O homem: um ser enfermo e escravizado



O homem: um ser enfermo e escravizado

Em seu entendimento sobre o homem, Sêneca apontou a fragilidade da materialidade humana, estando o ser humano exposto ao perigo e aos ataques do mundo ao longo de sua existência.

De acordo com Sêneca, o homem é concebido como um ser corpóreo e espiritual (alma). O corpo é peso, é vínculo, é cadeia, é prisão da alma; a alma é o verdadeiro homem, que tende a libertar-se do corpo para alcançar a sua pureza (ULLMANN, 1996).

Mesmo não atribuindo muita importância ao corpo, o qual considera como algo frágil, um mal necessário, que somente serviria para a “hospedagem” da alma, observa-se que nele havia preocupação em cuidar da saúde desse corpo, mesmo desconsiderado, pois a alma dependia dele.

As pessoas inexperientes vêem-se em grandes dificuldades para superar as dores físicas precisamente porque não se acostumaram a contentar-se com a vida da alma, e dão portanto ao corpo uma grande importância. Por isso mesmo, o homem entregue de coração à sabedoria separa a’ alma do corpo e ocupa-se mais da primeira - a sua parte melhor, de natureza divina -, e apenas dá ao corpo – frágil e sempre queixoso! – os cuidados estritamente indispensáveis (Cartas a Lucílio, 78, 10).

Assim sendo, em Sêneca o homem mostra uma fragilidade natural, como afirma em Consolação a Márcia:

Sendo tu mesma um corpo perecível e frágil e sujeita a doenças [...]. Um vaso que pode quebrar-se ao menor abalo, ao menor movimento. Não é necessária uma grande tempestade para que se destrua: bata onde bater, se dissolverá. O que é o homem? Um corpo débil e frágil, indefeso por sua própria natureza, que tem necessidade do auxílio alheio, exposto a todos os danos do destino; um corpo que quando exerceu o bem os seus músculos, é pasto de qualquer fera, é vítima de qualquer uma; composto de matéria inconsciente e mole e brilhante somente nas suas feições exteriores; incapaz de suportar o frio, o calor, a fadiga e, por outro lado, destinado à desagregação pela inércia da ociosidade; um corpo preocupado com seus alimentos, por cuja carência ora se enfraquece, por cujo excesso ora se rompe; um corpo angustiado e inquieto por sua conservação, provido de uma respiração precária e pouco firme, a qual um forte ruído repentino perturba; um corpo que é fonte doentia e inútil, de contínuo perigo para si mesmo
(Consolação a Márcia, X, 1, 2-3).

O drama da existência humana não reside apenas numa escravidão motivada por sua vinculação a valores externos, mas também na enfermidade promovida pelos vícios e paixões. Uma alma dominada por vícios e paixões é marcada pela enfermidade, que se manifesta em sintomas patológicos.

Um desses sintomas é a aparente dificuldade ou incapacidade do homem para descobrir o que o afeta.

O nosso mal não vem do exterior, está dentro de nós, enraizado nas nossas vísceras, e, como ignoramos o mal de que sofremos, só com dificuldade recuperamos a saúde. E mesmo que já tenhamos iniciado o tratamento, quando nos será possível levar de vencida a enorme virulência de tão numerosas enfermidades? Nem sequer solicitamos a presença do médico, quando afinal é mais fácil tratar uma doença ainda no início (Cartas a Lucílio, 50, 4).

Esse processo de insensibilização do homem ganha progressiva dimensão e, em razão da " [...] a cegueira das nossas mentes" (Cartas a Lucílio, 120, 18), ele não percebe o que outros percebem com certa nitidez. Ele está relacionado também à valorização do corpo, que resulta em insegurança para a alma.

Em face dessa realidade corporal, o homem torna-se criterioso, percebe os sintomas da sua enfermidade, mas não os dá a conhecer, pois se preocupa com as reações adversas que pode provocar.

Ocultar a enfermidade da alma sob a aura da importância, da laboriosidade ou de qualquer outra suposta virtude indica que o mal já está efetivamente instalado. "Não há melhor indício de um espírito mal formado do que a instabilidade e a permanente oscilação entre a afectação pela virtude e o amor pelo vício" (Cartas a Lucílio, 120, 20).

Essa dissimulação não produz outro resultado que não seja ir ao encontro dos vícios e das paixões, sem deixar espaço para a verdade sensível e para a virtude plena. Por outro lado, a simulação de virtudes que não são reais transforma-se num sério obstáculo à obtenção da saúde da alma.

O homem que não quer ser ajudado inibe os qualificados, que são poucos, de exercer a condição de "médicos". Ainda que se use a pressão de remédios ou de coação, não se pode ignorar que " [...] um espírito fraco e doente receia experiências desconhecidas" (Cartas a Lucílio, 50, 9).

Mesmo considerando a possibilidade da cura, Sêneca concebe a situação da humanidade como dramática, pois é grande o número de enfermos e pequeno o número de "médicos" para cuidar deles (PEREIRA MELO, 2007a).

Além disso, à medida que passam os anos, aumenta o número das enfermidades que atacam a alma, muito mais do que as do corpo, que já não são poucas.

[...] para lhes fazer frente (doenças do corpo) teve a medicina de multiplicar também as formas de tratamento e de observação. Idênticas considerações devo fazer acerca da filosofia. Também essa foi, em tempos, menos complicada, quando as faltas dos homens eram menos graves e podiam sanar-se com cuidados ligeiros. Mas contra a enorme perversão actual dos costumes há que tentar todos os recursos. E, mesmo assim bom seria que esta pestilência fosse levada de vencida! (Cartas a Lucílio, 95,29).

O aumento das enfermidades físicas, para Sêneca, tem origem nas paixões e nos vícios, particularmente os relacionados aos excessos de comida, bebida, luxo e sensualidade, entre tantos outros.

Nos dias de hoje, como progrediram as deficiências da saúde! Pelos prazeres que nos proporcionamos, pagamos um juro que ultrapassava todos os limites legítimos! Não te admires com o número imenso das moléstias: conta o número dos cozinheiros! As actividades intelectuais estão paradas, os mestres dos estudos liberais sentam-se nos seus cantos sem assistência, nas escolas dos retores e dos filósofos e o desterro; em contrapartida, vê como estão cheias as cozinhas, vê a multidão que se acotovela nas casas pródigas em festins! (Cartas a Lucílio, 95, 23).

Mais cedo ou mais tarde, o homem toma consciência da sua condição de enfermo, mas a cegueira a que está submetido impede-o de identificar essa enfermidade. Ao mesmo tempo, atribui às suas dores causas físicas, que, em sua maioria, também são de caráter imaginário.

Não comeces tu a fazer os teus males mais graves do que são e a afligir-te com queixumes. Toda dor é ligeira quando não a julgamos a partir da opinião comum. Se, pelo contrário, começares a exortar-te a ti mesmo e a dizer: "Isto não é nada, ou pelo menos não é nada de importância! O que é preciso é paciência! Isto passa já!" - pelo próprio facto de considerares ligeiras as tuas dores, já estás a tomá-las de factos ligeiras. Todos os nossos juízos estão suspensos da opinião comum. Não são apenas a ambição, o luxo, a avareza que se regulam por ela: também sentimos as dores de acordo com a opinião (Cartas a Lucílio, 78, 13).

Em face disso, buscam-se remédios não apropriados para o problema, os quais pioram o quadro. É o caso das viagens: segundo se acredita, uma mudança de clima poderia contribuir para melhorar o estado de saúde; no entanto, esse expediente não possibilita a cura, pois os males não são físicos; além disso, tanto para as enfermidades da alma quanto para as do corpo, o repouso possibilita um restabelecimento iniludível, enquanto o movimento de transferir-se de um lugar para outro não tem outra propriedade a não ser a de agravar a enfermidade:

"Andas daqui para ali tentando expulsar essa angústia interior, o que teu incessante deambular apenas consegue agravar [...]. O movimento só te faz mal [...]" (Cartas a Lucílio, 28, 3).

O temor se aloja na alma enferma e pode paralisar determinadas reações do homem, impedindo a razão de encontrar o remédio necessário para as suas dores e levando ao desgosto pela própria existência.

Para Sêneca, não há escravidão pior e mais vergonhosa do que a escravidão voluntária. O homem, em sua materialidade, pode ser submetido, mas a sua alma, pelas virtualidades que encerra, não pode ficar presa a esse cárcere.

O homem que se encontra escravizado e enfermo converte-se num homem vencido, e isso se agrava à medida que aumenta a sua resistência em face dessa realidade. Com sua indiferença, ele torna ainda mais doente a força que a natureza lhe conferiu, a alma, exatamente aquela que garante a sua vitória na luta contra os males que o atormentam:

"[...] a natureza deu-nos energia suficiente. A questão está em aproveitá-la, em juntar todas as nossas forças e pô-las ao nosso serviço ou, pelo menos, em não as virar contra nós mesmos. A falta de forças não passa de pretexto; o que temos na realidade é falta de vontade!" (Cartas a Lucílio, 116, 8).

Apesar desse favorecimento da natureza, o mundo é o espaço de homens vencidos, dos que não sabem ou não querem declarar uma guerra contra si mesmos tendo em vista obter o que é ideal: a vitória da alma sobre o corpo.

Sêneca caracteriza o drama da existência humana como símbolo da derrota e da submissão. É importante observar que, mesmo condenando veementemente a guerra entre homens e povos, ele lança mão de expressões militares e identifica o corpo humano com um campo de batalha (GARCÍA GARRIDO, 1969), uma guerra interior do homem consigo mesmo, em busca da perfeição.

É meu dever escutar corajosamente todo este estrépito guerreiro que me rodeia. Todos me considerariam louco, e com razão, se, enquanto velhos e mulheres acarretam pedras para reforço das muralhas, enquanto os homens armados aguardam ou reclamam diante das portas ordem de sortida, enquanto os dardos inimigos se cravam, vibrando, nos batentes, enquanto o próprio solo estremece com as escavações dos sabotadores, eu me deixasse ficar sentado e quieto, meditando em silogismo do tipo: "Tu possuis aquilo que não perdeste; ora tu não perdeste os cornos; logo tu tens cornos!", ou outras sutilezas construídas segundo este delirante modelo (Cartas a Lucílio, 49, 7-8).

Para ele, não existe batalha que exija maior dedicação do que a luta interior, uma vez que esta não admite nenhum tipo de trégua.

Um quartel de inverno bastou para amolecer Aníbal; este homem que atravessava indômito as neves dos Alpes sucumbindo às molezas da Campânia: vencedor na guerra, foi vencido pelos vicias. A nossa vida é também um combate, e uma expedição guerreira em que nunca nos podemos entregar ao repouso e ao prazer. Primeiro que tudo devemos derrotar os prazeres que, como vês, são capazes de dominar mesmo os ânimos mais duros. Quem tiver a noção do esforço exigido pela vida da sabedoria compreenderá que essa luta não se vence através da sensualidade e da moleza (Cartas a Lucílio, 51, 6-7).

Em razão disso, o homem vencido não se sente motivado para empreender uma ofensiva efetiva contra a sua situação e desconsidera a indigência de vida a que é arrastado pelas paixões e pelos vícios.

O homem, além de escravizado, enfermo e vencido, está submetido a um mal ainda maior, o medo da morte. O temor e a consciência de que esta, mais cedo ou mais tarde, se faz presente em sua existência põem fim à sua aspiração universal, a suas esperanças e projetos de felicidade para o futuro.

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Fonte:
ALESSANDRA POSSOBON DE OLIVEIRA: “SÊNECA E A MORTE ENQUANTO CONTEÚDO PARA A FORMAÇÃO DO HOMEM IDEAL”. (Dissertação apresentada por ALESSANDRA POSSOBON DE OLIVEIRA ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Área de Concentração: Historiografia da Educação, da Universidade Estadual de Maringá, como um dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr.: JOSÉ JOAQUIM PEREIRA MELO). Maringá, 2008.

Nota
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