O SISTEMA CORONELISTA
A tendência a enfatizar o
regionalismo e a força das oligarquias regionais faz com que seja subestimada a
dinâmica nacional, e o coronelismo seja visto como um sistema em que predomina
o coronel. Mas não é esta a definição de Leal, nem de José Murilo de Carvalho,
os quais apontam para as diferenças entre coronelismo e mandonismo: o coronel é
uma peça no sistema que se constrói através do voto e da representação.
O coronelismo foi definido por
Leal como um sistema nacional, de intermediação entre poder local e poder
central, que gera o governismo. Como aponta Antônio Octávio Cintra (1974, p.
46-9), o âmbito da análise de Leal é o país – as relações que ele se propõe a
analisar não são apreensíveis a partir dum enfoque meramente local, é
necessário analisar os mecanismos e efeitos operantes na escala maior do
sistema político. José Murilo de Carvalho enfatiza o mesmo ponto:
Nesta
concepção, o coronelismo é então, um sistema político nacional, baseado em
barganhas entre o governo e os coronéis. O governo estadual garante, para
baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo
cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a
professora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na
forma de votos. Para cima, os governadores dão seu apoio ao governo, em troca
do reconhecimento deste de seu domínio no estado. (Carvalho, 1997, p. 230)
As relações coronelistas vão
desde o coronel até o Presidente da República, o qual reconhece o domínio dos
Governadores nos estados em troca de apoio no nível federal.
É verdade que, como o próprio
Leal admite, seu interesse maior na obra era compreender o funcionamento do
sistema no nível local (Leal, 1980, pg. 12). Não perdeu de vista, contudo, que
as relações que operam no nível local são em grande parte definidas fora dele:
as normas legais e constitucionais que definem os mecanismos de representação e
de distribuição de competências e de recursos entre as esferas da federação são
decididas no nível federal, no Congresso; a distribuição de
cargos, por sua vez, depende em grande medida do Executivo federal. Assim, Leal
compreendia seu sistema nacionalmente, embora centrasse o foco nos Municípios.
É possível, porém, examinar o
mesmo sistema desde outros ângulos: as relações entre o Presidente e o
Congresso Nacional, por exemplo, podem ser entendidas como parte do sistema
coronelista, embora uma componente até hoje menos estudada.
A idéia de sistema nacional
evidentemente não significa que seus elementos tenham sido estabelecidos
deliberadamente, como um conjunto pronto; mas, antes que, para serem
compreendidos, têm de ser vistos em relação uns com os outros.
O traço que nos interessa
destacar aqui é o governismo – o sistema descrito por Leal se caracteriza
essencialmente por ser governista (Leal, Considerações Finais, p. 250; Backes,
2002). A base do sistema coronelista é o compromisso recíproco entre o poder
central e o poder local: o coronel dá ao Presidente e ao Governador apoio em
votos; em troca, recebe recursos e nomeação de autoridades. Os votos são
necessários para eleger o Executivo e o Legislativo, já que são eleições
separadas.
O resultado favorece as forças
que controlam o governo: dota-as de mecanismos com os quais eleger seus representantes
e cimentar maiorias no Legislativo. Este é o traço essencial para explicá-lo, é
ele que dá sentido ao conjunto. O acordo regionaliza a geração dos atores
legítimos, mas deixa ao Executivo a condução do Legislativo nacional. O
ponto fulcral do sistema é produzir o governismo, especialmente o apoio do
Legislativo.
A interpretação acima exposta
sobre o coronelismo como sistema é baseada em Leal e em autores que
contribuíram muito para desenvolver o conceito, estabelecendo seus principais
nexos (Cintra 1974, Cardoso 1975, Carvalho 1997). Mas cabe refletir mais sobre
seu surgimento: quais as condições que fizeram do coronelismo uma forma
peculiar, distinta de outras formas de mandonismo e clientelismo? Por que o
sistema se desenvolve com o regime republicano, como aponta Leal?
Na visão deste autor, o fenômeno
surgiu na República, da confluência de um fato político com uma conjuntura
econômica de decadência dos senhores de terra tradicionais, que vai se
aprofundando ao longo do período republicano. O fato político central, na
interpretação de José Murilo de Carvalho, seria o federalismo da Primeira
República, que propicia o surgimento de um novo ator, com amplos poderes, o
governador de estado:
O
fato político é o federalismo implantado pela República em substituição ao
centralismo imperial. O federalismo criou um novo ator político com amplos
poderes, o governador de estado. O antigo Presidente da Província, durante o
Império, era um homem de confiança do Ministério, não tinha poder próprio,
podia a qualquer momento ser removido, não tinha condições de construir suas
bases de poder na Província, à qual era, muitas vezes, alheio. (...) O
governador de estado, ao contrário, era eleito pelas máquinas dos partidos
únicos estaduais, era o chefe da política estadual. Em torno dele se
arregimentavam as oligarquias locais, das quais os coronéis eram os principais
representantes. Seu poder consolidou-se após a política dos estados implantada
por Campos Sales em 1898, quando este decidiu apoiar os candidatos eleitos pela
‘política dominante no respectivo estado’. (Carvalho, 1997, p. 230)
Sem dúvida, do ponto de vista
de Leal, o novo papel do governador do estado é um fator central da explicação.
Essa descrição, no entanto, apesar de destacar aspecto importante do sistema,
parece incompleta. Falta considerar a importância decisiva de outro ator
surgido com as novas instituições republicanas: o Presidente da República.
Embora seu papel no sistema coronelista não tenha sido desenvolvido por nenhum
dos autores, não seria incompatível com os demais elementos
arrolados, estando mesmo implícito em algumas das suposições trabalhadas.
A idéia que aqui se introduz é
que, para compreender as feições apresentadas pelo coronelismo brasileiro, é um
dado decisivo levar em conta que a República introduziu não apenas o
federalismo, mas também o presidencialismo. A separação dos poderes Executivo e
Legislativo obrigava, pelas características do sistema, que os Presidentes
tivessem que buscar mecanismos para garantir um Legislativo confiável, que lhes
permitisse governar, isto é, aprovar leis. Talvez este aspecto seja subestimado
em muitos estudos sobre o período devido ao grande poder atribuído aos
governadores, por muitos considerados os atores decisivos no período. Assim,
não é destacada, por nenhum dos autores citados, a importância do regime de
separação de poderes, nem é desenvolvida a questão, apenas sugerida, das
relações entre Executivo e Legislativo. Mas não se pode subestimar o papel do
Presidente, nem esquecer que a força das oligarquias se consolidou em um
arranjo patrocinado desde o alto: a política dos estados foi implantada por um
Presidente, Campos Sales, que precisava construir apoio no Congresso, em um
período turbulento de luta pelo poder.
É necessário por isso
considerar, além das conseqüências geradas pelo federalismo, também aquelas
associadas com a adoção do sistema presidencial.
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Fonte:
ANA LUIZA BACKES: “Fundamentos da ordem republicana: repensando o Pacto de Campos Sales”. (Tese elaborada como requisito para a obtenção do grau de Doutora em Ciência Política. ORIENTADOR: Pedro Cezar Dutra Fonseca. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA). Porto Alegre, 2004.
Fonte:
ANA LUIZA BACKES: “Fundamentos da ordem republicana: repensando o Pacto de Campos Sales”. (Tese elaborada como requisito para a obtenção do grau de Doutora em Ciência Política. ORIENTADOR: Pedro Cezar Dutra Fonseca. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA). Porto Alegre, 2004.
Nota:
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