A poética pessoana



Poética pessoana

Uma vez que estudamos uma dupla temática nos poemas pessoanos, na perspectiva interseccionista, é conveniente definirmos os conceitos ligados à literatura em geral, e à poesia em particular, cotejando-os com determinadas considerações teóricas de Fernando Pessoa, para esclarecer o significado metafórico e referencial de alguns de seus poemas-chave.

Definamos literatura: é uma forma privilegiada de ver e sentir o mundo, linguisticamente. Podemos concebê-la, ao menos neste momento histórico, como superior ao discurso filosófico e ao científico, porque une sensibilidade e razão, enquanto os outros discursos são predominantemente racionais, portanto mais limitados em termos humanos. Se a paideia (instrução, formação) pudesse ser eficiente somente pela razão, a literatura teria menos valor. Mas, paradoxalmente, a literatura perde espaço no ambiente escolar, nas universidades e na fração de tempo de leitura, em nossa civilização tecnológica. A explicação, que não será discutida aqui, é simples: a crise social que se agravou no séc. XX, bem como a fragmentação do sujeito, foram fatores que aumentaram a distância entre a racionalidade e a sensibilidade. A fissão subjetiva trouxe lucros para a ficção literária, na medida em que multiplicou a possibilidade de compreensão do ser humano.

A literatura é uma confissão da impotência humana para o Bem e o Justo, de maneira direta ou pedagógica: cria-se então a Beleza como ideia concreta, que não se reduz àquelas outras, mas que as transcende. Isso já estava em Platão.

Por outro lado, contra Wittgenstein, podemos afirmar que a poesia/estética trata do indizível, mas suas proposições são, ou podem ser, um conhecimento verdadeiro, não no mesmo sentido das ciências, mas de orientação mítica (de uma lógica diversa) ou filosófica, relacional, compreensiva, explicativa, fenomenológica. O “indizível”, mas do ponto de vista teórico-filosófico, é o verdadeiro objeto da poesia.

A poética é, pois, um estudo que supõe o livre jogo entre pensamento mítico, compreensão filosófica e conceitos da ciência literária. Mas, uma vez dentro desse jogo, fica claro que não há objetividade, portanto a “ciência literária” torna-se simplesmente “Teoria da Literatura” – a não ser que pensemos em “ciência da literatura” como uma disciplina rigorosa, que expurga noções tais como “influência” ou outros elementos extra-literários. O pensamento mítico é articulado às ideias filosóficas, e o produto final é o tecido a que denominamos “teoria da poesia”. Consequências distintas são, contudo, tiradas desse processo. Por exemplo, o procedimento da Teoria da Literatura faz o crítico observar os elementos linguísticos do poema; a filosofia fá-lo suspeitar – e manter uma reserva crítica – de afirmações como as de que “trinta e tantos poemas do Guardador de Rebanhos” foram escritos num só jato; o elemento mítico dilui fronteiras espaço-temporais, e sente o poema desprovido até mesmo de sua sintaxe: o verdadeiro conteúdo é o sentimento. A Literaturwissenschaft só tem sentido se for entendida como ciência humana e não como ciência empírica. Por exemplo, a análise linguística ou de estudos da ciência da fonologia só podem ser relevantes para os estudos literários na medida em que são remetidos à significação do poema que, como tal, é múltipla, plural e complexa. Proclamar a “cientificidade” da teoria da literatura parece elevá-la, mas pode significar a extração da quase totalidade de seu conteúdo humano, se aquela não for conduzida adequadamente – conservando a complexidade de sua matéria.

Os formalistas russos, por seu turno, recusavam quaisquer discursos extra-literários na Teoria da Literatura; esta devia ser estritamente científica. Ora, é preciso convir que a “ciência” é algo externo à “literariedade”. Por outro lado – redarguiriam os formalistas – a “ciência da literatura” apresenta um genitivo (“da”) com substancialidade do literário, de modo que a Teoria da Literatura é um estudo rigorosamente científico e literário. No entanto, o caráter científico é, por si mesmo, extra-literário, porque a literatura (a produção artística) em si não é ciência. Sendo assim, é possível pensar/estudar a literatura em concordância com um dos seguintes aspectos científico-filosóficos, desde a Estética de Baumgarten, de 1750: a História, a Hermenêutica, a Dialética, a Fenomenologia, Psicologia e outras. A ressalva é a mesma para todas elas: que o literário não seja o aspecto secundário no projeto investigativo.

Conforme Adolfo Casais Monteiro, “as ideias dos poetas não podem ser alheias ao pensamento filosófico”; de fato, as ideias, e tão-somente estas, são tanto mais claras e refletidas, quanto maior for o domínio cultural e linguístico do homem de Humanidades ou de Artes. Mas os versos, estes sim, devem ser uma negação da filosofia. Quando os versos exprimem claramente uma ideia filosófica, ou eles são filosofia falhada ou má poesia. O horizonte dos poemas, sim, é filosófico e pode ser esclarecido pela Crítica de Poesia como tal.

Por outro lado, de acordo com a estética de Luigi Pareyson, a relação entre filosofia e poesia não é de mútua excludência. Pode dar-se o caso de uma filosofia ser poética, ou vice-versa. “A filosofia, mesmo na sua formulação mais técnica e precisa, nua na sua funcionalidade e essencialidade, pode, em determinadas circunstancias [sic], contribuir para a poesia, e até ser ela própria poesia”.

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Fonte:
REGINALDO PARCIANELLO: “Intersecções poéticas e oníricas no Cancioneiro de Pessoa”. (Dissertação tendo em vista a obtenção do título de Mestre em História da Literatura. ORIENTADOR: PROF. DR. JOSÉ LUÍS GIOVANONI FORNOS. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG - INSTITUTO DE LETRAS E ARTES). Rio Grande, 2010.

Nota
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