próprios autores da Bíblia e os profetas, segundo Espinosa, não eram versados em matérias filosóficas, e as disputas teológicas travadas em torno delas ao longo do tempo ocasionaram infindáveis cismas e confrontos violentos entre facções religiosas: efeito alheio à intenção original da Escritura, que jamais quis ensinar o que é Deus, mas sim, quais são os deveres dos fiéis para com ele. Não se trata, portanto, de um texto filosófico, mas tão somente de uma narrativa ou compêndio de exemplos, cuja finalidade seria prescrever as normas essenciais da moral e da fé concernentes a determinada religião.

O leitor do Teológico-político haverá de se perguntar, então, se a Escritura, embora não resolva e não tencione resolver questões especulativas ou metafísicas, mesmo assim dá conta de uma “filosofia prática” ou uma ética. Parece que não, pois Espinosa separa fé e razão, filosofia e teologia, mostra que a Escritura ensina os princípios da fé a partir da religião revelada e, em contrapartida, a sua exposição sistemática da filosofia consiste numa Ética. No prefácio da Parte III desta obra, o autor reconhece que há belos escritos sobre a reta conduta da vida, com muitos e bons conselhos de prudência. “Mas ninguém, que eu saiba, determinou a natureza e a força das afecções e, inversamente, o que pode a mente para orientá-las” (EIII, Prefácio; G-II, p.137). Eis o que é preciso para se ter uma verdadeira ética, segundo Espinosa: ao invés de um discurso prescritivo sobre certo “dever ser”, a exposição de uma ética consiste em demonstrar a natureza das afecções humanas, determinadas por leis idênticas para todo o gênero. A exibição de grandes exemplos, modelos de prudência, pode incitar os homens a condutas semelhantes, consideradas boas, mas assim ainda não se tem uma ética, a qual inclui o conhecimento das causas das ações humanas. O mesmo se poderia dizer da Bíblia: determinado profeta pode ser visto como modelo de conduta moral, e é assim que se deduzem de sua história ensinamentos para a vida. Mas outra coisa é examinar a natureza das ações e paixões desse mesmo profeta. Espinosa empreende tal exame, extraindo das narrativas bíblicas algo que a Escritura não ensina explicitamente, mas que é relevante numa abordagem ética propriamente dita.

A Escritura certamente é digna dos elogios com que Espinosa recebe o que chama de belos e bons escritos sobre moral. Mas além disso, ela é um documento histórico, relata as ações e paixões de uma comunidade humana, que cultivou determinada religião e se definiu por certa constituição política. Espinosa separa filosofia e teologia, mostra que a Escritura não trata de problemas filosóficos e, sim, prescreve normas para o uso da vida; mas, além disso, examina a constituição natural e/ou histórica do texto sagrado. Com tal intuito, investigará não somente a finalidade das revelações, mas também a sua origem natural. O método interpretativo se aplica também à constituição real das profecias. Ao tratar a Escritura como coisa natural, Espinosa pode admitir desde logo que, nas diversas revelações, os profetas realmente perceberam algo certo, cuja explicação não depende dos ensinamentos e da doutrina que fizeram seguir daquelas percepções. A explicação da origem divina ou natural das revelações passa pelos modos de percepção e compreende a natureza das afecções e paixões humanas – em particular, dos profetas e autores da Escritura. Um breve exame da proposta metodológica levada a cabo no Teológico-político indicará a importância desse exame acerca da origem natural das profecias.

Espinosa escreve no prefácio do Teológico-político que, ao empreender a sua análise da Escritura, elaborou primeiramente “um método para interpretar os livros sagrados” (TTP-Prefácio; G-III, p.9; A., p.116). A exigência básica desse método é nada afirmar ou admitir como doutrina da Escritura, que não se deduza dela própria com clareza. E uma vez na posse dele, prossegue Espinosa, comecei por perguntar, antes de mais, o que é a Profecia, como se revelou Deus aos profetas, por que foram estes escolhidos por ele, isto é, se foi por terem pensamentos sublimes acerca da natureza e de Deus ou em virtude apenas de sua piedade. Resolvidas estas questões, facilmente pude concluir que a autoridade dos profetas só tem algum peso no que diz respeito à vida prática e à verdadeira virtude. Quanto ao resto, pouco nos interessam as suas opiniões (Id., ibid.).

Os assuntos enumerados nessa passagem do prefácio são desenvolvidos nos capítulos I e II do Tratado. Em seguida, discutem-se os temas da eleição divina (cap.III), das leis de Deus (cap.IV), da finalidade das cerimônias e das narrativas históricas (cap.V), e dos milagres (cap.VI). Assim, Espinosa perfaz o primeiro percurso do Tratado, antes mesmo da exposição sistemática de seu método, que ocorre no capítulo VII. O leitor naturalmente é levado a questionar tal estrutura expositiva: por que o método é apresentado somente no capítulo VII, em vez de ser posto no início do Tratado? Além disso, os assuntos abordados nos capítulos iniciais recebem um tratamento demasiadamente “racional” para que fique óbvia a observação do preceito básico do método, de nada afirmar sobre a Escritura que não se deduza com clareza dela própria. Porém, como se nota, os capítulos inicias são dedicados, não ao que a Escritura ensina, mas à questão sobre o que é profecia ou revelação, e outros assuntos que dizem respeito à maneira como as coisas realmente são dadas na natureza (rerum veritas). Marilena Chaui mostra que esse percurso inicial é coerente com a proposta metodológica de Espinosa, pois ali “Espinosa oferece a definição real do objeto que será tratado na obra (ou seja, oferece a definição apresentando a causa produtora do definido). Espinosa constrói, portanto, a definição real do objeto ‘religião revelada’ e apresenta suas propriedades gerais à luz de uma religião revelada particular, a hebraica” (CHAUI, 2003, p.31). A interpretação da Escritura por ela mesma pressupõe que se a reconheça como algo natural. Portanto, justifica-se a presença da razão e o aspecto “naturalista” do método interpretativo que equipara Escritura e Natureza, já que a existência da Escritura é determinada por leis naturais necessárias. Trata-se de averiguar o que é revelação (como ela se constitui por natureza), independentemente das conseqüências doutrinais que dela seguem.

Farei em seguida algumas considerações acerca do método, destacando essa modalidade de sua aplicação quanto à origem natural da profecia ou revelação.

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Como foi notado há pouco, Espinosa, já no prefácio do Teológico-político, afirma sumariamente que a autoridade dos profetas funda-se no exemplo de vida que deram, ao passo que suas opiniões acerca de assuntos especulativos são destituídas de interesse. Consoante essa afirmação, Espinosa dirá mais à frente que os profetas e a Escritura ensinam coisas simples visando somente efeitos morais e a inclinação do ânimo dos homens à devoção. A tarefa principal do intérprete, nesse caso, é explicitar a doutrina universal da Escritura, seus demais ensinamentos morais e o sentido das profecias particulares. Assuntos que dizem respeito ao uso da vida e que, segundo Espinosa, são mais fáceis de estudar porque em torno deles nunca houve controvérsias entre os autores da Bíblia. Quanto às questões especulativas, não só entre os intérpretes há incessantes disputas insolúveis, mas os próprios profetas não se encontram em acordo sobre elas.

Entretanto, Espinosa não desvia o seu interesse do problema das especulações teológicas, ora inseridas, ora feitas em torno da Escritura. Pelo contrário, insiste bastante em afirmar a gravidade do problema e, com o intento de erradicá-lo, busca as suas causas. Exposição exemplar desta preocupação se encontra justamente no começo do capítulo VII. São censuras bastante gerais que Espinosa dirige ao uso pérfido que muitos homens fazem da Escritura; censuras típicas da literatura de seu tempo, como nota Diogo Pires Aurélio (A., p.400, nota 1 ao cap. 7). Todavia, elas descrevem de maneira precisa alguns traços básicos das paixões humanas num sentido mais abrangente. A discrepância entre o que se verifica na prática e o que se sabe da intenção dos discursos obedece às disposições gerais dos homens. “Vemos que quase todos”, escreve Espinosa, “fazem passar por palavras de Deus as suas próprias invenções, e não procuram outra coisa que não seja, a pretexto de religião, coagir os outros para que pensem como eles” (TTP-VII; G-III, p.97; A., p.206). Os teólogos preocupam-se em corroborar com a autoridade divina, mediante os textos sagrados, suas próprias fantasias e arbitrariedades. E assim, concorrem para que a Escritura resulte mais e mais adulterada em inúmeros trechos. Usada dessa maneira, a própria Escritura acaba se configurando como um documento que contém e com o qual se defendem fantasias humanas, em vez de ensinar com clareza e simplicidade “a mente do Espírito Santo”. Aliada à superstição, essa prática tem por fim colocar a Escritura em contraste com a Natureza e a razão.

É por isso que eles sonham que nos Livros Sagrados se escondem mistérios profundíssimos, e nisto, quer dizer, na investigação destes absurdos, se afadigam, desprezando outras coisas que seriam bem mais úteis. E tudo quanto neste seu delírio inventam é atribuído ao Espírito Santo e defendido com toda a veemência e paixão. Os homens, de fato, são assim: aquilo que concebem pelo puro entendimento defendem-no só pelo entendimento e a razão; pelo contrário, aquilo que opinam por força das paixões é com estas que o defendem (Id.; G-III, p.98; A., p.207).

Muitas vezes, quando os homens se interessam pela Escritura, fazem-no movidos por paixões. Sua relação com os textos sagrados, portanto, explica-se como um caso particular do comportamento comum dos homens na medida em que vivem impulsionados pelas paixões.

Todos os homens são suscetíveis às paixões, até mesmo os profetas. Aliás, muitos deles eram exemplarmente passionais, uma vez que as paixões mais se impõem quando não há entendimento, e Espinosa demonstra que os profetas se destacavam pela vivacidade imaginativa, ante a qual o entendimento se mantém escasso. Não se trata de julgar os profetas em função dos afetos que os moviam. O que Espinosa propõe é um método pelo qual se possam conhecer as afecções e imagens proféticas. Por isso o método para interpretar a Escritura deve ser idêntico àquele usado no estudo da Natureza em geral, e da natureza humana em particular.

O método de interpretar a Escritura não difere em nada do método de interpretar a natureza; concorda até inteiramente com ele. Na realidade, assim como o método para interpretar a natureza consiste essencialmente em descrever a história da mesma natureza e concluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas naturais, também para interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e, depois, com base em dados e princípios certos, deduzir daí como legítima conseqüência o pensamento dos seus autores (Id., ibid.).

Importante que se destaque, nesse ponto de partida metodológico, a “redução” da Escritura a uma coisa natural. André Tosel salienta que Espinosa se opõe diametralmente às “operações de tipo espiritualista”: “Não é a natureza que se torna um texto ou um livro, são antes os textos da Bíblia que se tornam Natureza, quer dizer, objetos naturais suscetíveis de uma interpretação natural. Não se trata mais de uma analogia, mas de uma explicação” (TOSEL, 1984, pp.60-1). O próprio sentido da Bíblia há de estar contido na definição do seu objeto, a ser abordado por uma “história crítica”. A Escritura é “uma realidade natural que deve ser descrita a partir de seus dados constitutivos, e definida geneticamente a partir de seus elementos formadores” (Id., ibid.). Há, pois, uma relação imanente entre Natureza e Escritura.

Unidade metodológica idêntica encontramos na Ética, entre os fenômenos naturais e as afecções dos homens, como já foi notado acima. A falta de um método que possibilite conhecer a natureza e a força das afecções mantém o homem ignorante de si próprio. Muitos homens dignos de louvor já escreveram sobre o modo certo de viver e deram ótimos conselhos de prudência. Acrescente-se que a própria Escritura há de ser reconhecida como excelente doutrina prática. Porém, ao lado desses imperativos morais de boa conduta, cultiva-se também um hábito de censurar as paixões, como se elas resultassem da impotência humana. Os homens costumam deplorar e detestar os afetos que têm por vícios, por não conhecerem sua origem e natureza. Dessa comum impotência e ignorância, tampouco a Escritura está isenta, pois, ao lado de grandes exemplos de conduta moral, encontramos não só a vivacidade imaginativa dos profetas, mas inclusive o arrebatamento passional e, sobretudo, a impotência diante dos afetos devido à ignorância de suas causas. Frente à ignorância da natureza dos afetos, Espinosa se propõe a “tratar dos vícios dos homens e de suas inépcias à maneira dos geômetras”, demonstrando-os por raciocínios rigorosos. Tal é o seu intento na Parte III da Ética:

eis como eu raciocino. Nada acontece na Natureza que possa ser atribuído a um vício desta; a Natureza, com efeito, é sempre a mesma; a sua virtude e a sua potência de agir são unas e por toda parte as mesmas, isto é, as leis e as regras da Natureza, segundo as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, são sempre e por toda parte as mesmas; por conseqüência, a via reta para conhecer a natureza das coisas, quaisquer que elas sejam, deve ser também uma e a mesma, isto é, sempre por meio das leis e das regras universais da Natureza. Portanto, as afecções de ódio, de cólera, de inveja, etc., consideradas em si mesmas, resultam da mesma necessidade e da mesma força da natureza que as outras coisas singulares; por conseguinte, elas têm causas determinadas, pelas quais são claramente conhecidas, e têm propriedades determinadas tão dignas do nosso conhecimento como as propriedades de todas as outras coisas cuja mera contemplação nos dá prazer. Tratarei, portanto, da natureza e da força das afecções, e do poder da mente sobre elas, com o mesmo método com que nas partes precedentes tratei de Deus e da mente, e considerarei as ações e os apetites humanos como se tratasse de linhas, de superfícies ou de volumes (EIII, Prefácio; G-II, p.137).

Tal como na Ética, Espinosa afirma no Teológico-político que a natureza humana em toda parte é a mesma. Quanto aos profetas, embora tivessem uma capacidade de imaginar mais viva que o comum dos homens, não eram dotados de faculdades incompreensíveis, tampouco eram constituídos por uma natureza especial: “apesar de serem profetas, foram, contudo, homens, e nada do que é humano se lhes deve considerar estranho” (TTP-II; G-III, p.37; A., p.143). Além disso, a vivacidade da sua imaginação os deixa menos aptos à percepção intelectual, no que eles se distinguem dos sábios, cujo intelecto se destaca frente à vivacidade imaginativa. As histórias proféticas são relativas ao primeiro gênero de conhecimento (por imagens), pelo qual também manifestam várias paixões comuns aos homens. Examinar a Escritura por ela mesma, como algo natural, é, ao mesmo tempo, definir a natureza das percepções e paixões proféticas, que são humanas.

A identidade metodológica entre a interpretação da Escritura e a interpretação da Natureza suscita a seguinte dúvida: não estaria Espinosa retomando o procedimento por ele criticado, qual seja, de submeter a Escritura a uma teoria explicativa da natureza humana em geral, assentada em fundamentos que não são retirados exclusivamente da Escritura? Essa objeção colocaria por terra a originalidade do método espinosano. Precisa, portanto, ser removida. Mas o próprio Espinosa se encarrega de fazê-lo. Logo após a afirmação da identidade metodológica entre a investigação da Natureza e o exame da Escritura, na seqüência do capítulo VII do Teológico-político, ele escreve:

Deste modo, quer dizer, se na interpretação da Escritura e na discussão do seu conteúdo não se admitirem outros princípios nem outros dados além dos que se podem extrair dela mesma e da sua história, estaremos a proceder sem perigo de errar e poderemos discutir com tanta segurança as coisas que ultrapassam a nossa compreensão como aquelas que conhecemos pela luz natural (TTP-VII; G-III, p.98; A., p.207).

Eis que encontramos reafirmado o princípio da fidelidade. Mas a passagem continua suscitando certa dificuldade. Por um lado, Espinosa aplica o método há pouco prescrito, que consiste em examinar a Escritura como uma coisa natural. Não por isso ele se torna infiel à Escritura, pois o método “naturalista” exige que a coisa seja investigada nela mesma, nada lhe incutindo que dela própria não se deduza. Por outro lado, parece admitir que a Escritura contém coisas que ultrapassam toda a nossa compreensão e que, portanto, de forma alguma poderíamos conhecê-las pela luz natural. Parece, pois, que a Escritura não poderia ser reduzida a uma coisa estritamente natural. Mas é característica do conhecimento imaginativo a formação de imagens pelas quais as coisas são apreendidas em desacordo com o seu conhecimento racional. O conhecimento imaginativo permanece aquém da razão, e caso as imagens forem tomadas por idéias das coisas, a ordem natural é subvertida e o conhecimento imaginativo se opõe à razão. De qualquer forma, a imaginação é sempre natural e embora não se confunda com a razão, tem causas naturais que podem ser investigadas. Exatamente por isso o método de Espinosa permite: a) tomar a Escritura como algo natural e explicá-la a partir dela mesma, isto é, segundo suas causas imanentes; b) descobrir as causas naturais que levaram os profetas a ter estas ou aquelas imagens e os autores da Bíblia, estas ou aquelas opiniões. Embora as opiniões especulativas dos profetas geralmente sejam destituídas de interesse filosófico, sendo também inútil julgá-las segundo sua verdade ou falsidade, o método permite averiguar as causas que levaram determinado profeta a perfilhar esta ou aquela opinião.

Na seqüência, o texto trata da diversidade de opiniões e imagens proféticas que, em grande parte, não se deduzem de princípios conhecidos pela razão. Ao invés de simplesmente relegá-los a um assunto sem interesse, Espinosa aponta as causas da diversidade de opiniões e imagens, empregando o método de maneira que elas possam ser discutidas com segurança:

Para que fique claro que esta via é, não só a correta, mas também a única, além de estar em conformidade com o método de interpretação da natureza, é preciso notar que a Escritura trata freqüentemente de coisas que não podem deduzir-se dos princípios conhecidos pela luz natural. Com efeito, ela compõe-se em boa parte de histórias e revelações; ora, as histórias contêm principalmente milagres, isto é (como mostramos no capítulo anterior) descrições de fatos insólitos da natureza adaptados às opiniões e à mentalidade dos historiadores que as escreveram; as revelações, por seu turno, estão também adaptadas às opiniões dos profetas e ultrapassam realmente, como demonstramos no capítulo II, a compreensão humana. Daí que o conhecimento de todas estas coisas, ou seja, de quase tudo o que vem na Escritura, deva investigar-se unicamente na própria Escritura, do mesmo modo que o conhecimento da natureza se investiga na própria natureza (Id.; G-III, p.98; A., pp.207-8).

As histórias, que contêm os milagres, e as revelações não se assentam em princípios definidos pela luz natural. Entretanto, são conhecimentos imaginativos, logo, naturais. Em outras palavras, ambas são descrições de imagens projetadas pela mente dos profetas e escritores, os quais, por sua vez, tiveram uma existência natural. Porém, visto que o propósito dos profetas e da Escritura é transmitir aos homens um ensinamento moral, essas histórias são apenas acessórias para a fundamentação da fé, e a sua estranheza frente à luz natural prova que os profetas não eram exímios conhecedores da Natureza. No capítulo II do Teológico-político, Espinosa distingue certeza moral e certeza matemática, como podemos ler na seguinte passagem:

Visto, pois, que a certeza que os profetas obtinham pelos sinais não era matemática (ou seja, resultante da necessidade da percepção da coisa percebida ou vista), mas apenas moral, e como os sinais não se destinavam senão a persuadir o profeta, resulta que eles eram adaptados às opiniões e à capacidade de cada um, de tal maneira que o sinal que dava a este profeta a certeza da sua profecia podia não convencer minimamente um outro que estivesse imbuído de opiniões diferentes. Por isso, os sinais variavam conforme o profeta. A própria revelação, como já dissemos, variava de profeta para profeta, conforme o seu temperamento, a sua imaginação e as opiniões que anteriormente perfilhava (TTP-II; G-III, p.32; A., pp.138-139).

Os profetas, escreve Espinosa mais adiante, “tiveram opiniões diferentes, até mesmo opostas, além de preconceitos diversos (refiro-me apenas a coisas especulativas, pois quanto à probidade e aos bons costumes há que se pensar de outra maneira)” (Id., p.35; A., p.142). As profecias não tornavam os profetas mais sábios e, portanto, não é preciso tomá-los por homens versados em matérias especulativas.

Resguardada devidamente a certeza moral dos profetas, a ignorância deles em questões especulativas há que ser reconhecida numa interpretação fiel da Escritura. Os profetas foram homens e viverem numa época e em meio a um povo cujos conhecimentos acerca da natureza eram relativamente escassos. Por isso mesmo, suas opiniões acerca de Deus eram bastante vulgares, o que não os privou da piedade e de serem dignamente lembrados como exemplos de perseverança moral. Num parágrafo conclusivo do capítulo II ainda lemos:

que Deus adaptou as revelações à inteligência e às opiniões dos profetas, que estes podiam ignorar, e ignoraram mesmo, coisas que são puramente especulativas e não dizem respeito à caridade nem à vida prática e, finamente, que tiveram opiniões divergentes. É, pois, escusado exigir deles um conhecimento das coisas naturais e espirituais. Em conclusão, apenas somos obrigados a acreditar nos profetas quando se trata daquilo que é a finalidade e a substância da revelação; quanto ao resto, cada um é livre de acreditar conforme lhe aprouver (TTP-II; G-III, p.42; A., p.149).

Os profetas não são doutores que adaptam seus conhecimentos ao nível de compreensão do vulgo, mas eles exprimem de maneira exemplar a capacidade de conhecimento e de imaginação dos homens de seu tempo. A existência deles, suas percepções, ações e paixões têm causas naturais e é nesse sentido que, segundo Espinosa, Deus acomodou as revelações à cabeça e às opiniões dos profetas.
* * *
Os ensinamentos morais contidos na Escritura devem ser explicados a partir dela mesma, ainda que possam ser demonstrados com base em noções comuns. São eles a finalidade prática da Escritura que o intérprete deve conhecer a partir de uma história que começa pelo exame da natureza e das propriedades da língua escrita e falada dos textos bíblicos, em seguida compreende o recenseamento das opiniões gerais contidas na Escritura e, por fim, trata dos pormenores de cada um dos livros proféticos. Nesse percurso, não se extrai da Escritura nenhuma verdade acerca da natureza divina. Entretanto, quanto à natureza das revelações e aos milagres, Espinosa os chama de “questões especulativas”. Nelas, a diversidade de opiniões e imagens contrasta com a unidade da certeza moral dos profetas atinente à vida prática. Donde também decorre a dificuldade em estudar o assunto.

O contraste entre a facilidade em resolver a problemática de cunho moral e a dificuldade nas questões especulativas é reflexo de outra tese, que Espinosa afirma quando discorre sobre a doutrina prática da Escritura: ela ensina com clareza meridiana a verdadeira virtude atinente aos fiéis, mas não dá a conhecer de maneira adequada a natureza divina. Ante a exigência metodológica de que os ensinamentos morais devem ser extraídos da Escritura, ainda que também pudessem ser demonstrados a partir de noções comuns, Espinosa escreve que “a divindade da Escritura deve concluir-se unicamente do fato de ela ensinar a verdadeira virtude” (TTP-VII; G-III, p.99; A., p.208). Os textos especulativos, por sua vez, não contêm a verdade acerca de Deus. Os milagres, em particular, de modo nenhum instruem os homens acerca da natureza divina. “Dos milagres não se pode deduzir a divindade de Deus, como já demonstramos, e nem vale a pena acrescentar que eles podem também ser feitos por um falso profeta” (Id., ibid.). A própria Escritura, devido à variedade de histórias e à divergência de opiniões, mostra que os milagres e as revelações indicam mais a cabeça e a disposição imaginativa dos profetas, do que a natureza divina.

Quer dizer que na Escritura não surgem questões especulativas? Seria iníquo levantar a partir dela perguntas sobre o que é determinada coisa? Não de todo. Há textos que são unicamente especulativos e também para esses casos Espinosa expõe algo acerca do modo como podemos ter um conhecimento pelo menos aproximado do assunto. Vejamos:

Também aqui, devemos começar por princípios absolutamente universais, averiguando, através de frases da Escritura que sejam claras, em primeiro lugar, o que é a profecia ou revelação e em que consiste essencialmente; depois, o que é um milagre, e assim por diante, até às coisas mais comuns. Daí, passamos às opiniões de cada profeta; destas, por sua vez, passamos ao sentido de cada revelação ou profecia, de cada narrativa e de cada milagre. Quanto às precauções a tomar para não confundir o pensamento dos profetas e dos historiadores com o do Espírito Santo e com a verdade, já falamos nisso na devida altura e apresentamos muitos exemplos. Não há, portanto, necessidade de voltar ao assunto. Deve, todavia, notar-se, no que toca ao sentido da revelação, que este método só ensina a investigar aquilo que os profetas realmente viram ou ouviram, não o que eles quiseram significar ou representar com aqueles sinais hieroglíficos. Sobre isto, podemos apenas conjeturar, mas não concluir com certeza e com fundamento na Escritura (TTP-VII; G-III, pp.104-105; A., pp.213-214).

Há, portanto, uma acepção “especulativa” da razão empregada no método, embora não se deva compreendê-la independente daquela parte do método que determina o sentido prático da Escritura. Henri Laux fala de “um único sistema da razão. A razão é una, ela descobre leis que seguem necessariamente da natureza de um objeto” (LAUX, 1993, p.109). A investigação acerca do que realmente ocorreu nas profecias, além do seu uso e sentido, mostra que “a ratio/sensus participa de certa maneira da ratio/veritas” (Id., p.111). Pois a interpretação das profecias requer o mesmo método que a interpretação da natureza. Além disso, é preciso ter sempre em conta que as análises acerca do profeta, da profecia e, particularmente, da fundação do Estado por Moisés, voltam-se para um aspecto especulativo importante, qual seja, o da potência de Deus. Ainda que, na Ética, Espinosa demonstre que a essência e a potência de Deus são idênticas, no Teológico-político essa identidade não é posta, porém, há sempre referência à potência de Deus como idêntica à potência da natureza inteira. Em outras palavras, embora imaginativo, o conhecimento profético tem causas naturais e, por isso, remonta à potência divina. Espinosa propõe um método pelo qual possam ser explicadas as imagens segundo as suas causas naturais. E por força da identidade entre a potência divina e a potência da Natureza, entende-se que a profecia se refere a ações ou operações divinas, concebidas imaginativamente pelo profeta.

As investigações do Teológico-político se fazem, pois, em duas direções. Numa, Espinosa trata das questões que “dizem respeito ao uso da vida”. São ensinamentos que se fundamentam no princípio de que existe um Deus, que ama e deve ser venerado; mas não se ensina o que é Deus. Na outra direção, investigam-se questões acerca da realidade das profecias, em que, da mesma forma, é preciso começar por princípios absolutamente universais. O primeiro deles é a definição de Profecia – o que é profecia ou revelação e em que ela consiste essencialmente. Nessa investigação o intérprete também deve extrair todo o conhecimento só da Escritura. Porém, distintamente da busca pelo sentido dos textos, ele então procurará, de certa forma, a sua verdade, ou seja, a compreensão racional do que é uma profecia. Por isso, não se pode confundir a mente e a intenção dos profetas e historiadores com a verdade acerca das coisas. Nesse sentido, a profecia se define como algo natural. Espinosa encontrará na natureza corpórea ou imaginativa do conhecimento profético as causas naturais da profecia, antes de esclarecer o sentido da Escritura, como se depreende pela estrutura do Tratado, que somente apresenta o método interpretativo no capítulo VII, depois de haver apresentado a explicação causal e natural da profecia nos capítulos iniciais.

Tal investigação também consiste, simultaneamente, num exame do estado em que se encontram as narrativas da Escritura. Diversas “fantasias humanas” estão incorporadas no texto bíblico, já bastante adulterado. Portanto, no que diz respeito à profecia enquanto algo natural, e também à verdade dos textos, a investigação deverá partir de uma postura crítica com relação ao sentido que lhe deram, segundo suas opiniões particulares, os autores e intérpretes.
* * *
Por que a Escritura contém, na maior parte, coisas que escapam à luz da razão? Porque as histórias, em sua maior parte são milagres. O surgimento destes é devido, em primeiro lugar, às composições do autor/escritor que dá aos fatos narrados uma ordem condicionada pela sua opinião particular e, em segundo lugar, do profeta, que percebe (pela imaginação) as coisas de maneira específica e parcial. Assim, a diferença entre o exame metódico e as antecipações errôneas de um adivinho projeta-se no interior do próprio texto a ser interpretado. Mas também ali o método é capaz de apontar a via para uma explicação natural das coisas que na Escritura são narradas como milagres. Sendo a imaginação a maneira natural com que o homem percebe as coisas por afecções corpóreas, as revelações, que são produto da imaginação, também apontam para a Natureza ou Deus, revelam o contato entre homem e Natureza. Nas profecias entrecruzam-se, de um lado, a manifestação natural e, do outro, as opiniões dos profetas, dos escritores da Bíblia e dos intérpretes, incorporadas ao texto. São elementos que perfazem o âmbito da imaginação inerente à Escritura. Espinosa começa justamente por inscrever os diferentes tipos de profecias num esboço geral da imaginação humana. Enquanto o milagre é um fenômeno que a razão natural nega, a profecia se distingue do conhecimento racional por consistir em imagens particulares tidas por homens determinados em circunstâncias específicas. Sendo assim, é possível, e Espinosa diz que foi obrigado a fazer a história da profecia e a extrair dela alguns dogmas que lhe dessem a conhecer, na medida do possível, a natureza e as propriedades das profecias.

A composição da história da profecia indicará, para além das particularidades de cada uma, traços gerais da imaginação do profeta. De certa forma, esta depende da existência particular do profeta e também das opiniões e da constituição corpórea dele, principalmente quando se considera que a ocorrência de determinada profecia costuma estar ligada a certa intenção do profeta. Porém, na pesquisa da gênese das imagens proféticas, Espinosa busca o que os profetas realmente viram e ouviram, não o que com isso quiseram significar. Aplica, pois, à profecia o mesmo método que convém na investigação da natureza em geral. Em suma, as narrativas proféticas oferecem uma perspectiva imaginativa da realidade que pode ser adequadamente conhecida a partir de uma análise crítica da imaginação profética. Simultaneamente, remove-se o erro de pensar que a realidade mesma é como a imaginamos, que as nossas imagens são idéias e as revelações, milagres – coisas que existem na Natureza independentemente da percepção do profeta. O conhecimento puramente filosófico é destituído de imagens, excluindo qualquer possibilidade que não tenha uma razão ou causa natural; é da natureza da imaginação humana, porém, representar as coisas alheias à sua ordem causal necessária.

A profecia é real, tanto quanto os efeitos comumente causados pela nossa imaginação. A composição da história da profecia serve para conhecer algo da sua realidade. Se ela não é apta para explicar a Natureza de maneira adequada, é todavia possível explicá-la naturalmente. E nessa explicação do modo como a profecia é possível, Espinosa se afasta do plano de uma verdade puramente intelectual e dirige-se ao domínio da ordem comum da natureza, em que se travam todas as afecções corpóreas. Uma descrição geral delas permite conhecer a natureza da profecia e as suas propriedades.

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Fonte:
Sérgio Luís Persch: “IMAGINAÇÃO E PROFECIAS NO TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO DE ESPINOSA”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientadora: Profª Drª Marilena de Souza Chauí). São Paulo, 2007.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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