Octauia como romance histórico



Octauia como romance histórico

Pode-se detectar no surgimento do Romantismo o ponto em que a conjunção entre os dois saberes que vimos estudando chegou ao zênite, dando inclusive origem a um gênero narrativo que, híbrido, contraria o senso comum da Biologia por ser extremamente fértil: o romance histórico.

Surgido em inícios do século XIX, o romance histórico tem na obra de Walter Scott seu modelo mais tradicional e que estabelece os princípios que lhe garantirão lugar no cânone. (Note-se que, de toda a tipologia romanesca, o histórico é o gênero que se estabelece sob o modelo mais rígido: justamente o scottiano). No seu surgimento, o romance histórico seguia à risca os processos de construção discursiva que a História coroara como os únicos válidos: linearidade narrativa; fidelidade aos fatos tidos como “verdadeiros” pela História oficial - mostrados como pano de fundo - já que sempre se mostrava a vida de personagens ficcionais ou secundários no processo histórico. Outro detalhe tem grave importância no modelo scottiano: os fatos históricos tratados estarão sempre localizados à distância, senão no espaço, mas no tempo. Será justamente este o primeiro dado que nos impede de inserir Octauia nesta categoria, afinal, a situação histórica retratada na peça é recente: aceita a hipótese de Herrmann de que a obra teria sido composta durante o governo de Vespasiano, o autor estaria, por conseguinte, tratando de fatos que estavam ainda nítidos na memória de todos.

Outro dado que nos dificulta classificar a obra segundo este critério é o fato de haverem inexatidões quanto à historiografia – algo que o romance histórico não admite. Em Octauia, estas apresentam-se em dois momentos do texto, conforme o cotejo da narração transmitida na peça com aquela legada pelos historiadores posteriores ao período da ação dramática. Assim, neste momento, e nos que se seguirem, processaremos uma comparação entre estas narrativas, tais como mostradas no texto, e sua “versão” segundo historiadores como Suetônio e Tácito, que se detiveram nos acontecimentos daquele período histórico e que, ao lado de Tito Lívio, são os principais construtores da historiografia romana.

O momento em que a narrativa de Octauia escapa à veracidade historiográfica é que, segundo Suetônio, (VI, 35) há uma diferença de doze dias entre o repúdio de Otávia por Nero e seu casamento com Popéia: “Poppaeam duodecimo die post diuortium Octauiae in matrimonium acceptam dilexit unice” (142-4). Na peça, o segundo ato termina com Nero comunicando a Sêneca sua decisão de casar-se com Popéia – já grávida, aliás – e ao início do terceiro, no dia seguinte, o matrimônio já ocorrera. Também o modelo scottiano exige, quase didaticamente, esclarecimentos quanto aos motivos das ações das personagens históricas, e isto nos falta em Octauia, como afirma Liberman:

La pièce n’évoque pas explicitement la répudiation d’Octavie, elle n’en mentionne pas le prétexte, la stérilité de la jeune femme. Il n’y a pas question de l’accusation d’adultère avec un esclave grec que Popée tenta en vain de faire peser sur Octavie (LIBERMAN, 1998, X)

A falta das motivações históricas e a deformação do tempo histórico para adaptar-se ao narrativo, além do fato de a obra pôr em evidência as personagens históricas, são os fatores que nos impedem de classificarmos Octauia como romance histórico, ao menos segundo o modelo scottiano, o qual não é o único modelo que o gênero apresenta, como veremos em seguida.

Além do scottiano, outro modelo de romance histórico aparece na Europa – este formulado por Alfred de Vigny – e destoa daquele por colocar em primeiro plano as figuras históricas. Octauia parece estar inserida na “árvore genealógica” deste modelo de romance que, se não alcançou, na Europa, a popularidade do scottiano, é ainda assim considerado, por Alexis Márquez Rodríguez (1996), como o modelo de romance histórico inicialmente preponderante na América Latina do século XIX. Para isso, aponta as coincidências estruturais existentes entre o modelo de de Vigny e aquele presente em Xicoténcatl. O modelo scottiano, para Márquez Rodríguez, parece ter-se estabelecido após ou concomitantemente ao de de Vigny.

Em decorrência disso, a principal reprimenda feita pela crítica européia de então ao modelo de de Vigny: colocar à frente da narrativa a personagem histórica; parece-nos a mais facilmente aplicável ao caso de Octauia, até porque se o modelo scottiano partia de heróis já estabelecidos na história da nação; ao autor anônimo, naquele momento da história do Império Romano, uma vez que pretendia a (re)construção da identidade cultural - cabia estabelecer antes o herói.

E este é, afinal, o trabalho desenvolvido pelo autor anônimo: estabelece uma tríade de personagens com papéis bem demarcados: o herói (Sêneca), luminar de conhecimento que desafia o tirano (Nero) com a força que sua doutrina filosófica lhe proporciona; e a mártir (Otávia), que simboliza em si mesma não apenas a última herdeira dos júlio-cláudios, nem tampouco as demais vítimas do regime imperial, tal como exercido por Nero - ao qual se fazia, enfim, oposição - mas constituía-se também em exemplo da resignação estóica.

É enfim em torno à figura de Sêneca que o autor de Octauia tenta criar um paradigma identitário romano: através da personagem Sêneca, o autor mostrava o padrão de comportamento que se deveria esperar de um cidadão. Padrão esse que, repetimo-nos, estava assentado na tradição cultural herdada da República e corroborada pelo estoicismo: o autor de Octauia usou, astutamente, a personagem Sêneca para discutir e divulgar as próprias idéias do filósofo Sêneca.

Ademais, se verídica a hipótese de que a peça tenha sido escrita antes dos Anais de Tácito e da Vida dos Doze Césares de Suetônio; é-nos lícito imaginar também se, em efeito reverso, não terá o texto de Octauia, literário, colaborado para o retrato histórico que estas obras constroem destas figuras que até hoje povoam o imaginário ocidental.

Octauia como narrativa de extração histórica

Se fica clara a possibilidade de alocar-se Octauia como um romance histórico avant la lettre, calcado no modelo de de Vigny, o segundo ítem que apontamos demonstra perfeitamente que, à medida em que o romance histórico engendrava sua descendência, novas tipologias se fizeram necessárias para classificar seus “herdeiros”, seus “bastardos” e, no caso de Octauia, seus “ancestrais”. Mais, se a denominação inicial parece conceder ao gênero romance a exclusividade no trato do histórico, como classificar-se aquelas formas narrativas que - como Octauia - pertencem claramente a outros gêneros – ou, pior, têm gêneros indefinidos - mas ainda assim tratavam da História, seja como pano de fundo ou cortina de palco?

Em busca de uma resposta a este questionamento e visando preencher esta lacuna terminológica, André Trouche cunhou, aplicando inicialmente à literatura hispano-americana, uma expressão que acreditamos poder ser estendida à literatura latina - o termo “narrativa de extração histórica”, cuja justificativa corrobora nossa visão acerca a), da existência de um espaço intertextual histórico-literário na literatura latina e b), da não-linearidade na construção destes textos; a citação, por conseguinte, faz-se mais do que necessária:

... a opção pelo composto “narrativas de extração histórica” encontra-se no fato de que o diálogo com a História não se restringe ao âmbito do romance histórico, e sua linha de continuidade, ou ao âmbito das chamadas metaficções historiográficas. Ao contrário, no universo do sistema literário hispano-americano, muito antes do século XIX, já encontramos significativa produção narrativa que toma o histórico como intertexto. Refiro-me à crônica historiográfica dos séculos XVI e XVII e a alguns narradores como Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Palma, ambos no mesmo século XIX, mas totalmente afastados do modelo do romance histórico, tomaram a memória, a história e o legendário oral como signos contíguos não excludentes, compartilhando a mesma perplexidade e o mesmo projeto de autoconhecimento, a partir do diálogo com a história. (...)
Neste sentido, o composto narrativas de extração histórica, entendido conceitualmente como o conjunto de narrativas que encetam o diálogo com a História, como forma de produção de saber e como intervenção transgressora, se nos afigura como mais adequado que aqueles, cunhados ao longo do tempo. (TROUCHE, 1997, p. 34)

Assim concebidas, as narrativas classificadas como de extração histórica se apresentam como categoria suficientemente abrangente para dar conta daquelas construções textuais que fogem às tipologias estabelecidas pelo cânone literário, como é o caso de Octauia, em que se mesclam tipologias distintas.

Nascida em terreno intertextual, acrescido da impossibilidade de estabelecermos a completa linearidade do processo constitutivo da literatura latina e pela inexeqüibilidade da compartimentação dos saberes - tornada possível pela inoperância da objetividade histórica fora da linearidade - a categoria narrativa de extração histórica parece comportar uma chave para a compreensão do processo de construção identitária vinculado à doutrina estóica ensejado por Sêneca e a elaboração de um texto como o de Octauia – visto que o apresenta como uma rede discursiva intencionalmente elaborada e em que se percebe que, a partir da tríade que acima mencionamos, o autor anônimo objetiva estabelecer outra: a de uma nova identidade cultural romana, baseada na antiga tradição de valores, ratificada pelo estoicismo e expressa através de um regime, que mesmo sendo o imperial, não mais seria tirânico.

Mas se até aqui vimos mencionando haver, em Octauia, um tratamento da relação História e Literatura diferenciado daquele que as letras romanas consagraram - fato este em que nos baseamos para qualificá-la como narrativa de extração histórica -, tratamento este que, aliado a uma configuração da estrutura de tragédia que escapava parcialmente aos ditames expostos por Horácio, e que, congregados, estes fatores aproximam o texto da peça ao gênero do romance histórico; convém ressaltar a existência, na obra, de outro tipo de hibridismo, que trai uma intencionalidade que o autor não nos confessa, mas de que nos traça pistas...

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Fonte:
Luiz Fernando Dias Pita: A “PRAETEXTA” OCTAVIA E O PENSAMENTO DE SÊNECA (Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas (Área de Concentração: Culturas da Antigüidade Clássica), da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Clássicas. Orientador: Prof. Dr. Carlos Antonio Kalil Tannus). Rio de Janeiro, 2006.

Nota
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