Cecília Meireles: cronista em trânsito
As nuvens passam. Levam-me consigo...
Vou para longe, senhores. Para longe
vou.
(Cecília Meireles)
Apreender o real sem deixar de notar a poesia do mundo. Essa pode ser uma boa definição para a obra em prosa de Cecília Meireles. Observa-se que seus textos revelam uma autora preocupada com os problemas de sua época, sensível a muitos dos dilemas de seu tempo, mas que consegue também preservar sua essência poética, compondo muitas crônicas em que predomina um caráter mais lírico e subjetivo. É assim que a poeta e a prosadora fundem-se, mesclam-se, completam-se. Como afirma Leodegário Azevedo Filho, “não se pense que haja descompasso entre a obra poética e a obra em prosa [ceciliana], pois o que há é perfeita e coerente integra ão entre ambas.” (AZEVEDO FILHO, 2007, p. 277)
É da observação dessa integração entre prosa e poesia que se consegue apreender uma dimensão mais exata do projeto literário da autora. Afinal, Cecília Meireles é um dos nomes mais importantes da poesia brasileira, mas desconsiderar o restante de sua obra é avaliá-la a partir de um único prisma. Observação difícil de ser sustentada quando se percebe que Cecília sempre foi uma escritora múltipla,atuante nas mais diversas áreas.
Tome-se como exemplo o foco da presente pesquisa: seus textos cronísticos, fruto de uma carreira de mais de trinta anos em variados jornais. Como afirmado anteriormente, estima-se que Cecília Meireles tenha escrito aproximadamente duas mil e quinhentas crônicas, sendo que essas apenas há pouco mais de dez anos começaram a ser publicadas em larga escala. A variedade de textos cecilianos, entre crônicas, conferências sobre literatura, estudos sobre folclore, ensaios, entrevistas, fez com que o projeto inicial de publicação de sua obra em prosa fosse estimado em cerca de vinte e cinco volumes. Os primeiros livros foram editados em 1998, e até o momento vieram a público nove livros de crônicas, sendo um de crônicas em geral, três de crônicas de viagem, cinco de crônicas de educação. (cf.AZEVEDO FILHO, 2007, p. 271-79)
Uma obra tão vasta nada mais é do que o resultado de um trabalho árduo como escritora e jornalista. Cecília Meireles estreou na redação de um jornal em 1930, no Diário de Notícias, onde era responsável por uma seção diária, a “Página da Educação”. Neste espaço, desenvolvia ideias contra a opressão do sistema escolar, abordando os principais problemas do setor, e propondo reformas no sistema como o estabelecimento de escolas mistas. Mas as ideias revolucionárias de Cecília foram recebidas com desconfiança por parte do governo, que passou a persegui-la politicamente fazendo com que, em 1933, ela abandonasse a “Página”. Logo após a despedida do Diário de Notícias, a autora retomou o oficio jornalístico no periódico A Nação, tendo espaço para publicar seus textos desde que eles não tratassem de política. A partir da década de 40, Cecília passou a escrever uma coluna semanal sobre variados assuntos, entre eles o folclore, para o jornal A Manhã. Até que voltou, em 1950, para o Diário de Notícias, responsável pelo “Suplemento Literário”. Finalmente, em
Ao longo de seu trabalho como jornalista e cronista, pode-se dizer que Cecília Meireles atuou em três frentes principais. No Diário de Notícias, comandando a “Página da Educação”, Cecília deixou clara sua oposição ao sistema educacional vigente, expondo sua verve de educadora, que não aceitava imposições do governo como a obrigatoriedade do ensino religioso. Defendendo a teoria pedagógica da Escola Nova, abordando não somente questões educacionais, mas temas como a arte, a ética, o papel das mulheres na sociedade, Cecília Meireles transformou a “Página” num espaço de debate político e ideológico. Como afirma Valéria Lamego, a seção comandada por Cecília “dividia-se em dois planos: o primeiro, marcado pelas digressões filosóficas e ideológicas de sua diretora, e o segundo, voltado inteiramente para a luta política.” (LAMEGO, 1996, p. 34) Resultado de quatro anos de publicação, são, segundo Lamego, cerca de 750 artigos jornalísticos (cf. LAMEGO, 1996, p. 17). Da organização e seleção desse montante, sob a coordenação de Leodegário Azevedo Filho, surgiram cinco volumes de crônicas, que permitem a leitores e pesquisadores vislumbrar Cecília Meireles como a educadora e combatente política que foi.
Uma segunda linha da obra em prosa ceciliana são as crônicas que apresentam-se como comentário sobre assuntos variados, que iam desde situações pessoais e curiosas da própria vida da autora, observações do Rio de Janeiro e seus principais fatos, até notícias de destaque mundial, como as bombas atômicas da Segunda Guerra. Tais textos representam o tipo de crônica com que mais se está habituado: a observação pessoal do cronista sobre os fatos do cotidiano, casos pitorescos contados de uma maneira mais leve, ou a opinião crítica do autor sobre determinado assunto
Esse estilo de texto, mais voltado ao comentário do cotidiano, é também exercitado na composição das crônicas que foram veiculadas em rádio na década de 60. O resultado do trabalho de Cecília Meireles para esse meio de comunicação seria a publicação de cinco livros: Quadrante (1962), Quadrante II (1963), Escolha o seu sonho (1964), Vozes da cidade (1965) e Inéditos (1967), republicado em 1982 sob o título Ilusões do mundo. As três primeiras obras foram publicadas ainda em vida da autora, com crônicas selecionadas por ela mesma, já os dois últimos são obras editadas e publicadas postumamente.
Outro segmento da crônica ceciliana são as crônicas de viagem. Os três volumes, publicados entre 1998 e 1999, compreendem o período da vida da autora que vai de
Percebe-se que é a partir de 1940 que, para Cecília Meireles, as viagens sucedem-se com mais freqüência. Isso ocorre em parte porque aumentam os compromissos profissionais e a necessidade de deslocar-se. Cecília proferiu aulas, palestras e cursos
Em todos esses relatos é possível perceber a preocupação da autora em informar seus leitores sobre os principais aspectos de cada lugar, descrever situações, o folclore, os costumes, as características políticas, sociais e até geográficas das regiões que visitava. Observam-se, também, crônicas que relatam os prazeres e contratempos do próprio ato de deslocar-se: a fiscalização em aeroportos, a sensação de voar, a burocracia alfandegária, o desconforto em viagens longas, a alegria de chegar ao destino. Tudo é comentado e registrado por Cecília, todas as etapas de uma viagem são, em algum momento, destacadas.
Construindo relatos mais objetivos ou detendo-se em momentos de admiração e poeticidade, percebe-se que as crônicas cecilianas não se encerram em relatos puramente turísticos, mas são também registro de reflexões sobre o homem, a sociedade, a vida, a morte, o tempo. As viagens, muitas vezes, são as desencadeadoras de um processo de “meditação” sobre aspectos da vida humana em todas as suas dimensões. É o que afirma Margarida Maia Gouveia: “as notas de viagem de Cecília não são, pois, meros apontamentos ou fruto de curiosidade intelectual, mas pretexto para meditar sobre as essências de povos e culturas, sobre o tempo como agente transformador ou sobre o tempo como medida do eu (...)”(GOUVEIA, 2007, p. 114)
Analisando as três principais vias da obra em prosa (crônicas) de Cecília Meireles, o que se destaca é que tais textos revelam uma faceta da autora da qual muitos sentem falta ao entrar em contato com sua poesia: um sentimento de tempo mais real, menos simbólico. Suas crônicas falam de problemas, acontecimentos, fatos do cotidiano, situações mais próximas do leitor, e, ainda que muitas se voltassem ao passado, outras tantas abordavam o presente. Conhecer a obra em prosa ceciliana é refutar conclusões que a colocam como se estivesse sempre“acima do drama contemporâneo” (BRITO, 1968, p. 170), é deixar de desejá-la “mais próxima, menos alheia” (RÓNAI, 1994, p. 65), porque a própria cronista aproxima-se da realidade e do leitor. Suas crônicas deixam transparecer uma Cecília Meireles consciente e crítica dos acontecimentos de sua época. Como afirma Leila V.B. Gouvêa:
as crônicas já publicadas desvendam uma escritora em trânsito em meio à desordenação da vida e do mundo. O cotidiano e a cidade, o prosaico e o humor, o povo e a máquina, todas as ausências, que deram a sua lírica aquela aura que José Paulo Paes chamou de “poesia nas alturas”, nelas se metamorfoseiam em presenças. (GOUVÊA, 2001, p.286)
Defendendo seus ideais, registrando o mundo circundante ou descortinando novas culturas e lugares, as crônicas de Cecília Meireles oferecem ao leitor a possibilidade de vislumbrar temas que são subtraídos da concretude do dia-a-dia e transformados em material literário. Dentre as facetas cecilianas, sua veia cronística deixa entrever a expressão crítica, bem-humorada, irônica, subjetiva ou lírica de sua escrita
Múltiplas atuações de uma escritora que não deixa de surpreender àqueles que já a imaginavam totalmente revelada.
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Fonte:
KARLA RENATA MENDES: “CECÍLIA MEIRELES VIAJANTE: VISÕES DO PRESENTE E DO PASSADO NAS CRÔNICAS SOBRE PORTUGAL”. (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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