O lugar da ética protestante



O lugar da ética protestante

Weber descobriu o capitalismo em absolutamente todas as épocas históricas. Porém, sob sua visão, o caráter específico da modernidade ocidental é precisamente este pendor geral à burocratização. O capitalismo moderno do ocidente se diferenciaria do antigo e do medieval graças a sua racionalidade, seu cálculo, sua burocracia. Sobre a racionalidade burocrática já se falou bastante nestas páginas, sem que fossem feitas menções à maneira pela qual Weber explica a origem do capitalismo moderno. Que este seja o nosso assunto a partir de agora. A teoria weberiana acerca da gênese do capitalismo moderno é controversa porque “a tese de Weber está repleta de ambigüidades, inconsistências e outras curiosidades intelectuais” (Parkin, 2000: 23). O ponto principal da discussão gira em torno da dimensão que possuiria a ética protestante na origem da modernidade.

Swedberg defende que a atuação da ascese protestante seria um episódio apenas na individualidade histórica construída por Weber:

O que nem todos sabem é que Weber via o surgimento do capitalismo moderno como um processo gradual, que teve dimensões institucionais assim como culturais e que se estendeu por vários séculos. A influência do protestantismo ascético é apenas um episódio desse longo processo, embora um episódio importante e particularmente fascinante (2005: 21).

A partir da leitura de História geral da economia, Swedberg constata que Weber deu importância a outros fatores além da religiosidade racional protestante. De fato, naquele texto, Weber colocaria enquanto pressuposto do capitalismo hodierno a contabilidade racional do capital, cujas condições prévias seriam 1) a apropriação dos meios de produção por parte da burguesia, 2) a liberdade de mercado, 3) uma técnica racional, 4) o direito racional, 5) o trabalho livre e 6) a comercialização da economia (cf. Weber, 1968: 250, 251). Aliadas a outros fatores (o Estado racional e o protestantismo), as instituições teriam gerado o capitalismo moderno. Esta é a leitura da tese weberiana para a ascensão da modernidade que Swedberg privilegia: a doutrina protestante é um episódio entre outros de peso igualmente relevante.

Em meio à série de eventos listada em História geral da economia encontra-se a desapropriação dos trabalhadores de seus meios de produção. Seria mais um dos momentos constitutivos do capital moderno, ao lado dos demais. Ao contrário, para Marx, este é o pressuposto histórico para o ser do capital: a apropriação dos meios de produção por parte da burguesia e então a classe trabalhadora “livre” para alienar a sua força de trabalho no mercado. Não há capitalismo em qualquer outra condição. A tendência de Weber é diminuir a importância histórica desse movimento. Na conferência de 1918 sobre o socialismo, Weber afirma que os instrumentos de produção tornaram-se monopólio das empresas e que “esta é uma realidade de fato, mas semelhante fenômeno não é típico apenas do processo econômico de produção” (1993: 97). A partir daqui, Weber enumera situações que qualifica como similares a do trabalhador fabril. Na universidade, “a massa de forças trabalhadoras atuais no âmbito da atividade universitária, sobretudo os assistentes dos grandes institutos, encontram-se, nessa perspectiva, na mesma condição que um operário qualquer” (Weber, idem: 97). Os funcionários e docentes das universidades também estão desprovidos de seus meios de produção, afirmaria Weber. “O mesmo ocorre, também, no âmbito das forças armadas”. Isto é, na modernidade, “tanto o soldado quanto o oficial... deixam de ser proprietários dos meios necessários para travar uma guerra” (Weber, idem: 97, 98).

Não é necessário muito esforço para perceber que Weber reduz a amplitude do movimento de desapropriação dos trabalhadores. É uma abstração desmedida, nociva à ciência, a equalização da função social historicamente determinada ao trabalhador com a de funcionários de universidades e de soldados. O que é o pressuposto genético-ontológico para o ser do capital, Weber equipara a outros momentos profundamente episódicos em vista do processo de “libertação” da classe trabalhadora para que se venda no mercado; na História geral da economia, é mais uma entre tantas esferas que ajudaram a causar a sociedade capitalista.

Caso fosse a construção de uma “individualidade histórica”, diríamos que o “juízo de possibilidade objetiva” de Weber não foi eficaz. Não soube discernir entre o trivial e o substantivo. É resultado de um uso falho das “fontes de conhecimento” e uma análise precária das “regras de experiência”. A desapropriação dos meios de produção dos trabalhadores transformou o curso da História Mundial; uma causalidade de tão magnitude não cabe nem de longe à “desapropriação” de funcionários e soldados.

Não pretendemos estudar todas as esferas listadas em História geral da economia que constituiriam as causalidades do capitalismo moderno, porém, uma outra chama a atenção: a formação do direito racional. À visão de Weber, na sociedade contemporânea, um dos elementos característicos da burocracia estatal seria a racionalização do direito; o nosso autor delineia em Economia e sociedade que, nos marcos da modernidade, a esfera do direito assume a forma de um todo sistemático, “um sistema de regras logicamente claro, internamente consistente e, sobretudo, em princípios, sem lacunas” (Weber, 1999: 12). A sistematização moderna do direito significa a constituição de “um sistema, portanto, que busca a possibilidade de subsumir logicamente a uma de suas normas todas as constelações de fatos imagináveis, porque, ao contrário, a ordem baseada nestas normas careceria de garantia jurídica” (Weber, idem: 12). O direito enquanto corpo normativo implica a abrangência sem lacunas de todos eventos da vida cotidiana. É um dos elementos de maior peso no que tange ao controle burocrático da vida social.

O fenômeno em si é compreendido por Weber sem que a sua substância racional seja capturada. Ater-se ao resultado é prescindir de todo o processo do qual ele é apenas a manifestação histórica. O que está por trás de tal sistematização do aparato jurídico não é levado em conta. Diversamente do que nos noticia Weber, o direito como um sistema não nasce do vazio.

Nos fecundos estudos de A teoria geral do direito e o marxismo, Pasukanis afirma que o direito apenas assume a “forma acabada” na sociedade burguesa: “as relações dos produtores de mercadorias entre si engendram a mais desenvolvida, universal e acabada mediação jurídica” (1989: 09). A sistematização do direito é um movimento que responde às questões postas pela produção material, pela troca de mercadorias no mercado, pela defesa positiva (“não natural”) da propriedade privada: “assim como a riqueza da sociedade capitalista tem a forma de uma enorme acumulação de mercadorias, a sociedade, em seu conjunto, apresenta-se como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas” (Pasukanis, idem: 10). Com a reificação do estágio monopolista do capital, a burocratização jurídica da vida cotidiana tende a expandir-se quantitativa e qualitativamente.

Além do que, Pasukanis constata um dado relevante para a teorização do direito vigente nas relações atuais: “é apenas na sociedade burguesa capitalista, em que o proletário surge como alguém que dispõe da sua força de trabalho como mercadoria, que a relação econômica da exploração é juridicamente mediatizada sob a forma de um contrato” (1989: 10). Pela primeira vez na história, temos um contrato jurídico a intermediar uma relação de exploração entre as classes antagônicas. Nas sociedades escravocratas, “o escravo é totalmente subordinado ao seu senhor e é precisamente por esta razão que esta relação de exploração não necessita de nenhuma elaboração jurídica particular”. O advento das relações capitalistas de produção engendra a essencial novidade: “o trabalhador assalariado, ao contrário, surge no mercado como livre vendedor de força de trabalho e é por isso que a relação de exploração capitalista se mediatiza sob a forma jurídica de contrato” (Pasukanis, idem: 82).

Na Ontologia do ser social, Lukács diz que, à medida que os conflitos adquirem complexidade, o direito torna-se cada vez mais abstrato em sua formalidade lógica. Essa sistematização lógica é estabelecida “não pela objetividade social propriamente dita, mas pelo interesse da classe dominante (ou das classes dominantes ou que articularam um compromisso) para regular e, portanto, dirimir de certo modo determinados conflitos” (Lukács, 1981: 480). O direito é sempre um direito de classe. Lukács costumava exprimir o caráter classista dessa sistematização com uma citação do escritor francês Anatole France contida no romance O lírio vermelho; ela está referida em meio às suas parcas anotações do livro sobre a ética que pretendia escrever: a lei proíbe com a mesma majestade que tanto o pobre quanto o rico durmam embaixo da ponte. Eis uma norma universal, que subsume sem lacunas todos os “fatos imagináveis” e que vela as suas determinações de classe.

O núcleo oculto deste movimento é inapreensível para o formalismo da sociologia weberiana. Até quando estabelece uma conexão entre a sistematização do direito e os interesses da burguesia, Weber não captura efetivamente as determinações que movem este processo:

Naturalmente, cabe sobretudo aos interessados burgueses exigir um direito inequívoco, claro, livre de arbítrio administrativo irracional e de perturbações irracionais por parte de privilégios concretos: direito que, antes de mais nada, garanta de forma segura o caráter juridicamente obrigatório de contratos e que, em virtude de todas estas qualidades, funcione de modo calculável (Weber, 1999: 123).

Os interesse burguês em se criar um direito sistêmico diz respeito à pura racionalização formal, à necessidade de se calcular em contratos as relações entre os agentes econômicos. O direito inequívoco seria um reflexo mecânico do imperativo que se tenha um conjunto calculável de leis para o tráfico de mercadorias, livre de ingerências arbitrárias. Oculta-se o fenômeno descrito por Pasukanis: pela primeira vez na história, temos uma relação de exploração mediada por contratos. Oculta-se que todo um corpo jurídico nasceu sobre esta base material.

Não é a nossa intenção avaliar uma por uma as esferas que, segundo História geral da economia, produziram o capitalismo atual. A desapropriação dos meios de produção dos trabalhadores e o direito racional foram duas ilustrações dos limites do formalismo sociológico de Weber. Swedberg não questiona o formalismo weberiano em seu estudo; valoriza a “pluricausalidade” da explicação que Weber dá para a constituição da modernidade e não a coloca em xeque.

Agora, o problema que cobre a leitura de História geral da economia feita por Swedberg é que o comentador atenua a importância de uma determinada passagem do texto. Nela, Weber diz que “o capitalismo não pode surgir de um grupo econômico fortemente influenciado pela magia” (1968: 315, 316). Ainda que equilibre a força da ascese protestante com as outras instituições listadas acima, Weber não deixa de conferir ao protestantismo a causa primária do capitalismo moderno. Instituições modernas como um corpo de burocratas especializados existiram em outras etapas da história (na China dos confucionistas, por exemplo); contudo, a burocracia não seria “racional moderna” sem a mentalidade ascética que nasce com a Reforma. As profecias dos reformados quebraram a magia; são profecias racionais: “é possível que um profeta, acreditado pelos milagres e outros meios, quebre as normas sagradas e tradicionais” (Weber, idem: 316). Os profetas de confissão protestante romperam com as normas sagradas da tradição. As profecias que se ouviram de sua voz foram eleitas por Weber enquanto o “fundamento” do capitalismo moderno: “às profecias cabem o mérito de haver rompido o encanto mágico do mundo, criando o fundamento para a nossa ciência moderna, para a técnica e, por fim, para o capitalismo” (idem: 316). Lutero e Calvino fundam a modernidade. Não obstante as outras esferas tenham vez no escopo de História geral da economia, o ponto crucial é a primazia da ideologia religiosa, da ascese protestante na constituição da época racional do capitalismo.

Em seu turno, Parkin traça um sentido diverso ao de Swedberg estudando a compreensão weberiana do capitalismo ocidental moderno. Embora a debilidade de seu exame resida no fato de que toma unicamente A ética protestante e o espírito do capitalismo, Parkin defende que Weber possuía duas teses distintas para explicar a ascensão da modernidade ocidental, uma fraca e outra forte. A forte é aquela que assume como ponto de partida da época capitalista a doutrina protestante. A fraca diz respeito a certos instantes da obra de Weber que indicam que a ética protestante e o espírito capitalista harmonizavam-se mutuamente sem que a primeira fosse causa originária do segundo; existiriam entre ambos “afinidades eletivas” e não uma conexão de causa e efeito. Para caracterizar a tese fraca, Parkin baseia-se em um trecho de A ética protestante e o espírito do capitalismo em que está dito:

Em face da enorme barafunda de influxos recíprocos entre as bases materiais, as formas de organização social e o conteúdo espiritual das épocas culturais da Reforma, procederemos tão só de modo a examinar de perto se, e em quais pontos, podemos reconhecer determinadas “afinidades eletivas” entre certas formas de fé religiosa e certas formas de ética profissional (Weber, 2004b: 83).

Esta é a tese fraca: haveria afinidades eletivas entre o espírito capitalista e a conduta protestante. Parkin poderia ter encontrado a tese fraca também em Economia e sociedade. Neste texto, Weber escreve que, com a correspondência entre a reprodução do capital e o comportamento moral estipulado pela Reforma, “está alcançada a coincidência do postulado religioso com o estilo de vida burguês favorável para o capitalismo” (2004a: 399). Coincidiram a religião reformada e os interesses do capital. São simples afinidades ou coincidências. Não existiria, portanto, o pressuposto lógico da tese forte, ou seja, a correlação de causa religiosa e efeito econômico.

Nas respostas às críticas de Felix Rachfahl, Weber tende a reforçar a tese fraca. Não temos os originais de Rachfahl, mas, segundo as citações de Weber, o crítico acusava-o de ter supervalorizado a função das religiões. Weber retruca voltando a utilizar a expressão que tomou de empréstimo de Goethe: “eu encontrei a idéia da ‘profissão vocacional’ [Beruf] e considerei a afinidade eletiva muito específica que o calvinismo (e com ele os quakers e algumas seitas semelhantes) mantém com o capitalismo, afinidade constatada depois de longo tempo” (2003: 418).

A confusão entre as visões dos comentadores dá-se porque Weber é ambíguo em suas colocações. As leituras possíveis e discordantes encontram respaldo nos textos weberianos. No entanto, a tese forte é aquela que recebe maiores atenções ao longo de sua obra (e é obviamente por esse motivo que Parkin lhe atribui a força ao invés da fraqueza): a ascese protestante, especialmente o calvinismo, teria racionalizado o espírito do capitalismo ao determinar a seus seguidores o critério econômico da acumulação de bens como indicativo de salvação. A fórmula é célebre: quanto mais disciplinado for o trabalho do fiel, maiores são as suas chances de obter a salvação de sua alma; o êxito na profissão dá ao crente protestante a certeza da redenção espiritual. De acordo com os preceitos da Reforma, “já que o êxito do trabalho é o sintoma mais seguro do agrado a Deus, o lucro capitalista é um dos mais importantes fundamentos do conhecimento de que a bênção de Deus descansou sobre a empresa” (Weber, 2004a: 399). Esse seria o marco inicial da época moderna ocidental.

A ambigüidade da explicação causal de Weber não é pequena. A tese forte é a norteadora de A ética protestante e o espírito do capitalismo, enquanto que em História geral da economia, Weber procura equilibrar aquelas outras esferas que vimos com Swedberg e a causalidade originária posta à função do protestantismo. Na mesma época em que lecionava os cursos que seriam publicados sob o título de História geral da economia, Weber lançava a segunda edição (em 1920) de A ética protestante e o espírito do capitalismo fazendo notar que “no que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível, sobre os seres humanos como nunca antes na história” (2004b: 165). Nessa citação testemunha-se o poder de alcance atribuído à conduta ascética da religião; como nunca antes na história, a ascese calvinista pôs a transformar o mundo. Na História geral da economia, é correto que a causalidade do período capitalista também se deve a Lutero e Calvino. Mas a conduta ética por eles estipulada convive com as demais esferas privilegiadas por Swedberg. Ficamos entre a explicação unidimensional do ensaio de 1920 e a pretendida “pluricausalidade” das lições sobre a história econômica.

Ainda não se fechou a sucessão de “curiosidades intelectuais” da tese weberiana. No ensaio conhecido como Considerações intermediárias: o destino do Ocidente, Weber dá a entender que o protestantismo teria sido uma resposta ao surgimento do capitalismo moderno; seria o efeito secundário e não a causa instituidora. Weber explica que há uma tensão entre as religiões impregnadas do misticismo tradicional e a esfera econômica do capitalismo contemporâneo: “quanto mais o mundo da economia capitalista racional moderna seguia suas próprias leis imanentes, tanto menos impermeável tornava-se a qualquer relação imaginável com uma ética religiosa de fraternidade” (2005: 56). Haveria um conflito inerente à relação entre a impessoal racionalidade da época capitalista e a fraternidade tradicionalista das velhas igrejas: “e esta impermeabilidade aumentava com o crescimento da racionalização e da impessoalidade” (Weber, idem: 56). Para fugir à tensão entre a fraternidade religiosa e a impessoalidade do capital, criou-se a ética vocacional dos protestantes: “como religiosidade de virtuosos, a ética vocacional puritana renunciava ao universalismo do amor e considerava racionalmente todo o trabalho neste mundo como sendo um serviço à vontade de Deus” (Weber, idem: 58). Weber insinua que a ética protestante tenha sido o retrato religioso das relações capitalistas modernas, uma “aceitação” do estado de coisas da modernidade: “ao mesmo tempo, esta ética [puritana] transfigurava o universo econômico — desprezado, como totalidade do mundo, como coisa da criatura e imperfeita — em vontade divina e material sobre o qual deita o próprio dever” (idem: 58). Em outras palavras, a rotina burocrática da economia moderna é anterior e a conduta puritana aceita-a, ajusta-se mecanicamente a ela, transfigura-a em vontade de Deus.

Essa passagem aponta que existiam maiores inconsistências no “construto lógico” de Weber do que ele mesmo poderia desconfiar. As arestas ilógicas de sua individualidade histórica destacam-se à medida que se confrontam os diversos textos em que são abordados assuntos similares. Se a causalidade cronológica da época capitalista encontra-se na ética protestante, esta última não seria uma “aceitação” do cosmos econômico moderno, tampouco uma simples coincidência; pelo contrário, seria a sua origem fundadora. Apesar disso, o fragmento das Considerações intermediárias parece ser um momento avulso que não se repete ao longo da obra weberiana. Talvez Weber desejasse que os seus leitores calassem quanto a essas “curiosidades intelectuais” e retivessem apenas a tese forte de A ética protestante e o espírito do capitalismo: a doutrina protestante fundou a modernidade do espírito capitalista e ponto final.

Na individualidade histórica que construiu do capitalismo ocidental, Weber colocou-se a pergunta: se Lutero e Calvino fossem retirados da história, existiria a modernidade do capital? A despeito das contradições internas, o conjunto global dos escritos de Weber responde negativamente à questão.

Não houve um par como o de Lutero e Calvino no Oriente. Faltou ao capitalismo oriental a conduta racional dos ascéticos. Na China, por exemplo, Weber descreve a sua burocracia estatal e constata a ausência da advocacia, porque “os membros do clã, possivelmente educados em literatura, funcionavam como advogados para seus familiares” (Weber, 1968a: 102, 103). A burocracia chinesa baseava-se na irracionalidade das tradições. Segundo Weber, “o capitalismo industrial racional, específico do desenvolvimento moderno, não originou em nenhum lugar sob este regime” (idem: 103).

Não haveria capitalismo moderno sem a liderança racional-legal: “o investimento capitalista na indústria é bastante sensível a tal norma irracional e muito dependente da possibilidade de cálculo da operação estável e racional da máquina do Estado para emergir sob uma administração deste tipo” (Weber, idem: 103). Faz-se a pergunta: “porém, por que esta administração e este judiciário [na China] permaneceram tão irracionais do ponto de vista capitalista? Esta é a questão decisiva” (idem: 103). Já adiantamos a resposta à “questão decisiva” no início do parágrafo; Confúcio e Lao-tzu não foram para as religiões chinesas o que os Reformadores foram para o cristianismo. Como as demais esferas da vida social, a administração chinesa permaneceu irracional visto que Lutero e Calvino não estavam lá. O confucionismo e o taoísmo não racionalizaram profundamente a ética religiosa. Das religiões chinesas, conforme Weber, o confucionismo foi a que mais perto chegou da ascese protestante. Todavia, “o racionalismo confucionista significou a adaptação racional ao mundo; o racionalismo puritano significou o controle do mundo” (Weber, idem: 248). O racionalismo de Confúcio implica a procura da autoperfeição do espírito, da sabedoria respaldada nas tradições, da compreensão e aceitação do mundo (ao contrário do puritano que atua no mundo para adaptá-lo à sua vocação).

Nos seus estudos sobre a China, Weber especializa-se no fragmento da religião. É da religião a prioridade na interpretação do comportamento típico dos chineses. Em certa medida, as instituições capitalistas estavam lá, porém sem o espírito racional dos ascéticos. Sem a mentalidade ascética, não nasceu o moderno espírito capitalista entre os chineses. Entretanto, em uma curta frase, Weber menciona um fato que talvez merecesse melhor atenção: “foram obstruídas na China a ‘disciplina do trabalho’ e a seleção livre de trabalho no mercado, as quais caracterizaram a grande empresa moderna” (1968a: 95). Face ao vínculo dos homens à rígida estrutura dos clãs, jamais houve na China a força de trabalho disciplinada e “livre” para se vender no mercado. Não resta dúvida que esta característica da sociedade chinesa poderia ter sido mais bem desenvolvida pelo estudo de Weber. Mas, tivemos ocasião para demonstrar que, embora o trabalhador desapropriado de seus meios de produção e subsistência fosse referido por Weber, este evento histórico não lhe causava a maior das preocupações. Como o nosso autor disse logo acima, a “questão decisiva” não era esta. Weber centrava-se, sobretudo, na forma como a ascese protestante modelou “a face do gênero humano” no Ocidente e continuaria a modelar no futuro, não obstante tenha perdido os laços religiosos de origem.

O mesmo tratamento é dado à sociedade indiana. Na Índia, Weber depara-se com instituições “racionais”; um exército organizado, contabilidade burocrática, monopólios de comércio e comunicação, sistema numérico racional, relativo desenvolvimento urbano, aritmética e álgebra desenvolvidas, direito positivo; tudo isto havia lugar na Índia, segundo Weber. Por que então o capitalismo moderno de feição ocidental não aportou em terras indianas? O fato é que foi o próprio ocidente que o levou a Índia. Weber relata que “o capitalismo industrial moderno, em particular a indústria, entrou na Índia sob a administração britânica e com diretos e fortes incentivos” (1967a: 113). Todavia, Weber não pretende analisar os impactos que a dominação colonizadora do capital inglês impôs aos indianos, o que Marx chamou de “crimes do capital”. Pelo contrário, incumbe-se de compreender as dificuldades que as relações capitalistas tiveram para lá se desenvolver. O capital monopolista não encontrou uma força de trabalho domesticada, pronta para ser explorada: o indiano é “apenas um trabalhador casual. ‘Disciplina’ no sentido europeu é uma idéia desconhecida por ele” (Weber, idem: 114). A exploração capitalista encontrou barreiras no tradicionalismo da cultura da Índia. Careceu o capitalismo indiano da ascese que condicionasse o operário ao trabalho vocacional e “racionalizado”: “para racionalizar a economia era impossível romper com o tradicionalismo, baseado na ritualística das castas que se ancora na doutrina do karma” (Weber, idem: 123). Weber especializou-se no fragmento da religião; um “economista” que cuidasse dos “crimes do capital”.

Na individualidade histórica de Weber para a modernidade ocidental, os Reformados interpretam o papel de protagonistas. Ernst Troeltsch intuiu os equívocos que possivelmente existiriam em se “exagerar unilateralmente a significação do protestantismo” (2005: 28). Por isso, tratou de registrar:

Uma grande massa dos fundamentos do mundo moderno em respeito ao Estado, à sociedade, à economia, à ciência e à arte originou-se com completa independência do protestantismo, sendo, em parte, uma simples continuação dos desenvolvimentos da baixa, Idade Média, em parte, efeito do Renascimento e, especialmente, do Renascimento assimilado pelo protestantismo, e, finalmente, foi lograda nas nações católicas, como Espanha, Áustria, Itália e especialmente França, depois que surgiu o protestantismo e junto a ele. Porém, de todo modo, não é possível negar abertamente sua grande significação na origem do mundo moderno (2005: 28).

O historiador das religiões é muito mais cauteloso do que Weber ao avaliar a importância dos Reformados. Vejam que Troeltsch expõe inclusive problemas cronológicos para se atribuir à conduta ascética a causa originária da modernidade. É fato que Weber também observa que “certas formas importantes de negócio capitalista” são mais antigas que a Reforma (cf. 2004b: 82); todavia, esta observação permanece sendo uma outra das contradições internas à tese de Weber, para a qual o capitalismo moderno não poderia nascer sem a mentalidade ascética. Ainda que não dê um tratamento dialético às questões que levanta, Troeltsch não absolutiza unilateralmente a influência da doutrina religiosa no devir da modernidade; a sua análise caminha no sentido de imputar à religião o papel fomentador do comportamento moderno, sem que fosse a instância criadora, a causa única: “o Estado moderno e sua liberdade e seu regime constitucional, sua burocracia civil e militar, a economia moderna e a nova estratificação social, a ciência moderna e a arte moderna encontram-se já em marcha... antes do protestantismo e sem ele” (Troeltsch, 2005: 95). Troeltsch deseja explicar aspectos do homem moderno a partir do luteranismo e do calvinismo e, ao fazê-lo, não escapa dos limites de um neokantismo culturalista, mas se desvencilha daqueles que viriam quando se confere uma causalidade absoluta às forças religiosas.

Troeltsch não foi o único pensador burguês a conceber uma variante da interpretação weberiana para a gênese da época capitalista (é evidente, sem fazer concessões à concepção materialista da história). Outros autores participam do baile. No ensaio As origens do capitalismo moderno, Lujo Brentano elabora a sua própria teoria sobre o fator causal da modernidade. De acordo com o economista, “o capitalismo moderno obteve então suas origens no comércio, no empréstimo do dinheiro e na organização da guerra” (Brentano, 1968: 60, 61). Dos três elementos, o que adquire maior relevo em sua teoria é a organização da guerra. Na guerra, a diferença entre o regime feudal e o capitalismo moderno patenteia-se: “na guerra ofensiva, o sistema feudal demonstrou-se ineficaz; era necessário comprar com dinheiro os serviços dos cavaleiros. É este o primeiro passo da penetração do capitalismo na organização da guerra” (Brentano, idem: 51). A partir do investimento do dinheiro acumulado nas cidades comerciais mediterrâneas, as guerras começaram a ser construídas como verdadeiros empreendimentos capitalistas. Para que não haja dúvidas, Brentano finca o marco inicial: “encontramos as primeiras formas de capitalismo nas guerras marítimas travadas pelas cidades italianas comerciais. Lá, as expedições guerreiras apresentam às vezes o caráter de empresas de sociedade de ações” (idem: 45).

Alfred Weber prefere privilegiar o papel do Estado ao explicar a ascensão do capitalismo moderno. O capitalismo moderno seria a passagem do comercial para o industrial. Nesta passagem, o Estado teria atuado em primeiro plano. Alfred Weber relata que o capitalismo industrial foi um “presente maravilhoso para os modernos estados” em sua época de constituição (cf. s/d: 427). Conforme a História sociológica da cultura, “o Estado moderno, quanto a seu crescente ímpeto, só é compreensível à luz desse fato material. O Estado moderno atrai a si, com todos os seus meios, o capitalismo nascido na Itália, na Flandres, na Inglaterra e nas cidades alemãs” (Weber, idem: 427). O Estado moderno teria criado a época capitalista. Vejam que o capitalismo comercial é apresentado como um fato da história, que não necessita ser explicado, cuja ascensão para a forma industrial é produzida pelo “ímpeto” do Estado moderno.

Alfred Weber esclarece em que consistiu o desempenho do Estado na consecução da modernidade do capitalismo: para que se fomentasse a empresa capitalista contemporânea, era preciso que fossem formados monopólios e privilégios, uma moeda e um sistema de crédito monetário organizados, estradas, canais e correio público; além disso, o capitalismo moderno nascente precisava de colônias em todas as regiões do mundo, de terras a serem exploradas, de “territórios estrangeiros aos quais, depois de ter destruído a produção primitiva dos indígenas, pudesse vender com grande ganho, comprar barato ou fazer produzir barato aquilo que venderia caro depois” (Weber, s/d: 428). Eram necessários a força de trabalho barata e também o exército armado que lhe protegesse. Estes eventos teriam vez apenas com a ação do Estado: “só o Estado moderno seria capaz de proporcionar todos esses meios” (Weber, idem: 429). Dessa maneira, segundo História sociológica da cultura, o Estado alimentou o “ser que, uma vez criado, tem de desenvolver-se por si próprio como conquistador da vida e do mundo, dado que este ser vivia do princípio da acumulação do capital..., levando... em si próprio forças ilimitadas que possuíam as suas próprias leis de evolução” (idem: 431).

Em seu turno, Werner Sombart trouxe à luz a sua versão particular para o surgimento do “espírito capitalista”. No seu caso, a polêmica era explícita contra Max Weber. O economista descobre o “espírito de empresa”, característico do empreendimento burguês, muito antes do Benjamin Franklin de Weber; escreve que, “se não me equivoco, em Florença, até fins do século XIV apareceu pela primeira vez o perfeito burguês” (Sombart, 1953: 103). Assim afirma Sombart porque o atesta um grande número de documentos deixados por homens de negócios e outros que estavam à par das atividades comerciais; são homens que “consignaram seus pensamentos em preciosas memórias ou obras morais cuja leitura erige ante nossos olhos, com claridade meridiana, a imagem e semelhança de Benjamin Franklin, cabal encarnação do espírito burguês” (Sombart, idem: 103).

Sombart elege o filósofo Leon Battista Alberti (1404-1472) como o autor da obra que, em primeira mão, reúne os princípios do espírito capitalista. Haveria em Do governo da família as noções de racionalização da conduta econômica, o espírito acumulativo e a honestidade nos negócios; são características que Sombart chama de “virtudes burguesas” já presentes na obra do renascentista. Esse livro demonstra para o economista que aquilo que se encontra na época capitalista “a saber, os princípios de uma existência burguesa bem ordenada, discreta, fundada em um determinado conjunto de conveniências, signos de bom tom e distinção, forma desde 1465 a substância vital da alma dos comerciantes e dos banqueiros florentinos” (1953: 103).

Entretanto, para melhor articular a sua explicação para a origem do capitalismo contemporâneo, o economista alemão separa dois tipos ideais de burguês: o antigo e o moderno. O antigo percorre desde o Renascimento até o século XVIII e tem como principal atributo o fato de que não está a serviço do capitalismo; “para todos os homens dos alvores do capitalismo, os negócios não eram mais que um meio para se chegar ao único fim supremo que não era outro senão a vida”. Segundo Sombart, estes homens colocavam-se no centro mesmo de seus interesses: “eram seus próprios interesses vitais e dos demais homens com quem e para quem trabalhavam que determinavam a direção e a medida de suas atividades” (1953: 148). A marca distintiva do novo burguês, advindo da revolução industrial inglesa, é o deslocamento do centro de seus interesses para a aquisição do lucro: “o homem, com seus prazeres e dores, com suas necessidade e exigências, deixou de ser o ponto de convergência de todos os interesses, e que seu lugar foi ocupado por algumas abstrações como o lucro, o enriquecimento, os negócios” (idem: 162). Esse é o aspecto psicológico de principal relevância na caracterização do burguês moderno feita por Sombart: o homem deixa-se de lado, ocupa-se com a obtenção dos lucros e nada mais.

Restaria saber quais foram as novas forças que, de acordo com Sombart, produziram a mudança, trouxeram o lucro para o cerne dos interesses do homem burguês e engendraram a modernidade do capital. O economista é claro quanto a isso: o espírito do capitalismo moderno deve-se aos judeus, graças à sua predisposição psicológica e à sua religião.

Vejamos com maiores detalhes o caminho traçado pelo autor de O burguês rumo à conclusão de que os judeus instituíram o capitalismo moderno. Sombart sustenta que a biologia particular de certas raças detém condições que contribuem ao empreendimento capitalista: “sem dúvida, todas as manifestações do espírito capitalista reduzem-se, como todos os estados e processos psíquicos, a predisposições particulares, é dizer, a propriedades originais e hereditárias do organismo” (1953: 187). Seriam inerentes à psicologia de determinadas raças as aptidões que impulsionam o capital. Apesar do grosseiro darwinismo social de suas idéias, Sombart não se abala: “a meu juízo, é um fato acima de toda discussão que as manifestações do espírito capitalista e que a estrutura psíquica em sua totalidade repousam sobre predisposições hereditárias” (idem: 187). Homens de certa estirpe nascem com a alma burguesa, com a “vivacidade de espírito, perspicácia, inteligência” que, conforme Sombart, perfazem o temperamento do empresário (cf. idem: 189). A natureza burguesa está “no sangue”. Por isso, “avistamos de longe um burguês porque conhecemos o aroma especial que se desprende desta raça humana” (Sombart, idem: 191).

Por conseguinte, as etnias que estariam predispostas ao capitalismo empreendedor são aquelas que abrangem o maior número de homens com a alma burguesa. Observem as conclusões produzidas pelo economista a partir deste determinismo psicológico: “entre os povos cujas aptidões capitalistas estão abaixo do comum, coloco antes de tudo os celtas e algumas tribos germânicas, como os godos” (1953: 199). Em contrapartida, “entre os povos europeus, foram os florentinos, os escoceses e os judeus os que mais contribuíram para o desenvolvimento do espírito capitalista” (Sombart, idem: 202). Assim, aqui estão os judeus com as suas predisposições psicológicas e biológicas a ajudar na constituição do capital moderno. Mas não estão sós. Os florentinos e os escoceses figuram entre eles. Os três povos mantiveram-se puros ao longo dos tempos. Não mesclaram o seu sangue burguês com outros povos menos aptos ao capitalismo e selecionaram entre si os mais fortes para o empreendimento empresarial.

Por que seriam então os judeus os escolhidos por Sombart para fazer originar o capitalismo moderno? É de se interrogar o que os difere das duas “etnias” também aptas para o espírito capitalista. A resposta é mais simplória do que parece à primeira vista: segundo Sombart, nem os florentinos e sequer os escoceses tiveram para si uma moral religiosa como o judaísmo. Ou seja, “a influência da religião judaica sobre a orientação da vida em geral e da vida econômica em particular foi mais decisiva e mais profunda que as outras demais” (Sombart, 1953: 224). Sombart refuta claramente a idéia weberiana de que o protestantismo foi um impulso ao capital; pelo contrário, a “Reforma teve incontestavelmente como resultado uma introversão do homem e a intensificação de sua necessidade metafísica, os interesses capitalistas deviam necessariamente sofrer na medida em que o espírito da Reforma difundia-se e generalizava-se” (idem: 241). Conforme os estudos de Sombart, o papel que Weber credita ao protestantismo pertenceria, na verdade, ao judaísmo. Se existiram grandes capitalistas puritanos, Sombart inclina-se a crer na força das disposições naturais deste homens ou nas meras circunstâncias casuais; não seria resultado da ascese protestante (cf. idem: 249). Fosse talvez a influência do judaísmo dentro do próprio protestantismo.

A situação é diferente quando se trata do judaísmo: “o que considero como o aspecto específico do judaísmo é que este contém e desenvolve até as últimas conseqüências lógicas todas as doutrinas favoráveis ao capitalismo” (Sombart, 1953: 252). Haveria nos preceitos da religião judaica os mandamentos que motivam a liberdade comercial e industrial. O economista sugere inúmeras passagens dos textos sagrados dos judeus em que são comprovados tais pressupostos. De acordo com Sombart, para a fé judaica, “não há dúvidas: é Deus mesmo quem deseja a liberdade de comércio, o exercício liberal das profissões. É inútil insistir acerca da influência que semelhante concepção desempenhou sobre a orientação e evolução da vida econômica” (idem: 257).

Em um livro chamado Os judeus e o capitalismo moderno, Sombart coloca a seguinte questão para os leitores que ainda duvidam de que existe algo de essencialmente judeu na constituição do capitalismo contemporâneo: “de outra maneira, poderíamos talvez assegurar que não haveria diferença para a história econômica da Europa ocidental se os esquimós tivessem ocupado o lugar dos judeus, ou quem sabe até gorilas tivessem feito esta função tão bem” (2001: 176, 177).

A religião judaica é milenar e a constituição do capitalismo moderno data do século XVIII. Lembrem-se de que o novo burguês seria recente na história do homem. Explica Sombart que, apenas neste período, as premissas biológicas, psíquicas e religiosas do povo judeu conseguiram as condições sociais que serviram de fulcro para a formação de uma época capitalista. No século XV, trezentos mil judeus foram expulsos da Espanha e espalharam-se pela Europa. Esses migrantes judeus “são os pioneiros e os animadores da organização capitalista” (Sombart, 1953: 281). A este fenômeno agregam-se condições sociais de outra espécie: maiores migrações, o Estado, as descobertas de minas de outro e prata, a técnica racional, etc. Assim se deu o capitalismo moderno; “o gigante liberado percorreu os países, assolando tudo a seu passo, demolindo todas as barreiras que se opunham ao avanço de sua marcha” (Sombart, idem: 338).

Ao concluir triunfante, diz Sombart que o seu estudo sobre a constituição do capitalismo “não deixa de pé nem sequer hipóteses tão engenhosas como as de Max Weber” (1953: 335).

Max Weber não se furta a dialogar com as provocações de Sombart. É escrito no capítulo da sociologia das religiões em Economia e sociedade: “na polêmica contra o engenhoso livro de Sombart não se deveria ter contestado seriamente o fato de que o judaísmo participou intensamente no desenvolvimento do sistema econômico capitalista da Idade Moderna” (2004a: 405). Com efeito, em parcial concordância com Sombart, Weber vê no judaísmo uma forma de racionalização da conduta cotidiana, que, em certa medida, fomenta o “espírito do capitalismo”: a despeito de suas diferenças internas, o fato de que o judaísmo e o protestantismo “não conhecerem nenhuma confissão e dispensa de graça por uma pessoa humana e nenhuma graça sacramental mágica, exerceu historicamente aquela pressão imensamente forte que levou ao desenvolvimento de formas eticamente racionais de vida” (Weber, idem: 376). Sob configurações diferentes, ambas racionalizam a conduta no mundo.No entanto, do ponto de vista de Weber, a racionalização da ética judaica não teria alcançado o grau de asceticismo modernizador de seu herdeiro, o protestantismo:

O sucesso nas atividades aquisitivas passou a ser cada vez mais, para o judeu do gueto, uma prova tangível da graça pessoal de Deus. No entanto, a idéia de “afirmar-se” na “profissão” determinada por Deus não se aplica ao judeu no sentido dado pelo asceticismo intramundano. Pois a bênção de Deus está arraigada, muito menos do que entre os puritanos, num método de vida sistemático, ascético e racional, como a única fonte possível da certitudo salutis. Não apenas, por exemplo, a ética sexual conservou um caráter antiascético e naturalista, e a ética econômica do judaísmo antigo permaneceu fortemente tradicionalista nas relações postuladas, francamente dominada pela valorização da riqueza, alheia a toda ascese, como também toda santificação pelas obras dos judeus tem um fundamento ritualista e, além disso, está freqüentemente combinada com o conteúdo sentimental específico de uma religiosidade baseada na fé (2004a: 339).

Weber alega que fortes elementos tradicionalistas mantiveram-se na moral da religião judaica. Nas relações sexuais, na esfera econômica, no próprio ritualismo sacramental, os judeus não se desvencilharam as amarras da tradição. A ascese dos judeus não foi uma ruptura plena com a magia à maneira do protestantismo, sob a ótica de Economia e sociedade.

O sociólogo não duvida que o judaísmo estimulou determinadas atividades aquisitivas, porém, sustenta que falta à economia dos judeus “uma seção — não por inteiro, mas relativamente e num grau que chama a atenção —, a saber, aquela que é precisamente própria do capitalismo moderno: a organização do trabalho artesanal em indústrias caseiras, manufaturas e fábricas” (Weber, 2004: 406). Segundo o sociólogo, as teorias de Sombart não explicam o motivo pelo qual “não tenha ocorrido a nenhum judeu devoto criar uma indústria com os círculos de trabalhadores judaicos devotos no gueto da mesma maneira como o fizeram tantos empresários puritanos devotos com devotos trabalhadores e artesãos cristãos” (idem: 406). Na seqüência do parágrafo, Weber é categórico: “eles [os judeus] estão quase inteiramente ausentes (em termos relativos) do que é especificamente novo do capitalismo moderno, isto é, a organização racional do trabalho, sobretudo artesanal, em ‘empresas’ industriais” (idem: 406). Isso teria acontecido porque o judaísmo nunca possuiu a realização racional capitalista enquanto a medida de sua salvação. “Há traços ‘ascéticos’ no judaísmo, mas eles não são, em si, o central, mas em parte apenas conseqüências da lei e em parte procedentes da problemática peculiar da piedade judaica; em todo caso, são tão secundários como tudo que o judaísmo possui de mística genuína” (Weber, idem: 410).

A distinção do protestantismo estaria justamente naquilo que carece à moral judaica; de acordo com Weber, para esta última “o que falta é precisamente aquilo que dá ao ‘asceticismo intramundano’ sua característica decisiva: a relação unitária com o ‘mundo’ sob o aspecto da certeza de salvação, da certitudo salutis, sendo esta o centro do qual tudo se alimenta” (2004: 410). Weber reconhece na religião protestante a herança da judaica; mas é um filho que não carrega absolutamente todos os traços do pai. O protestantismo aniquilou tudo de magia que ainda persistia no judaísmo e levou a racionalização incipiente dos judeus a um nível nunca visto. Seria justamente o que existe de “não-judaico” no protestantismo que teria causado o espírito do capitalismo moderno: a conduta cotidiana do exercício profissional que se oriente para o acúmulo racional de bens. Uma eclética mistura das categorias maristas com os conceitos weberianos ficaria assim: a ascese protestante incita a reprodução ampliada do capital.

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Fonte:
RANIERI CARLI DE OLIVEIRA: “AS RAÍZES HISTÓRICAS DA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER”. (Tese apresentada ao programa de pós-graduação em serviço social na Universidade Federal do Rio de Janeiro para a obtenção parcial do título de doutor em serviço social. Orientação: profº José Paulo Netto). Rio de Janeiro, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.Disponível digitalmente no site: Domínio Público

2 comentários:

  1. Apenas uma correção: o primeiro nome de Weber é MAX e não MARX.
    Att,
    Ranieri Carli de Oliveira.

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  2. Caro Ranieri,

    Muito grato pela correção, que já realizamos...

    Um abraço!

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