Olavo Bilac: um cronista carioca da gemma


Olavo Bilac e grupo de amigos em visita à fazenda de Júlio Mesquita, em 1914

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OLAVO BILAC: UM CRONISTA CARIOCA DA GEMMA

“Olavo Bilac é carioca da gemma”. Com essa afirmação, Guimarães Passos iniciou o retrato do cronista, na edição de março de 1893, sua “Biographia Express” — coluna que assinava na revista literária O Álbum, dirigida por Artur Azevedo (cf. DIMAS: 2006, p. 34).

A nosso ver, entretanto, a longa citação que se segue, parte de uma entrevista realizada com Olavo Bilac pelo cronista-repórter João do Rio, em 1904, constitui, a mais bela e harmoniosa descrição do poeta-cronista — ou cronista-poeta — e, portanto, julgamos importante transcrevê-la neste trabalho:

A originalidade desse homem reside na sua sensibilidade extrema e sorridente, na sua impecabilidade, nessa doçura como que rítmica que harmoniza os seus períodos e o acompanha na vida. Bilac chegou à perfeição — é sagrado. Não há quem não o admire, não há quem não o louve. As fadas, que são quase uma verdade, fizeram da sua existência uma sinfonia deliciosa, e como o seu talento não tem desfalecimentos e a sua atividade é sempre fecunda, a admiração se perpetua. É o poeta da cidade como Catulo o era de Roma e como Apuleio o era de Cartago. Todos o conhecem e todos o respeitam. Os editores vendem anualmente quatro mil exemplares de seu livro de versos, realizando o que até então era o impossível.
Onde vá, o louvor acompanha-o. A cidade ama-o. Nenhum poeta contemporâneo teve o destino luminoso de empolgar exclusivamente a admiração. Ele é o pontífice dos artistas e dos que o não são. Há homens que guardam em cofres tudo quanto tem escrito de esparso na sua múltipla colaboração jornalística e não há um dia em que pelo menos não receba dos confins da província ou dos bairros aristocráticos meia dúzia de cartas chamando-o de admirável. E nunca a sua túnica branca teve uma ruga desgraciosa, nunca nos seus períodos a elegância deixou de brilhar. Quando escreve, os jornais aumentam a tiragem com as suas crônicas, e o seu estilo impecável aureola de simpatia todos os assuntos; quando fala, as suas palavras admiráveis, talhadas como em mármore e diamante, lembram os jardins de Academos e as prosas sábias do cais de Alexandria, no tempo dos Ptolomeus. E todos sentem a fascinação do encanto — as turbas confusas e os homens inteligentes.
É o portador do espírito da Hélade. No portal da sua morada bem se podia gravar o misterioso enigma da Antologia: "Nasci no bosque sagrado e sou feito de ferro. Tornei-me o secreto depositário das musas e quando falo, intérprete e confidente único, ressoa o bronze eternamente."
E, entretanto, há por vezes no seu sorriso uma irônica amargura, na sua voz, que se vela, a secreta tristeza de quem está resignado a não dizer grandes verdades necessárias, e na sua alma, destinada à aclamação, uma delicadeza, uma modéstia infinita. Dois escritores ele os lê diariamente, ou pela manhã antes de começar a trabalhar, ou à noite antes de dormir — Renan e Cervantes. A vida fê-lo vestir os ímpetos e a imensa paixão lírica no burel de uma suave ironia. Quem o lê pensa em Luciano de Samósata, no ridículo do herói manchego, no travo das fantasias desfeitas. Mas, de raro em raro, surgem, como a reivindicação das idéias generosas, as tristes e delicadas imprecações da sua prosa, e em conversa muita vez quando todos riem, um doloroso suspiro de cansaço e tédio passa no seu lábio, de todos despercebido. E é ainda essa alma esquisita que cora e se confunde, quando pela milésima vez numa tarde alguém se lembra de dizer que o acha incomparável.
Talvez, por isso, o poeta sensual dos amores imensos, o vate embevecido nas vozes das estrelas, aquele que durante vinte anos dera intenções e idéias à natureza e comentara com um piparote céptico as ações dos homens, curvou-se um dia para a vermina com o fulgor do seu espírito luminoso e resolveu protegê-la. Bilac hoje é um apóstolo-socialista pregando a instrução.
Todos os problemas da vida ele os pode encarar como Capus os trata nas suas peças. A instrução das crianças e o bem dos miseráveis preocupam-no seriamente. (RIO: 1907, p. 5)

O ano de 1865 já estava findando quando o “Príncipe dos Poetas Brasileiros” veio ao mundo. Seu nome completo é um perfeito alexandrino e, segundo o biógrafo Raymundo Magalhães Júnior, “interpretado por alguns como predestinação para as letras poéticas” (MAGALHÃES JR.: 1974, p. 7). De fato, Olavo Brás Martins de Guimarães Bilac foi reconhecido e admirado por todos como o maior poeta brasileiro de sua época, recebendo em vida todas as merecidas glórias. Além disso, engana-se, inclusive, quem pensa que os modernistas não o admiravam. Apesar da irreverência com que tratavam o poeta, nas palavras de Menotti Del Picchia, “discuti-lo era amá-lo” (PICCHIA: 2007, p. 15). Ruy Castro, em seu romance Bilac vê estrelas, na pequena biografia sobre o escritor-personagem, escreveu:

A escola poética que o teve como maior expoente no Brasil, o parnasianismo, foi o grande alvo da crítica dos modernistas de 1922, embora eles reconhecessem o valor de Bilac. Mário de Andrade, na época, classificou-o de “o malabarista mais genial do verso em português”. E, na década de 1910, Oswald de Andrade vinha frequentemente ao Rio render-lhe homenagem. (CASTRO: 2004, p. 148)

Olavo Bilac nasceu na cidade do Rio de Janeiro, a Corte, no dia 16 de dezembro. No ano anterior, 1864, havia iniciado a Guerra do Paraguai, conflito no qual Brasil, Argentina e Uruguai formaram a Tríplice Aliança para juntos lutarem contra aquele país do interior da América do Sul e cujo governante — Solano López — buscava uma saída para o mar, disputando com os outros três um domínio sobre a navegação nos rios Paraná e Paraguai. Naquela época, a família do Dr. Brás Martins dos Guimarães Bilac vivia em um modesto sobrado localizado na antiga Rua da Vala — recém rebatizada Rua Uruguaiana — esquina com Rua do Ouvidor.

Olavo passou parte da infância sem a presença do pai, que também não presenciou seu nascimento. Meses antes, o Dr. Brás partira para o campo de batalha como médico. Retornou apenas em 1870, com o fim da guerra, quando Olavo contava quatro anos de idade.

Desejoso de que seu filho seguisse a sua carreira, o médico preocupou-se em dar a Olavo a melhor educação possível. Aos 14 anos de idade, ele era um prodígio na tenra adolescência. Naquela época, a idade mínima para ingressar em cursos superiores era 18 anos. Segundo Magalhães Jr., porém, era comum que rapazes precoces, a título excepcional, fossem matriculados em cursos superiores, “mediante autorização do Poder Legislativo, referendada pelo imperador” (MAGALHÃES JR.: 1974, p. 18). Foi assim que, correspondendo aos anseios do pai e a contragosto seu, ele ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Em 1883, Bilac publicou seu primeiro verso em um periódico: a Gazeta Acadêmica, uma folha organizada pelos estudantes da Faculdade de Medicina e que tinha Bilac como um de seus redatores. Sua participação, porém, não se resumiu aos versos e à sala de redação, visto que ele também escreveu artigos para o jornal.

Apesar de não ter dificuldades nos estudos, tendo sido, inclusive, nomeado preparador de fisiologia, Bilac não se sentia em nada atraído pela medicina. Nas palavras do biógrafo Fernando Jorge, “o micróbio da literatura” já o havia atacado e ele tinha “mais prazer em conversar sobre Théophile Guatier, Baudelaire, Leconte de Lisle, Alfred de Musset, Théodore de Banville, François Coppé, do que tecer considerações a respeito da fisiologia do trato digestivo” (JORGE: 2007, p. 44).

Quando o Dr. Brás e sua família se mudaram para o subúrbio do Engenho Novo, Bilac viu-se distante da efervescência do centro da cidade e, consequentemente, do velho casarão da Rua da Misericórdia, onde se situava a Faculdade de Medicina. Para evitar as longas viagens e também porque a cada dia se tornava mais atraído pelo requinte e pela elegância da Rua do Ouvidor e pela vida boêmia, “ele preferia ficar no centro, dormindo nas ‘repúblicas’ dos colegas ou passando as noites na ‘Maison Moderne’, célebre café-concerto da época” (JORGE: 2007, p. 52).

Ainda nos tempos da Faculdade de Medicina, Bilac fez algumas amizades que, de alguma forma ou de outra, acabaram exercendo certa “influência” em sua vida literária. Entre esses amigos estavam Artur de Oliveira, Alberto de Oliveira e Paula Nei.

Como se sabe, para os escritores da época — poetas ou não —, o jornal era o principal veículo de divulgação de suas obras. Ter um poema publicado em uma página ou um romance no folhetim era um passo para fama. Obviamente alguns periódicos tinham mais prestígio do que outros. Segundo Nélson Werneck Sodré, a Gazeta de Notícias, fundada em 1875 por Manuel Carneiro, Ferreira de Araújo e Elísio Mendes, em apenas sete anos já havia se tornado “o melhor jornal da época” (SODRÉ: 1998, p. 245). Era diferente dos demais em vários aspectos: “moderno, de espírito adiantado”, com caricaturas diárias, entrevistas e reportagens fotográficas e fornecendo ampla informação (cf. JORGE: 2007, p. 51); seus exemplares eram vendidos avulsos, enquanto os de outros só o eram por assinatura; seu preço era acessível às massas, um exemplar custava 40 réis (cf. SODRÉ: 1999 p. 224). Nas palavras de Bilac, a folha era também, no início da década de 1880, “o único jornal que acolhia e prezava a literatura” (BILAC: 1997, p. 716). Cabe ainda destacar que, entre seus colaboradores mais famosos, estavam Machado de Assis e Eça de Queiroz, além de Alberto de Oliveira, amigo de Bilac.

Olavo não era diferente dos jovens literatos de sua juventude. Também ele alimentava o sonho de fazer parte da Gazeta. Por esse motivo, invejava seus colaboradores regulares, segundo nos revela em Ironia e Piedade, coletânea de crônicas selecionadas por ele e publicadas em 1916:

Escrevendo este nome [Ferreira de Araújo], revivo muitos anos da minha mocidade. Este nome e estas velhas laudas vêm lembrar-me o tempo em que, desconhecido e feliz, com o cérebro e o coração cheio de esperanças e de versos, eu parava muitas vezes, naquela feia esquina da travessa do Ouvidor, e quedava a namorar, com olhos gulosos, as duas portas estreitas da velha Gazeta, que, para minha ambição literária, eram as duas portas de ouro da fama e da glória. (...) escrever na Gazeta; ser colaborador da Gazeta; ser da casa, estar ao lado da gente ilustre que lhe dava brilho, — que sonho! (BILAC: 1997, p. 715).

Para Fernando Jorge, Olavo “alimentava mais o desejo de tornar-se colaborador da Gazeta do que vir a ser um médico conceituado, dono de larga clientela” (JORGE: 2007, p. 51). Não era o dinheiro que o fazia sonhar com a folha — a quem tratava como uma “linda rapariga” — e sim a ideia de ver seu nome consagrado em suas páginas.

É digno de destaque o fato de que, pelas mãos do amigo Alberto de Oliveira, Bilac teve a alegria de ver seu soneto “A sesta de Nero” publicado na primeira página da Gazeta de Notícias, na edição de 31 de agosto de 1884. Em suas próprias palavras:

Nunca esquecerei, em cem anos que viva, a manhã do ano de 1884, em que vi um dos meus primeiros sonetos na primeira página da Gazeta. Doce e clara manhã! — talvez fosse, realmente, uma agreste manhã, feia e chuvosa, mas a minha alegria, o meu orgulho de rimador novato, a minha vaidade de poeta impresso eram capazes de acender um sol de verão na mais nevoenta alvorada de inverno... (BILAC: 1997, p. 716).

A publicação de “A sesta de Nero” na Gazeta de Notícias trouxe a possibilidade de colaboração em outros periódicos, mas isso só aconteceu no ano seguinte, pois Olavo, no segundo semestre de 1884, teve que se dedicar aos exames da Faculdade de Medicina. De acordo com a extensa pesquisa realizada sobre esse autor por Antonio Dimas, no ano de 1885, Olavo colaborou em quatro periódicos: Diário de Notícias, Gazeta de Sapucaia, A Estação e A Semana. Contudo, o pesquisador informa em seu relevante trabalho — Bilac, o jornalista — que a colaboração de Bilac nos três primeiros não foi por ele confirmada em sua pesquisa, e sim informada por seus biógrafos (cf. DIMAS: 2006, v. 2, p. 573).

Segundo Magalhães Júnior, o primeiro soneto de Bilac publicado em A Estação foi “Vox Dei”, em 30 de setembro de 1885 (MAGALHÃES JR.: 1974, p. 41). Porém, foi com o soneto “Fiat Lux” que o autor conquistou o periódico A Semana. Sua colaboração nessa folha, que teve a poesia como gênero preferencial, se estendeu até 1894, tendo sido interrompida entre os anos de 1889 e 1893 (cf. DIMAS: 2006, v. 2, p. 573).

O ano de 1886 pode ser considerado por muitos admiradores da poesia bilaquiana como o da sua verdadeira consagração como poeta. Isto porque, em 31 de julho, foi publicado em A Semana aquele que talvez seja o seu soneto mais famoso: “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo”. Com isso, finalmente a porta da fama estava aberta, todavia, outra lhe foi fechada.

Em 1886, Olavo decidiu abandonar os estudos de medicina com a intenção de ingressar na Faculdade de Direito, em São Paulo. Obviamente, o Dr. Brás não aprovou a decisão do filho e muito menos concordava com seu comportamento boêmio naquela época. Segundo Fernando Jorge, para o médico, poeta “era sinônimo de indivíduo madraço” (JORGE: 2007, p. 55) — em outras palavras, alguém que não trabalha, nem estuda. O biógrafo relata, “baseado na narrativa que Henrique Orciuoli fez em seu livro sobre Bilac”, o episódio em que Olavo foi expulso de casa pelo pai, após chegar alcoolizado à sua casa, já de madrugada, e acompanhado de Paula Nei. Sem saber para onde ir, o jovem buscou auxílio com o próprio Paula Nei, que o acolheu em seu quarto de pensão (cf. JORGE: 2007, p. 55-56).

Além do fato de não ter vocação alguma para medicina, outro motivo que o levou a trocar esse curso pelas leis foi seu amor pela irmã do amigo Alberto de Oliveira, Amélia. Olavo sabia que só poderia conquistar a aprovação da família de um compromisso com a moça se tivesse ao menos um anel e um canudo de bacharel. Desejava, também, mostrar ao seu pai que não precisava ser médico para ser alguém na vida.

Bilac mudou-se para São Paulo em abril de 1887, onde freqüentou como ouvinte as aulas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Destaque-se que, para os homens de letras da época, a carreira de advogado era a única opção (cf. COSTA: 2005, p. 49). Para sustentar-se, escrevia no Diário Mercantil e na Vida Semanária; além disso, continuou a colaborar em A Semana (cf. BUENO: 1996, p. 70). Mas ele não nascera para nenhuma das profissões imperiais — medicina, engenharia e direito — e não tardou em abandonar o estudo das leis e voltar para o Rio de Janeiro, em 1888.

Coelho Neto, em seu romance “autobiográfico” A Conquista, publicado em 1899, narra seu primeiro encontro com Olavo Bilac. Nele o escritor adota o pseudônimo Anselmo. O diálogo entre os dois, e o amigo em comum Freitas, é reproduzido ipsis verbis pelo biógrafo Fernando Jorge, que esclarece:

Octávio Bivar é o pseudônimo transparente que ele (Coelho Neto) usou para encobrir a figura do poeta (Bilac). Quanto ao caráter autêntico deste livro (A Conquista), podemos apresentar o depoimento de Humberto de Campos, (...), pois (...) era amigo íntimo de Coelho Neto: “(...) é um capítulo da vida do autor; porque nele figuram os homens de letras mais ilustres de seu tempo, os quais atravessam, sob nomes mal disfarçados, (...)” (Crítica, 2ª Série.) Consulte-se, a este respeito, o livro que Paulo Coelho Neto publicou em 1942 sobre seu pai. (JORGE: 2005, p. 70-71)

Dessa obra, dois diálogos são dignos de reprodução. No primeiro deles, Olavo, após ter recitado um de seus poemas, fornece sua opinião sobre prosa e poesia. No segundo, após ter dito a Coelho Neto que não trabalhava em jornais, ele aconselha o novo amigo, que acabara de entrar para a Gazeta da Tarde, a não fazer notícias e manter-se artista.

Restituamos brevemente o contexto: Freitas, Anselmo e Bivar estão no Gambrinus, uma desconhecida taberna. Após o poeta declamar “O Julgamento de Frinéia”, segue-se o seguinte diálogo:

— Soberbo! — exclamou o Freitas reclamando mais cerveja. Anselmo ficou algum tempo a olhar o poeta, sem dizer palavra, arroubado.
— Agora, o senhor: recite-nos alguma coisa.
— Isto não faz versos, disse, com desprezo, o Freitas. É só prosa chilra.
— Faz muito bem. A prosa; se não tem a nobreza do verso, é mais ampla; o pensamento move-se livremente no período sem os apertos da métrica, sem a preocupação monótona da rima. A prosa! A excelsa prosa! Não imagina como eu amo a prosa, acho-a até mais difícil do que o verso. A prosa marmórea de um Flaubert, de um Saint-Victor... oh!
— Preferes, então, a prosa ao verso?
— Prefiro.
— E por que não fazes, de preferência, prosa?
— Hei de fazê-la.
— Ora, qual!
— Hás de ver.
— Tu és poeta e hás de ser sempre poeta, quer queiras, quer não.
— De acordo, mas poesia não quer dizer rima, poeta não é o que faz estrofes. Há por aí muito animal que faz versos impecáveis e que tem tanto de poeta como eu tenho de cantor de árias. A estrofe é um excipiente, é um meio de expressão, é a plástica. O sentimento é tudo. (COELHO NETO: 1899, p. 107)

Freitas se despede de Anselmo e Bivar. Os novos amigos decidem dar uma volta pela cidade. Quebrando o silêncio, Anselmo pergunta a Bivar em que jornal ele trabalha e obtém a seguinte resposta:

— Eu? Não trabalho em jornais. Considero a imprensa uma indústria intelectual. Entra a gente para o jornalismo com um bando de idéias originais e retalha-as para o varejo do dia a dia. Quando vejo um poeta o um prosador a fazer notícias, tenho piedade. (...) Eu, se me metesse a fazer notícias, enlouquecia. Sinto-me incapaz, a local aterra- me. Tentei, uma vez, redigir a mais simples das notícias: um caso banal de polícia. Pois, meu amigo, saiu-me um substancioso artigo político. Quem pode compor um período perfeito numa sala de redação, interrompendo-se, de instante a instante, para acudir à reclamação de um sujeito que pede providências contra a falta d'água? É hediondo!
— Pois eu vou trabalhar na Gazeta.
— Vai escrever crônicas...
— Não sei ainda.
— Não faça notícias; a notícia embota. Ataque as instituições, desmantele a sociedade, conflagre o país, excite os poderes públicos, revolte o comércio, assanhe as indústrias, enfureça as classes operárias, subleve os escravos, mas não escreva uma linha, uma palavra sobre notas policiais, nem faça reclamos. Mantenha-se artista: nem escriba nem camelote. (COELHO NETO: 1899, p. 108)

Bivar acrescenta que um homem de talento não deve se render aos caprichos do dono do jornal, que apenas quer explorá-lo, sem lhe dar o devido crédito, pois isso seria um suicídio. Para o poeta:

O livro fica, o jornal passa e raramente deixa vestígio. O artigo do dia mata o artigo da véspera, a opinião de hoje prevalece, a de ontem morre, mas com o artista consciencioso, não. Demais, meu amigo, egoísmo antes de tudo: o jornal é o redator político, o mais... que vale? Fica-se sempre à sombra, por mais que se faça. Não vale a pena. O trabalho de um ano no jornal não vale uma página requintada de um livro de Arte. (COELHO NETO: 1899, p. 109)

Anselmo, então, quer saber o que fazer. A isso, Bivar responde:

— Escreva livros.
— Para quê, se não há quem os edite?
— Escreva contos, fantasias, crônicas.
— Não pagam. Fazem ainda grande favor quando os publicam.
— Pois, meu amigo, que me venham pedir versos ou prosa de graça. Quer saber? Os culpados da depreciação literária são os próprios literatos: Alencar vendia os seus romances ao Garnier por quatrocentos mil réis. Quantas edições tem O Guarani? Está ainda na primeira e éconhecido em todo o Brasil. O editor fez com o romance o milagre de Tiberíade: multiplicou-o. Se houvesse fiscalização a coisa seria outra. (COELHO NETO: 1899, p. 109)

Aparentemente, Coelho Neto seguiu o conselho do novo amigo, pois escreveu mais de cinquenta livros. Por outro lado, Bilac rendeu-se ao jornal, profissionalizando-se como jornalista. Por toda a vida, ele acreditou na importância dos livros, principalmente para a formação de um povo. Contudo, era com o dinheiro do jornal e não do livro (mesmo tendo publicado verdadeiros best-sellers para a época) que pagava as suas contas no fim do mês e isso lhe permitia viver com certo luxo, a ponto, inclusive, de poder viajar mais de uma vez para a Europa (cf. COSTA: 2005, p. 48).

É digno de nota que, em seu caso, a profissionalização não significou a submissão à vontade do dono do jornal ou da revista. Em um de seus ensaios sobre Bilac, o professor Antonio Dimas tece algumas considerações sobre Sarcey (1827 – 1899), figura que dominou na França a crítica de teatro na segunda metade do século XIX. Segundo o estudioso, Bilac sentia-se atraído pela firmeza profissional do crítico francês. As palavras que Dimas escreve sobre o pensamento de Sarcey bem podem ser utilizadas para mostrar a opinião de Bilac com relação ao profissional de letras — escrevesse ele prosa ou verso, em jornais, livros ou revistas:

Se lhe era garantido acesso a um veículo onde expunha, toda semana, seu ponto de vista profissional, nada mais justo que o remunerassem pelas mesmas opiniões que lhe haviam assegurado a respeitabilidade intelectual. Afinal, tinham sido elas as responsáveis pelo convite e era por causa delas que o público, com certeza, haveria de procurar pelo jornal que as estampasse. (DIMAS: 2006, p. 136)

No mesmo ensaio, Dimas nos fala sobre as reivindicações feitas por Bilac para que as atividades intelectuais tivessem um amparo legal, citando como exemplo uma crônica de janeiro de 1897, publicada em A Bruxa, na qual o cronista “denuncia a voracidade dos editores estabelecidos no Brasil” (cf. DIMAS: 2006, p. 136). Crítica semelhante já foi mencionada anteriormente, quando reproduzimos o diálogo entre Bilac e Coelho Neto.

Importa ainda mencionar que, em 1904, o jornalista e escritor João do Rio decidiu satisfazer a curiosidade do público sobre o que pensavam os literatos da época, por muitos considerados ídolos. A enquete, feita com vários escritores, foi publicada em 1904, na Gazeta de Notícias e, posteriormente, fez parte da coletânea O momento literário, publicada em 1907. Entre as várias perguntas feitas pelo entrevistador, a que mais interessa aos propósitos de nossa investigação é: “O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?”.

Abrindo a série, está a entrevista com Olavo Bilac. Se, quando jovem, o poeta afirmara ao amigo Coelho Neto que “um homem de talento que se mete em jornais suicida-se” (COELHO NETO: 1889, p. 109), anos depois, em 1904, ele declarava:

O jornalismo é para todo o escritor brasileiro um grande bem. É mesmo o único meio do escritor se fazer ler. O meio de ação nos falharia absolutamente se não fosse o jornal — porque o livro ainda não é coisa que se compre no Brasil como uma necessidade. O jornal é um problema complexo. Nós adquirimos a possibilidade de poder falar a um certo número de pessoas que nos desconheceriam se não fosse a folha diária; (...) Todos os jornais do Rio não vendem, reunidos, cento e cinqüenta mil exemplares, tiragem insignificante para qualquer diário de segunda ordem na Europa. São oito os nossos! Isso demonstra que o público não lê — visto o prestígio representativo gozado pelo jornalista. E por que não lê? Porque não sabe! (...) Há hoje mais um milhão de analfabetos que em 1890! E digam depois que não é preciso criar escolas e difundir a instrução. Um povo não é povo enquanto não sabe ler. Admiras-te dessa minha transformação? O poeta, que ama as cigarras e os flamboiants, o sonhador, que em tudo vê a poesia, batendo-se por um grave problema social!... Ah! meu amigo! Para mim esta é a última etapa do aperfeiçoamento, e o jornalismo é um bem. (...) Oh! sim, é um bem. Mas se um moço escritor viesse, nesse dia triste, pedir um conselho à minha tristeza e ao meu desconsolado outono, eu lhe diria apenas: Ama a tua arte sobre todas as coisas e tem a coragem, que eu não tive, de morrer de fome para não prostituir o teu talento! (RIO: 1907, p.6-7)

Nesta entrevista, Bilac demonstrou toda sua preocupação com a educação no Brasil. Não é de se admirar que o poeta e cronista se tornasse um grande entusiasta das reformas modernizadoras de Pereira Passos, prefeito do Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro, entre 1902 e 1906, durante o governo de Rodrigues Alves.

Não é demais observar que os ideais republicanos de ordem e progresso sempre estiveram presentes no pensamento de Olavo Bilac. A esse respeito, lembremo-nos de que ele escreveu a letra do Hino à Bandeira Nacional (1906), cujos versos enunciam:

I.
Salve lindo pendão da esperança!
Salve símbolo augusto da paz!
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz.
Refrão:
Recebe o afeto que se encerra
em nosso peito juvenil,
Querido símbolo da terra,
Da amada terra do Brasil!

II.
Em teu seio formoso retratas
Este céu de puríssimo azul,
A verdura sem par destas matas,
E o esplendor do Cruzeiro do Sul.
(Refrão)

III.
Contemplando o teu vulto sagrado,
Compreendemos o nosso dever,
E o Brasil por seus filhos amado,
poderoso e feliz há de ser!
(Refrão)

IV.
Sobre a imensa Nação Brasileira,
Nos momentos de festa ou de dor,
Paira sempre, sagrada bandeira
Pavilhão da justiça e do amor!
(Refrão)

Os versos de Olavo Bilac são uma mostra de seu patriotismo, além, é claro, da sua maestria poética. A titulo de curiosidade, acrescentamos que o hino foi composto, em parceria musical com Antonio Francisco Braga, a pedido de Pereira Passos, então prefeito do Distrito Federal.

Anos antes, porém, ainda nos primeiros anos da jovem República, ele não se furtou a criticar as atitudes autoritárias de Floriano Peixoto, que havia assumido a presidência da República após a renúncia de Deodoro da Fonseca. Sua atuação política como jornalista na época levou-o à prisão, em 1892, por quatro meses, na Fortaleza da Laje, no Rio de Janeiro, e, no ano seguinte, ao “exílio” em Minas Gerais, onde permaneceu até 1894.

Bilac colaborou, ao longo de sua carreira jornalística, em vários periódicos — jornais e revistas — do Rio de Janeiro e de São Paulo. O pesquisador Antonio Dimas leu e sumariou cerca de mil e seiscentas crônicas da autoria do poeta (cf. DIMAS: 2006, v.2, p. 461). Em 1908, Bilac encerrou sua carreira jornalística, passando a dedicar-se — até sua morte, em 1918 — a campanhas cívicas e conferências.

Dos jornais para os quais colaborou, a Gazeta de Notícias foi a folha que mais contribuições recebeu. Foi também nesse periódico de grande prestígio que Bilac substituiu, em 1897, aquele que até então — e podemos dizer até hoje — era o maior romancista brasileiro e cronista de grande prestígio na época: Machado de Assis. Em crônica de 1903, sobre o periódico, Bilac deixou registradas as seguintes linhas sobre o Bruxo do Cosme Velho:

(...) Machado de Assis, um nababo egoísta, que, um belo dia, ali por volta de 1897, meteu dentro de um saco as luzes e os perfumes, as estrelas e as rosas que costumava espalhar por essa seção, e levantou acampamento, obrigando o leitor, habituado ao licor precioso do seu estilo, a contentar-se com a água chilra do meu. (BILAC: 1996, p. 59)

Nas palavras de Antonio Dimas, “ao contrário de seu antecessor na Gazeta de Notícias, Bilac não titubeava em opinar sobre os mais diversos assuntos que interessassem diretamente à organização da sociedade civil” (DIMAS: 1996, p. 15). De fato, em sua coluna, Bilac escreveu sobre os mais variados temas e, quando, em sua opinião, necessário fosse, atacou a sociedade em que vivia. O cronista deixou de lado a “pompa e circunstância” do parnasianismo, e produziu crônicas de grande leveza, fácil compreensão e, muitas vezes, com alto cunho didático.

Bilac também colaborou em outro periódico de significativa importância: a revista ilustrada Kosmos: Revista Artística Científica e Literária. O primeiro número saiu em janeiro de 1904, no ano seguinte ao início das reformas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos para modernizar e embelezar o Distrito Federal, e um dos principais órgãos de divulgação do novo tipo de sociedade que se desejava. Era uma publicação mensal muito bem cuidada, com elegante acabamento, nos moldes modernos dos semanários internacionais. Além de manifestações artísticas e literárias, a revista continha crônicas e reportagens sobre eventos sociais da elite endinheirada da cidade do Rio de Janeiro. Era para essa elite que Bilac escrevia, bem ao gosto do senso comum, procurando mostrar a seu público-leitor um Rio de Janeiro que se modernizava para se transformar em vitrine do Brasil moderno — mesmo que não fosse possível igualar-se a Paris, que, na sua opinião, era inigualável.

Reiteremos: Bilac era apaixonado por Paris. A esse respeito, dizia-se que ele havia se contaminado pelo vírus da cidade-luz. Segundo Elias Thomé Saliba, em suas cartas e escritos privados, o poeta e cronista referia-se ao Brasil com mau humor. Acreditamos, porém, que ele nunca deixou de amar sua pátria. Em 1904, por exemplo, encontrando-se em Paris, escreveu uma carta a Coelho Neto, dizendo ter saudade “da porcaria, do mijo, da estupidez, do mexerico, da safadeza da pátria” (SALIBA: 2008, p. 341). Apesar disso, sonhava com um Rio de Janeiro limpo e civilizado como a Paris que tanto admirava.

Em crônica publicada em O Estado de São Paulo, em 20 de novembro de 1897, Bilac descreveu um sonho: havia aceitado ser prefeito do Distrito Federal e sua principal missão era limpar a cidade. Apesar de todo o empenho, a cidade crescia e ele, com auxílio de seus varredores, não conseguia se livrar do lixo e da poeira deixados pela administração passada. Convencido de que tal empreitada era humanamente impossível de ser realizada, pediu exoneração do cargo. Nesse momento, o cronista acordou (BILAC: 2006, v. 2, p. 233).

Segundo mencionamos na introdução deste trabalho, foi justamente a leitura dessa “crônica-sonho” que nos despertou o interesse em pesquisar e divulgar as idéias de um grande cronista, que, infelizmente, é muito mais lembrado nos dias de hoje, nas escolas e universidades, como o parnasiano Príncipe dos Poetas Brasileiros. Muito do que Bilac escreveu sobre sua “Sebastianópolis” ainda é, para tristeza nossa, uma grande verdade. E, apesar de afirmar que a crônica é passageira, mais de cem anos depois, o Rio de Janeiro, assim como o Brasil, ainda enfrenta os males por ele apontados. Suas crônicas, repletas de uma visão eufórica sobre reformas da cidade e modernização, podem muito bem serem vistas como uma “cartilha”. Elas foram o meio do qual o cronista se utilizou para tentar instruir o seu público-leitor e fazê-lo acreditar no modelo republicano de ordem e progresso. Nelas, Bilac incluía noções de civilidade, higienização e sanitarismo, que deveriam acompanhar o movimento de urbanização pelo qual o Rio de Janeiro passava de modo a transformar-se em uma cidade digna do título de capital federal e vitrine do Brasil moderno.

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Fonte:
Mônica Proença da Silva: “O sonho de Bilac ou como transformar Sebastianópolis em vitrine do Brasil moderno”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Brasileira. Orientadora: Profª Drª Ana Lúcia Machado de Oliveira). Rio de Janeiro, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

2 comentários:

  1. Gostaria de agradecer por divulgar minha dissertaçao de mestrado. Olava Bilac precisa ser mais estudado enquanto cronista, assim como Coelho Neto e Orestes Barbosa - objetos de minha atual pesquisa sobre cronistas que viveram as duas grandes reformas pelas quais a cidade do Rio de Janeiro passou no período da República Velha.
    Abraços cordiais & muito sucesso com seu blog.
    Monica P Silva
    Mestre e Especialista em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
    P.S. Gostei muito do seu texto.

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  2. Cara Monica,

    A satisfação é toda nossa. O objetivo em divulgar tais textos, é que as pessoas sintam interesse em ler toda a obra.
    Um abraço e obrigado pela "visita"!

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