A Renascença e o teatro de Shakespeare



A Renascença e o teatro de Shakespeare

O renascer do homem já era almejado desde o espírito da Antigüidade, mas, apenas no final do século XV, com as grandes alterações ocorridas no período - principalmente no campo do intelecto e da geografia - que, segundo Berthold, irão fortalecer as duas molas propulsoras da Renascença: a liberação do individualismo e o despertar da personalidade (HAUSER, 2003).

Nessa época, ocorreram grandes descobertas que modificaram a vida do homem, resultando em muitos questionamentos - é a época da desintegração das certezas, ou o que Hauser irá definir como uma deliberação consciente e uma maior consistência nos critérios de observação e análise da realidade (2000).

Na Europa, essa consistência de análise estendeu-se para todos os campos da organização humana: religioso, político, econômico e cultural, promovendo o aparecimento de um movimento cultural denominado Renascimento. Segundo César, "Este movimento representava, em geral, os valores da burguesia, classe social em ascensão, que necessitava de uma nova moral cultural teve seu ápice na Península Itálica, no século XVI" (CESAR, 2001, p. 70).

O espírito crítico do homem no Renascimento contribuiu para o crescimento da pesquisa em várias áreas. A própria posição da Terra no universo, que até então se acreditava ser central, passa a ser questionada pelas idéias de Copérnico, que propõe o heliocentrismo; teoria comprovada por Galileu Galilei a partir dos estudos da lei da gravidade.

A igreja contesta tentando manter suas verdades dogmáticas, no entanto, destacam-se como principais características desse movimento, o racionalismo (em oposição à fé), o antropocentrismo (em oposição ao teocentrismo da Idade Média), e o individualismo (em oposição ao coletivismo cristão), além disso, a cultura renascentista foi marcadamente humanista, por valorizar a vida terrena e a natureza e difundir a necessidade da pesquisa, contrariando o princípio de autoridade (pregado pela igreja).

Tanto o Renascimento quanto o Humanismo são movimentos de origem italiana. "Foi da Itália que o mundo recebeu as diretrizes no domínio das ciências e artes, da literatura e diplomacia, da cultura e da educação" (BERTHOLD, 2003, P. 270). Destacam-se como renascentistas italianos, Dante Alighieri, com a obra Divina Comédia; Francesco Petrarca, considerado o pai da literatura renascentista italiana; Boccaccio, com Decameron; Maquiavel, com o Princípe, foi considerado o pai do pensamento político moderno; Leonardo da Vinci, atuou em áreas como a pintura - Monalisa e a Santa Ceia- escultura, engenharia, música, filosofia, entre outras; Michelangelo Buonarroti, conhecido como poeta do corpo - pintou um conjunto de afrescos na Capela Sistina sobre as passagens da Bíblia (CÉSAR, 2001).

No, entanto, é na Inglaterra, sob o reinado de Elisabeth, animado pelo sentimento de autovalor do nascente poderio mundial inglês, advindo da empatia do povo com sua rainha, com o ressurgimento das artes, que o teatro irá florescer. Na era elisabetana perde-se, por vez, a dependência religiosa, e o teatro, em ascensão, assumiu uma nova condição na arte; delimitou novos pressupostos, com diferentes temas e estilos e, a partir dessa nova forma, instituiu-se com um novo papel na vida em sociedade; deixou de ser amador, itinerante para se profissionalizar. O tema principal da Renascença, o indivíduo consciente de si mesmo "alcançou seu zênite de perfeição artística no teatro elisabetano" (BERTHOLD, 2003, p. 312).

Dramas históricos são elaborados por William Shakespeare e seus colegas dramaturgos. Segundo Berthold,

Shakespeare mergulhou na história da própria Inglaterra e posicionou-se apaixonadamente em relação aos problemas do poder e do destino. Ascenção repentina e queda brupta, a embriaguez do poder, vingança e assassinato dão vazão as imagens plenas de linguagem e culminam numa brilhante síntese (2003, p. 312).

No entanto, as peças de Shakespeare trazem não só a crônica de seu contexto histórico como também descrevem a condição humana, as relações entre os indivíduos e destes com a sociedade. Isso, provavelmente, se deve ao fato de que Shakespeare experimentou o convívio com diversas classes sociais; foi abastado e pobre entre a infância e a adolescência, circulava com desenvoltura entre a nobreza e, pelo mundo da boêmia, tinha contato com figuras excêntricas.

Questões religiosas, problemas de governos, personagens históricos, filosofia humanista são conteúdos que fazem parte de sua obra. Hauser o intitulou como "'porta-voz' de sua época, por proclamar o que era por toda a parte evidente" (2000, p.414). Esses aspectos da humanidade capturados por Shakespeare em sua obra são projetados, no entanto, para um plano mais elevado. Nesse sentido, Shakespeare soube usufruir muito bem da diferença entre registrar de fato a realidade e a liberdade no registro da ficção conferida pelas contribuições da teoria de Bakhtin.

Segundo Berthold, "ele saltou por cima das regras clássicas pela força de seu gênio poético. Trouxe à vida períodos e lugares, ternura e rudeza na 'arena' do teatro" (2003, p. 313). Shakespeare, confirmando as previsões de Sócrates, de que um mesmo homem poderia ser capaz de escrever tragédia e comédia, perpassou todos os gêneros da arte dramática. E, de acordo com a cronologia de Bloom, escreveu peças históricas, como Henrique VI (1589-90), Ricardo III (1592-93), O Rei João (1594); comédias, Sonho de uma noite de verão (1595-96), Muito barulho para nada (1598-99), O mercador de Veneza (1596-97) - que também pode ser enquadrada no gênero tragicômico; e, as tragédias, Romeu e Julieta (1595), Hamlet (1600), Otelo (1604), Rei Lear (1605), Macbeth (1606), entre outras (2001a).

Suas peças atendiam ao gosto do público e às inclinações do contexto. Segundo Burgess, Shakespeare mostrava-se muito consciente em relação à platéia elizabetana "uma mistura de aristocratas, letrados, almofadinhas, gatunos marinheiros e soldados de licença, estudantes e aprendizes" (BURGESS, 2002, p. 92). Ainda segundo Burgess,

Essa platéia tinha de receber o que queria e, sendo uma mistura, queria coisas variadas - ação e sangue para os iletrados, belas frases e engenho para os almofadinhas, humor sutil para os refinados, palhaçada escandalosa para os não-refinados, assuntos amorosos para as damas canção e dança para todos. Shakespeare dá todas essas coisas. Nenhum outro dramaturgo jamais consegui dar tanto. (idem, p.92)

Segundo Harold Bloom, crítico literário norte-americano que há duas décadas se dedica quase que integralmente aos estudos sobre a obra completa do dramaturgo, há duas maneiras contraditórias de explicar a grandeza de Shakespeare:

No entendimento dos que pensam ser a literatura basicamente linguagem, a primazia de Shakespeare é um fenômeno cultural, produzido a partir de crises sociopolíticas. Nessa ótica, Shakespeare não escreveu suas próprias obras: estas foram escritas pela energia social, política e econômica da época. [...] A outra maneira parte da noção de que Shakespeare é universalmente considerado o autor que melhor representou o universo concreto, em todos os tempos. [...] revisitamos Shakespeare porque dele precisamos; ninguém nos apresenta tanto do mundo pela maioria de nós considerado relevante. (BLOOM, 2001a, p. 42)

Entretanto, poder-se-ia dizer que as duas formas não são excludentes, pelo contrário, são complementares; o dramaturgo apresenta as questões relevantes do mundo concreto, de acordo com sua visão de mundo, que fora formada por ele estar inserido no contexto histórico e social de uma época. Nesse sentido, é o próprio Bloom quem, numa outra passagem, salienta (idem, p. 242): "Jamais deveremos supor que Shakespeare fosse alheio ao mundo que o cercava; sua curiosidade era insaciável, sua ânsia de informações, sem limites". Pelo processo de diálogos entre os discursos, Shakespeare podia não só refratar o mundo concreto que lhe cercava, como também outros textos de literatura.

Na era elisabetana já se evidenciava o que Kristeva propôs como intertextualidade. Segundo Burgess, a colaboração entre os autores dramáticos era comum, "Shakespeare provavelmente trabalhou com Beaumont e Fletcher, assim como com outros escritores notáveis" (2002, p. 92). Além disso, segundo o autor, Shakespeare

[...] ocasionalmente pegava uma peça que já existia (tal como Hamlet, escrito por Kid) e a reelaborava, sempre melhorando-a . [...] de fato, ele normalmente preferia tomar emprestado a trama de alguém ou extrair uma narrativa de um livro de história ou de um panfleto popular - seu interesse se concentrava mais em contar a história do que a própria história. (BURGESS, 2002 p. 92).

Burges, no entanto, reconhece a autoria de Shakespeare nas peças mais conhecidas e evidenciadas de sua história cronológica como dramaturgo. Na verdade, essa constatação de Burgess não diminui em nada a grandiosidade de Shakespeare, apenas destaca que as contribuições de Bakhtin sobre o processo dialógico, mesmo entre enunciados do gênero secundário, podem também ser destacados no universo shakespeariano.

Além disso, Bloom destaca que:
A peculiar magnificência de Shakespeare está em seu poder de representação do caráter e personalidade humanos e suas mutabilidades. [...] Shakespeare abre de tal modo suas personagens a múltiplas perspectivas que elas se tornam instrumentos analíticos para nos julgar. Se somos moralistas, Falstaff nos ofende; se rançosos, Rosalinda nos denuncia; se dogmáticos, Hamlet no escapa para sempre. E se somos explicadores, os grandes vilões de Shakespeare nos farão desesperar. (2001b, p. 67 e p. 69).

Bloom também retoma um pequeno trecho do prefácio de Samuel Johnson ao Shakespeare de 1975, que expõe o dialogismo da obra do autor: "Shakespeare é acima de todos os escritores, pelo menos acima de todos os escritores modernos, o poeta da natureza, o poeta que estende aos seus leitores um espelho fiel dos costumes e da vida". (idem, p. 68)

Essa sua misteriosa capacidade de construir o discurso fictício, ou secundário, como chamou Bakhtin, com vozes aparentemente reais e consistentes promove a invasão do mais abundante senso de realidade na literatura. Paradoxalmente, como salienta Berthold, o tratamento dispensado por Shakespeare sobre a linguagem em suas obras, explora tão bem a realidade que induz o público à construção mental, mesmo a partir de metáforas, dos componentes inexistentes na encenação.

O hálito ardente dos acontecimentos, que a tragédie classique francesa aprisionou nos grandes monólogos do drama com unidade de lugar, explodiu com Shakespeare, em diálogos curtos e poderosamente delineados. Cada ocorrência é transposta para ação. [...] "Imaginai que no cinturão destas muralhas / Estejam encerradas duas poderosas monarquias [...]. Porque é vossa imaginação que deve hoje vestir os reis, transporta-los de um lugar para o outro, transpor os tempos / colocando a realização de acumular numa hora de ampulheta os acontecimentos de muitos anos". (BERTHOLD, 2003, p. 313)

Não só a linguagem, mas a estrutura é resultado de condições extremamente diversas. Shakespeare foi um homem de sua época, porém o tratamento dado a sua obra o libertou do tempo e do espaço que o criaram e o tornou universal, tanto que suas peças, cada vez que lidas ou encenadas, mesmo na contemporaneidade são compreendidas e assimiladas por novos interlocutores. A grandeza de sua obra, então, reside no fato de que diferentes platéias, como era um de seus objetivos, podem analisar e compreender sua obra com diferentes olhares. É nesse sentido, com um novo olhar que se pretende perceber quais os diálogos que podem ser estabelecidos entre Shakespeare e um autor contemporâneo, como Suassuna.

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Fonte:
PATRÍCIA BARTH RADAELLI DE OLIVEIRA: “DIÁLOGOS QUE PERPASSAM O TEMPO E O ESPAÇO: SHAKESPEARE E SUASSUNA”.(Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosane Beyer). Cascavel, 2005.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – BDTD

Um comentário:

  1. qual é a relação de shakespeare com o renascimento cultural???

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