A Perspectiva Bakhtiniana de Língua



A PERSPECTIVA BAKHTINIANA DE LÍNGUA

O teatro onde o signo funciona e tem significado não é apenas o da mente individual, mas uma área imensamente mais abrangente, o grande mar das relações interpessoais chamado o "social". Assim como peixe algum pode viver fora da água, nenhuma mente individual humana pode existir fora do oceano dos signos.

No empenho de dar conta do percurso teórico e tentar apreender a língua por sua substância e pela configuração com que se apresenta nos estudos bakhtinianos, parto da relação do sujeito com a língua, a priori indissociável. A explicitação dessa relação passará, primeiro, pelo conceito de signo que suporta o de língua concebida por sua concretude social, por isso de natureza essencialmente ideológica; depois, para falar de sujeito, preciso falar da consciência que só adquire forma a partir dos signos sociais portadores de ideologias. Chego, assim, à enunciação, realidade concreta da língua.

Reporto-me, inicialmente, ao pressuposto da indissociabilidade sujeito/língua, como está posta em Marxismo e Filosofia da Linguagem, onde, já na introdução, lê-se que para Bakhtin a língua é, como para Saussure, um fato social, cuja existência se funda nas necessidades de comunicação. Mas, enquanto Saussure se consagra ao estudo da língua como sistema abstrato, isolando sua manifestação concreta (a fala), Bakhtin valoriza justamente a fala, a enunciação, destacando sua natureza social. Estudos, a meu ver, complementares, uma vez que, como diz o próprio Saussure,

é o ponto de vista que cria o objeto; aliás, nada nos diz de antemão que uma dessas maneiras de considerar o fato em questão seja anterior ou superior às outras. [...] seja qual for a que se adote, o fenômeno lingüístico apresenta perpetuamente duas faces que se correspondem e das quais uma não vale senão pela outra.

O ponto de vista que se revela nas reflexões de Bakhtin é o de uma abordagem dinâmica e concreta da vida da linguagem. Por isso, a fala ligada às condições da comunicação e às estruturas sociais espaço de conflitos é o que interessa a esse filósofo que vê todo o signo como veículo de ideologia e esta como o reflexo das estruturas sociais. Assim, fala e estrutura social estariam de tal forma associadas que toda a modificação ideológica desencadearia uma modificação na língua. E a língua é definida como a expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e de material. O lugar da língua para Bakhtin é, assim, o lugar das relações sociais, espaço de confronto e conflitos ideológicos.

Com efeito, se a língua é determinada pela interação social, que se dá num espaço sempre ideológico, a consciência e, portanto, o pensamento, ou seja, toda a “atividade mental” (por ser condicionada pela linguagem) é modelada pelo confronto de ideologias. Assim, psiquismo (atividade mental, consciência individual) e ideologia estão em interação dialética constante. E é desse material social, de seu dinamismo dialógico língua/estrutura social que se constitui o ser (a consciência) como sujeito na relação com o outro.

Mas não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se. O signo bakhtiniano, por essa sua natureza social, é concebido como um produto ideológico. Tudo o que é ideológico integra alguma natureza material som, massa física, cor, ou outra qualquer. Para Bakhtin, um produto ideológico faz, pois, parte de uma realidade (natural ou social), mas ao contrário de um corpo físico, ele também reflete e refrata uma outra realidade que lhe é exterior, possui um significado e remete a algo fora de si mesmo. Um corpo físico, um produto de consumo qualquer, pode tornar-se signo ideológico, desde que seu valor se desloque da função que tem enquanto produto e passe a representar uma outra coisa. Ao representar essa outra coisa, um signo pode não apenas refleti-la, mas refratá-la, ou seja, distorcê-la, apreendê-la de um ponto de vista específico.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, contrariamente a outras visões culturais vigentes à época, os estudos bakhtinianos propõem como verdadeiro o estudo ideológico que se faz pelo material social particular de signos criados pelo homem, dos signos em um terreno interindividual. Clark e Holquist explicitam a natureza desses signos, quando dizem que

Bakhtin concentra-se no aspecto mundanal, sensório do signo [...] louva o neokantismo por este considerar que o traço dominante da consciência é o de "ser representação. Cada elemento da consciência representa algo, porta uma função simbólica”.

Para Bakhtin, o teatro onde o signo funciona e tem significado não é apenas o da mente individual, mas uma área imensamente mais abrangente, o grande mar das relações interpessoais chamado o "social”. Assim como peixe algum pode viver fora da água, nenhuma mente individual humana pode existir fora do oceano dos signos.

Faraco descreve bem esse terreno ideológico (da consciência) interindividual quando diz que para Bakhtin,

a consciência individual se constrói na interação e o mundo da cultura tem primazia sobre a consciência individual. Esta é entendida como tendo uma realidade semiótica, constituída dialogicamente (porque o signo é, antes de tudo, social), e se manifestando semioticamente, isto é, produzindo texto e o fazendo, no contexto da dinâmica histórica da comunicação, num duplo movimento: como réplica ao já-dito e também sob o condicionamento da réplica ainda não dita, mas já solicitada e prevista, já que Bakhtin entende o mundo da cultura como um grande e infinito diálogo.

Na concepção bakhtiniana, a consciência individual adquire, pois, forma e existência a partir dos signos criados no curso das relações e interações de grupos organizados socialmente. A consciência alimenta-se desses signos e desenvolve-se com eles. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica da interação semiótica de um grupo social. Daí a indissociabilidade sujeito /língua.

E estando o social na base da construção de todo signo, pode-se reconhecer no signo a materialização da comunicação social e uma certa supremacia da linguagem humana na função de comunicar e veicular o material ideológico. A palavra é o fenômeno ideológico por excelência; o modo mais puro e sensível da relação social. Mas a palavra sempre povoada de ideologia é, também, neutra em relação a qualquer ideologia, podendo preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa.

A palavra como signo social e instrumento da consciência acompanha e traduz todo o processo de compreensão de qualquer fenômeno ideológico. É assim que todo signo cultural compreendido e dotado de sentido encarna a consciência verbalmente constituída. E a simples interpretação de um quadro ou de uma peça musical, por exemplo, não pode prescindir do discurso interior, ou seja, dessa consciência verbalmente constituída que refletirá o conteúdo ideológico que a constituiu, determinando, de alguma forma, a própria interpretação.

Como produto de um processo social, todo o signo ideológico, e, portanto, também o signo lingüístico, é marcado pela realidade social que dá lugar à sua formação (o tema) e pelo índice social de valor que essa realidade representa em épocas e em grupos distintos. Os índices sociais de valor dos temas ideológicos chegam à consciência individual e aí eles se tornam, de certa forma, índices individuais de valor, na medida em que são absorvidos por essa consciência. Daí dizer-se que o índice de valor é por natureza interindividual.

Mas o tema assume a forma que as forças sociais determinarem. É assim que temas e formas da criação ideológica crescem junto e estão indissoluvelmente ligados. E esse processo de integração da realidade na ideologia é, sem dúvida, mais perceptível no plano da palavra.

Em relação ao uso que o locutor faz da língua, Bakhtin, diz que a consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua como um sistema de formas normativas porque tal sistema é mera abstração, produto de uma reflexão sobre a língua que não serve aos propósitos imediatos da comunicação. O locutor, de fato, serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas porque para este importa o que a forma lingüística representa e significa num dado contexto.

Na prática viva da língua, a consciência lingüística dos sujeitos falantes não tem o que fazer com a forma lingüística enquanto tal, nem com a própria língua como tal, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto de contextos possíveis de uso de cada forma particular. Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras. [...] A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. A palavra recebe uma orientação que é dada por um contexto específico.

No capítulo A Interação Verbal (Op. cit.), lê-se que não existe atividade mental sem expressão semiótica. Da mesma forma, que não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação.

Ao falar de expressão verbal passa-se para o plano da enunciação. E a enunciação dentro dos estudos bakhtinianos é vista como a realidade da língua(gem) e como tal uma réplica do diálogo social que a influencia e a condiciona. Assim, a estrutura da enunciação é uma estrutura essencialmente social: primeiro porque se produz de substância discursiva social e depois porque só se efetiva entre falantes. No próprio discurso interior (diálogo do sujeito consigo mesmo) há sempre um interlocutor, mesmo que potencial, e também nesse a substância é social.

Tentando sintetizar, dentre todos os aspectos apresentados, o mínimo essencial para a tarefa a que me propus com essas questões teóricas (apreender o conceito de língua) diria que, diferentemente do que ocorre nos estudos lingüísticos imanentistas, nos estudos bakhtinianos, a língua revela-se mais pela sua exterioridade, ou seja, pela sua indissociabilitade do social, por aquilo que representa na constituição do sujeito como consciência e como ser social na interação com o outro. A língua pensada na sua concretude é indissociável da sua natureza social. Os elementos que a compõem não são meramente os linguísticos concebidos por um processo de abstração, mas os que veiculam conteúdos ideológicos. É assim que a língua reflete e refrata a grande comunicação43 social. Enfim, a língua, na perspectiva bakhtiniana, é pensada na realidade concreta a enunciação.

E, dando novamente a palavra a Bakhtin,

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua .

Com efeito, a língua concebida por essa substância e natureza sócio-comunicativa não pode ser explicada fora de seu fluxo verbal. A comunicação verbal se entrelaça, se desenvolve, se complementa com outras formas de comunicação não-verbal, assim como pode ser complemento dessas outras formas de comunicação não-verbal. E todo esse contexto não cabe no âmbito propriamente lingüístico dos estudos, daí a necessidade que Bakhtin sentiu de definir esse outro lugar, o da metalingüística.


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Fonte:
NEIVA MARIA TEBALDI GOMES: “UM ESTUDO DAS RELAÇÕES DE (INTER)SUBJETIVIDADE PRESENTES NA ENUNCIAÇÃO ESCRITA DE PROFESSORES DE LÍNGUA MATERNA” (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras: Estudos da Linguagem. Área de concentração: Teorias do Texto e do Discurso. Orientador: Dr. Paulo Coimbra Guedes). Porto Alegre, 2003.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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