Shakespeare: um adaptador / apropriador / imitador?

Shakespeare: um adaptador / apropriador / imitador?

Sanders (2006) afirma ser incontestável o fato de que Shakespeare era um adaptador e imitador, assim como um apropriador de mitos, contos de fadas e folclore, bem como de trabalhos específicos de escritores variados como Ovídio, Plutarco e Holinshed. O início do século XX testemunhou uma profusão de livros que se dedicaram a encontrar essas fontes. Sanders cita o trabalho de Geoffrey Bullough, de oito volumes, intitulado Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare (1957-1975), que ainda hoje é uma presença de peso em qualquer universidade. A organização dos volumes é instrutiva. Bullough divide os capítulos de acordo com as seguintes categorias: fonte direta, análogo, tradução, fonte possível e fonte provável. As fontes diretas incluem, por exemplo, um texto em prosa de Cinthio que versa sobre um mouro ciumento, reescrito por Shakespeare como Otelo.

Nesse caso específico, Shakespeare adaptou o conto para uma peça teatral, conforme o espírito do público da época, porém recriou um novo texto, de conteúdo e significado distintos de sua possível fonte. Do conto de Cinthio apenas um nome é usado por Shakespeare: o de Desdêmona (Disdemona, no original). Otelo era Christophoro Moro, e Iago era Alfieri (Alferes). Cássio era o capo di squadra, e assim por diante. Apesar de Shakespeare adaptar o conto com certa fidelidade, o texto de Cinthio é uma história grosseira, ao passo que o texto shakespeariano é de excelente qualidade. O conto de Cinthio se resume na história de um alferes que quer se vingar de Moro por ter sido rejeitado como amante por Disdemona, enquanto a peça de Shakespeare dá um tratamento inesquecível a Otelo, que vive um tempo puramente emocional, perturbado pelas maquiavélicas insinuações de Iago, um vilão memorável em uma trama que explora dúvidas, armadilhas e dominação.

No conto de Cinthio, Alfieri é apaixonado por Disdemona, mulher casada com Christophoro Moro. Como a fiel esposa de Christophoro não corresponde ao amor de Alfieri, ele se vinga convencendo Christophoro de que Disdemona o trai, e juntos os dois planejam o assassinato desta, que já tinha um filho com Christophoro. Já em Otelo de Shakespeare, Iago diz que vai se convencer de que ama Desdêmona para tornar seu desejo de vingança ainda mais forte, porém o dramaturgo não desenvolve esse possível amor não correspondido, mas enfatiza o tema da vingança, o poder de convencimento que Iago exercerá sobre Otelo, bem como a dependência do mouro em relação à falsa honestidade de Iago.

O dramaturgo, muitas vezes, fazia uso de material variado. Segundo a introdução de Rei Lear, da edição da Arden, Shakespeare estava conectado a várias fontes e se apropriava delas, ou de partes delas, usando-as nas peças que escrevia. Algumas dessas fontes de que Shakespeare pode ter feito uso são de gêneros variados: uma peça, Rei Leir (provavelmente a fonte principal para sua adaptação de Rei Lear), um romance em prosa, a Arcádia (Arcadia) de Sidney, as crônicas de Holinshed, A fada rainha (The Faerie Queene) de Spencer, Um espelho para magistrados (A Mirror for Magistrates), A notória declaração das imposturas papistas (Declaration of Egregious Popish Impostures) de Harsnett, dois poemas e um panfleto. Como diz Muir, esse relato das fontes da peça Rei Lear pode auxiliar a iluminar um pouco o método shakespeariano de criar uma unidade a partir de materiais heterogêneos. Quando ele amplificoue complicou sua fábula inicial - o seu “donnée” (feito) -, ele imprimiu em seu serviço incidentes, idéias, frases e termos de livros e peças; e a notável riqueza da textura do texto aparente em Rei Lear pode ser explicada, ao menos em parte, pelo uso shakespeariano de tal método.

Dentre essas muitas fontes a que Shakespeare pode ter tido acesso, talvez aquela que tenha feito seu trabalho germinar foi a peça anônima “Rei Leir”. A história básica do anônimo Leir lembra mais um conto de fadas do que um drama: um rei tinha três filhas, das quais a mais nova era a única honesta, adorável e bondosa. O rei favorecia suas filhas más e maltratava a boa. Na maior parte das versões da história, o rei vem a apreciar a boa criança e as duas gerações se harmonizam de forma feliz. Isso também acontece em Rei Leir. Durante as oito cenas da peça-crônica, Leir divide seu reino entre Gonorill e Ragan, tirando a herança de Cordella, jovem que é cobiçada e conquistada pelo rei Galian disfarçado. As duas filhas mais velhas maltratam Leir, que é fielmente servido por seu cortesão Perillus. Cordella e seu marido vêm atrás de Leir como banidos famintos. Pai e filha se reconciliam; as forças de Gallian destroem aqueles mandados pelas filhas más; e tudo que aparentemente está bem, acaba bem.

Shakespeare, por outro lado, individualiza de uma forma impressionante as personagens da peça-crônica; enfatiza o tema da ingratidão (e da lealdade) filial por meio da adição do sub-enredo de Gloucester; inventa uma tempestade no descampado com o trio agindo como louco, falso-louco e bobo; o caos interno se reflete no caos da natureza. Shakespeare transforma uma seqüência de eventos de leve suspense em uma tragédia de ressonância cósmica.

Outro exemplo de adaptação é a peça Romeu e Julieta. Uma história semelhante à de Romeu e Julieta apareceu em 1476 no Novellino, de Masuccio Salernitano, e tornou a ser narrada uns cinqüenta anos depois por Luigi da Porto, que chamou aos seus heróis de Romeo e Giulietta. Essa história se passava em Verona e contava com duas famílias inimigas chamadas Montecchi e Cappelletti, com um duplo suicídio no fim. Outro italiano, Matteo Bandello, adaptou livremente a história para a sua Novelle, de 1554, a qual, passado pouco tempo, foi traduzida para o francês por Pierre Boisteau de Launay e apareceu nas Histoires Tragiques, de François de Belleforest, em 1559. No entanto, é praticamente certo que a versão usada por Shakespeare (de enorme popularidade, visto que teve, em pouco tempo, mais de uma edição) foi o longo poema de Arthur Brooke, o qual ofereceu vasta informação sobre Verona, a Itália e hábitos sociais importantes para a criação da peça. O poema traz, com exceção de Mercúcio, todas as personagens presentes na peça, mas Brooke faz do poema uma lição de moral àqueles que se entregam às paixões violentas, diferentemente de Shakespeare, que enfatizou o ódio nutrido pelas famílias, fez a ama mais cômica e, além disso, criou a incrível personagem Mercúcio.

É fato que Shakespeare tinha suas fontes e fazia uso delas. Suas peças poderiam ser chamadas de adaptações se usássemos essa nomenclatura de acordo com o conceito que temos dela hoje? Certamente. No entanto, dois pontos devem ser observados antes de tudo. Era considerado de bom-tom pelos renascentistas imitar textos já existentes, dando seu toque particular; buscar fontes em textos clássicos e reescrevê-los, porém revelar seu gênio criador (NITRINI, 1997) para um novo público, de acordo com as necessidades e gostos desse público (WALTON, 2006). Shakespeare fazia uso de fontes clássicas, porém não somente clássicas, mas dispunha também de variado material na época. O dramaturgo tinha onde se alimentar e se apropriava do que lhe interessava; contudo, as mudanças feitas por Shakespeare viriam ao encontro das necessidades do público do teatro elisabetano, ao qual ele queria agradar.

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Fonte:
Marilise Rezende Bertin “Traduções”, adaptações, apropriações: Reescrituras das peças Hamlet, Romeu e Julieta e Otelo, de William Shakespeare”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. John Milton). São Paulo, 2008.

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