A CIENTIFICIDADE DA METAFÍSICA
O que pretendemos, no que diz respeito à compreensão do estatuto de
ciência do projeto metafísico, é que a nova concepção de conhecimento
científico que é apresentada na Metafísica não se fundamente no seu
método de argumentação, mas na posição ocupada pela disciplina na hierarquia do
saber idealizada por Aristóteles. Isto quer dizer que, para compreender por que
o estudo do ser enquanto ser é, por Aristóteles, denominado de ciência,
ainda que tal estudo não respeite a totalidade dos critérios reguladores do
saber científico expostos nos Segundos Analíticos, não devemos nos
debruçar sobre uma investigação do(s) método(s) de prova característico(s) da
disciplina metafísica, mas, antes, buscar entender qual é a relação existente
entre ela e as ciências particulares, na medida em que, de acordo com a nossa
interpretação, é a posição ocupada pela ciência universal do ser enquanto ser
em comparação com as ciências que têm seus estudos restritos a parcelas do ser
que garante a atribuição de cientificidade ao projeto metafísico.
Vimos no primeiro capítulo, quando da análise da concepção aristotélica
de conhecimento científico de acordo com a doutrina dos Segundos Analíticos,
que toda ciência particular, nas suas demonstrações, parte de certos
princípios, os quais são indemonstráveis não só dentro do escopo mesmo daquela
ciência, mas,
também, para toda e qualquer ciência particular. Não cabe, no entanto, pensar
que é nesta medida que se estabelece a relação entre a metafísica e as ciências
particulares, a saber: que ela vem provar aqueles princípios imediatos
indemonstráveis por qualquer ciência particular. Como já mencionáramos, tal não
pode ser o caso: pois a metafísica é, por definição, estudo do ser enquanto
ser, de modo que não pode ser da sua alçada a investigação de princípios cuja
aplicação está circunscrita a gêneros particulares do ser. A ciência da Metafísica,
portanto, não está na base das ciências particulares por demonstrar aquilo
que estas não são capazes de demonstrar. Pensar assim é confundir-se quanto ao
próprio conceito da ciência que Aristóteles quer instituir, atentando contra a
universalidade que a define.
Ainda assim, é possível conceber um outro tipo de relação entre
metafísica e ciências demonstrativas. Estas últimas partem da percepção
sensível e da experiência para ascenderem à apreensão de certos princípios a
partir dos quais executam, num segundo estágio, suas demonstrações. Em meio a
esta atividade de obtenção de seus princípios próprios, durante a qual as
ciências vão adquirindo o instrumental necessário à confecção das demonstrações
que lhes concernem, certos conceitos, cuja aplicabilidade não se restringe a
este ou aquele campo do ser, são, por elas, pressupostos. Por exemplo, as
ciências particulares – na sua busca por conhecimento causal acerca daquilo de
que tratam – pressupõem que certas coisas possuem uma natureza composta; que
têm uma essência; que há singulares e universais; que o real é povoado por uma
pluralidade de coisas; que as coisas possuem certas propriedades; etc. Tais
pressuposições trazem consigo certos conceitos cuja significação precisa não
cabe às ciências particulares fornecer, já que estes conceitos
têm uma aplicação mais ampla do que as próprias ciências em questão. Os
conceitos, por exemplo, de essência, universal, uno, singular, atributo, etc.,
não se restringem a nenhum campo delimitado do ser, mas se estendem a tudo o
que é. Estes conceitos, os quais são em certa medida assumidos pelas ciências
demonstrativas, sem serem, no entanto, por elas investigados, pois que excedem o
campo de estudo destas mesmas ciências, são tratados pela metafísica, cabendo a
ela precisar a exata significação de tais termos.
É nesta medida que a metafísica deve ser considerada como estando na
base das outras ciências: ela não constitui a disciplina a partir da qual as
ciências particulares são derivadas, pois sabemos que o conceito de “ser
enquanto ser” não é identificável ao conceito de “a soma de todos os gêneros do
ser”; nem, tampouco, é ela responsável por demonstrar aquilo que as ciências particulares
não demonstram. Afirmar, portanto, que a metafísica está na base das ciências
demonstrativas e que é neste sentido que ela é dita científica – isto é,
em virtude da sua posição fundamental – consiste em sustentar que ela é
responsável pelo esclarecimento de certos conceitos pressupostos (mas não
investigados) no interior das ciências particulares. O que não quer dizer que todos
os conceitos com que lida a ciência do ser enquanto ser nasçam no interior
das ciências particulares e que ela se restrinja ao esclarecimento destes
conceitos que são pressupostos, mas não analisados, pelas ciências
particulares. Certos conceitos dos quais ela trata vêm à tona no interior da
própria atividade metafísica. Ao anunciar, em Γ, o projeto de uma nova ciência, Aristóteles
precisa – em virtude da natureza equívoca do ser – mostrar que tal projeto é
possível: que faz sentido falar em uma ciência una cujo objeto de estudo é o ser enquanto ser. Para tanto, o filósofo introduz a
distinção entre dois modos de ser: o “por si” e o “por outro”, que, por seu
turno, servirá de base para a relação “por referência a um”, por meio da qual
estabelecer-se-á o conceito de ser como intermediário entre a pura equivocidade
e a univocidade. Se, ao argumentar em favor da possibilidade do projeto de uma
única ciência relativa ao ser enquanto ser, Aristóteles, devido à natureza
fundamental desta sua empresa, já está fazendo metafísica, então se pode
sustentar que os conceitos de ser por si e ser por outro têm sua origem dentro
dessa mesma disciplina. Tal será o caso, também, com o conceito de ser
primeiro, na medida em que é ser primeiro aquilo que, fundamentalmente, é por
si.
Esta concepção segundo a qual a metafísica tem o seu estatuto de ciência
devido à posição que ela ocupa em relação às ciências particulares não implica
que a ciência do ser enquanto ser seja condição de possibilidade das outras
ciências: o cientista não depende do metafísico para desempenhar seu trabalho; pode,
em certo sentido, haver ciência sem metafísica. No entanto, a metafísica é
condição da inteligibilidade integral das ciências: sem o metafísico, o
conhecimento do cientista permanece incompleto. Na escala hierárquica do saber,
a metafísica é primordial em relação às ciências porque é ela que as faz
integralmente inteligíveis. Nesse sentido, ela é ciência – pela sua posição –,
mas uma ciência de outra ordem em relação às ciências demonstrativas. O que
quer dizer que ela não está submetida aos mesmos critérios delimitadores do
estatuto científico das ciências particulares. Tanto pelo seu conceito
distinto, quanto pela posição que ela ocupa na relação com as ciências
particulares, a metafísica não pode ter o seu estatuto de ciência compreendido
no mesmo registro em que se estabelece a cientificidade das ciências
particulares.
É preciso esclarecer o que queremos dizer ao afirmar que a metafísica
não é condição de possibilidade – mas de inteligibilidade integral – das
ciências particulares e que é nesta medida que devemos entender a posição
fundamental que ela ocupa em relação a estas. Diz-se que x é condição de
possibilidade de y quando, se x não é o caso, então y não
pode ser o caso. Como modelo para este tipo de relação, podemos
considerar aquela existente entre o princípio de
não-contradição (pnc) e o discurso
significativo. Ao pronunciar um discurso que é significativo tanto para nós
quanto para os outros, já está dada a validade do pnc: o que quer dizer que da
validade do pnc depende a significação do discurso. É assim que se sustenta que
o pnc é condição de possibilidade do discurso significativo. Tal modelo, no
entanto, não se reproduz na relação da metafísica com as ciências particulares:
do esclarecimento dos conceitos próprios ao ser enquanto ser não depende a
atividade científica, ainda que as ciências particulares só se tornem
integralmente inteligíveis uma vez esclarecidos aqueles conceitos. Nem mesmo no
caso da tarefa (própria ao metafísico, como se vê em Γ. 4) de prova dos axiomas aos quais toda
demonstração e todo discurso dotado de significado devem conformar-se, como o
próprio pnc, pode-se dizer que haja uma dependência (quanto à existência) das
ciências particulares em relação à metafísica. O cientista não está entre
aqueles que duvidam da validade do pnc e, portanto, não é para ele que
Aristóteles dedica a prova por refutação de Γ. 4. Sendo assim, o cientista não precisa
esperar uma prova da validade do pnc para, em sua atividade, argumentar de
acordo com tal princípio. O cientista não está como que imobilizado, aguardando
que o metafísico, por meio de uma prova do pnc, o retire deste seu feitiço
paralisante. É óbvio que o cientista não pode desempenhar seu trabalho se o pnc
não é válido. No entanto, é óbvio também que da atividade do metafísico não
depende a validade do pnc, mas apenas a prova da validade deste – a qual, por
sua vez, não é dedicada senão a um grupo bastante restrito de interlocutores,
dentre os quais não se inclui o cientista.
É neste sentido que sustentamos que a metafísica não é condição de
possibilidade das ciências particulares: estas últimas não têm suas existências
dependentes dela. No entanto, não é necessário que a metafísica seja condição
de possibilidade das ciências particulares para dizer que ela ocupa uma posição
fundamental em relação a estas numa escala hierárquica do saber e que é
justamente em função desta posição que ela extrai a sua cientificidade. Na
presente dissertação, buscamos defender uma tese mais modesta, de acordo com a
qual a dependência das ciências particulares em relação à metafísica diz respeito não à existência,
mas à inteligibilidade integral. Ainda que o cientista possa fazer ciência
independentemente do metafísico, é só com a atividade do metafísico que o saber
do cientista se completa. Isto porque, em meio ao seu trabalho, o cientista
pressupõe certos conceitos fundamentais cuja natureza não é, pelo próprio
cientista, investigada, na medida em que tais conceitos extrapolam os limites
das ciências particulares, pois que dizem respeito a tudo o que é enquanto é,
pertencendo, antes, ao metafísico a abordagem destes. A metafísica é ciência
porque é condição da inteligibilidade integral das ciências e, enquanto tal,
está na base das ciências. É só assim – em virtude da posição ocupada por ela e
não em razão de seu método – que compreendemos por que Aristóteles considera
que a disciplina que mais propriamente se molda ao conceito de sabedoria é, em
última análise, uma ciência.
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Fonte:
Fonte:
EDUARDO ISDRA ZÁCHIA: “A CIÊNCIA DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES”. (Dissertação
apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA. ORIENTADOR: PROF. DR. BALTHAZAR
BARBOSA FILHO). Porto Alegre, 2007.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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