Ainda não havia lido França Junior, e muito pouco sabia a seu respeito. Foi sua comédia “Caiu o Ministério!” que despertou em mim o interesse por seu legado literário. A peça é o reflexo irônico da política no Brasil durante a segunda metade do século XIX, sob o regime imperial de D. Pedro II, quando este já apresentava visível sinal de decadência. Mas a peça não trata exclusivamente de política. Também se observa nela, por exemplo, a banalidade dos costumes: DONA BÁRBARA — É moda cá da sua terra. Andam as velhas por aí todas pintadas, frisadas, esticadas e arrebicadas, à espera dos rapazes pelas portas dos armarinhos e das confeitarias. Cruz, credo, Santa Bárbara! Só se benzendo a gente com a mão canhota. Olhe, lá em Minas nunca vi disto e estou com cinqüenta anos! A influência da língua francesa no linguajar da burguesia tupiniquim, em detrimento da prevalência do inglês, é outro aspecto bem realçado na obra, algo que fica muito bem tipificado na personagem Beatriz: BEATRIZ — O corpinho estava come ci, come cá. A saia é que estava ravissant! Era toda bouilloné, com fitas veill’or e inteiramente curta. / O que aqui apreciam é muita fita, muitas cores espantadas... enfim, tout ce qu’il y a de camelote. / Muito bem, muito bem, lá para que digamos não senhor. Diz monsiù, negligè, bordó, e outras que tais. Outro traço destacado na comédia refere-se à influência da Europa, sobretudo da Inglaterra, em privilégios na execução de obras aqui no Brasil. É o caso do capitalista inglês Mr. James, que propõe uma “revolução” no transporte urbano da cidade do Rio de Janeiro, com a criação de um trem cinófero, ou seja, puxado por cachorros: MR. JAMES — Idéia estar aqui completamente nova. Mim quer adota sistema cinófero. Quer dizer que trem sobe puxada por cachorras. Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de roda. Ora, cachorra dentro de roda, no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha! Mim precisa de força de cinqüenta cachorras por trem; mas deve muda cachorra em todas as viagens. / Mas eu aproveita todas as cachorras daqui e faz vir ainda muitas cachorras de Inglaterra. / Oh! senhorr, não tem a menor periga. Se cachorra estar danada, estar ainda melhor, porque faz mais esforça e trem tem mais velocidade. França Junior foi um crítico contumaz da facilidade dos ingleses em obter regalias do governo brasileiro. Isso fica bem explicitado nesta fala de Mr. James: MR. JAMES — Mim quer privilégia para introduzir minha sistema em Brasil, e estabelecer primeira linha em Corcovada, com todas as favores de lei de Brasil para empresa de caminha de ferro.
O “audacioso” projeto de Mr. James, de carros saindo do Cosme Velho para o Corcovado, puxados por cães, transforma-se numa verdadeira batalha política. Havia os que estavam do “lado dos cachorros” e os que se opunham aos bichos. Da mesma forma como ocorre hoje com os nossos políticos, havia compras de votos e promessas de vantagens para quem ficasse ou saísse de ambas facções:
FILOMENA — E o que se lucrou em consultar a Câmara? Em assanhar a oposição, e formar no seio do parlamento dois partidos, o dos cachorros e o dos que se batem, como leões, contra os cachorros.
BRITO — E que partidos!
FILOMENA — E lá se vai o privilégio, falto à palavra que dei ao inglês, e o casamento da menina, víspora!
BRITO — Mas o que queres que faça?
FILOMENA — Que envides todos os esforços para que o projeto passe! Hoje é a última discussão.
BRITO — E o último dia talvez do ministério.
FILOMENA — Quais são os deputados que votam contra?
BRITO — Uma infinidade.
FILOMENA — O Elói é cachorro?
BRITO — Sim, senhora.
FILOMENA — O Azambuja?
BRITO — Cachorro.
FILOMENA — O Pereira da Rocha?
BRITO — Este é de fila.
FILOMENA — O Vicente Coelho?
BRITO — Era cachorro; mas passou anteontem para o outro lado.
FILOMENA — E o Barbosa?
BRITO — Está assim, assim. Talvez passe hoje para cachorro.
FILOMENA — Ah! Que se as mulheres tivessem direitos políticos e pudessem representar o país...
BRITO — O que fazias?
FILOMENA — O privilégio havia de passar, custasse o que custasse. Eu é que devia estar no teu lugar, e tu no meu. És um mingau, não nasceste para a luta.
BRITO — Mas com a breca! Queres que faça questão de gabinete?
FILOMENA — Quero que faças tudo, contanto que o privilégio seja concedido.
BRITO (Resoluto.) — Pois bem; farei questão de gabinete, e assim fico livre mais depressa desta maldita túnica de Nessus.
A “batalha dos cachorros” culmina, enfim, com mais uma queda de Ministério. Pronto! Estava aberto o caminho para os novos aspirantes a ministros e novos jogos de interesses na política tupiniquim.
Simplesmente genial esta comédia de França Junior!
É isso!
Caiu o Ministério!
Brevíssimos comentários sobre a peça "Caiu o Ministério", de França Junior
Por: Iba Mendes (fevereiro/2012)
Marcadores:
FRANÇA JUNIOR,
MOMENTO DA LITERATURA
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!