Teoria Causal do Conhecimento e Confiabilismo




TEORIA CAUSAL DO CONHECIMENTO E CONFIABILISMO

Imediatamente depois da publicação dos problemas de Gettier, Goldman (1967) oferece uma resposta que pretende dar conta dos contraexemplos em questão. A análise que Goldman propõe é de crença verdadeira causalmente relacionada com o fato que faz da proposição acreditada verdadeira. Essa parece ser uma maneira eficaz de garantir que a posse de conhecimento exclua que a crença alvo de conhecimento seja verdadeira em função da sorte. Para vermos o porquê disso, lembremo-nos de como descrevemos o caso de Edmund, que crê justificadamente que John tem um Ford, uma proposição falsa, da qual ele infere a disjunção: John tem um Ford ou Smith está em Barcelona. Essa última proposição é verdadeira, mas apenas em função da sorte. A análise causal de Goldman dá conta desse caso porque o que faz a crença disjuntiva de Edmund verdadeira é um fato com o qual Edmund não tem nenhuma relação causal – ele extrai ex nihilo a crença de que Smith está em Barcelona:

“Se [Edmund] viesse a acreditar que [John tem um Ford ou Smith está em Barcelona] ao ler uma carta de [Smith] carimbada de Barcelona, então poderíamos dizer que [Edmund] sabia que [John tem um Ford ou Smith está em Barcelona]” (1967, p. 357).

Essa é, com efeito, uma concepção apenas superficial de causalidade (ainda que satisfatória à primeira vista), e Goldman aprofunda a ideia inicial para incluir não apenas a percepção, mas a memória, o testemunho e inferências (em que as premissas acreditadas são causalmente conectadas com a crença alvo de conhecimento). Não é preciso entrarmos nesses detalhes, pois o que é importante destacar é a ruptura com a tradição epistemológica – que Goldman não deixou de notar. A sua análise tem como consequência que o conhecimento reflexivo exigido pelo internalismo, não é condição necessária para o conhecimento, pois, segundo a teoria causal, o sujeito sabe que P se sua crença de que P está causalmente relacionada com o fato que P – independente das razões que o sujeito pode vir a elencar para crer. Adicionalmente, processos causais, como as miríades de transmissões sinápticas que ocorrem em um sujeito cognoscente, obviamente não são necessariamente acessíveis através da reflexão. Goldman escreve:

Sem dúvida, nós às vezes sabemos que as pessoas sabem certas proposições, pois nós às vezes sabemos que as suas crenças são causalmente conectadas (de um modo apropriado) com os fatos acreditados. Por outro lado, frequentemente pode ser difícil ou até mesmo impossível descobrir se essa condição está satisfeita para uma dada proposição ou para uma dada pessoa. Por exemplo, pode ser difícil para que eu descubra se realmente me lembro de certo fato do qual eu pareço me lembrar. As dificuldades existentes para descobrir se alguém sabe dada proposição não constituem dificuldades para a minha análise, contudo (ibid., 372).

Isto é, a adequação da análise causal independe de um eventual resultado negativo para o projeto reflexivo de, nos termos de Goldman, descobrir que sabemos dada proposição.

Isto é, mesmo que o projeto de descobrir que sabemos seja inconclusivo, e que com isso não possamos identificar as conexões causais supostamente relevantes para o conhecimento, as crenças verdadeiras com a relação causal adequada aos fatos que fazem delas verdadeiras não deixariam de resultar em conhecimento. O resultado segundo o qual o conhecimento reflexivo, o “descobrir se alguém sabe”, nas palavras de Goldman, não é condição necessária para a posse de conhecimento de primeira ordem é genuinamente externalista.

Como o próprio Goldman mostrou cerca de uma década mais tarde, no entanto, a teoria causal é essencialmente falha: ela não é capaz de explicar certos casos em que o sujeito tem uma crença verdadeira que obviamente não é conhecimento, mesmo que nesses casos haja uma relação causal entre a crença e o fato que faz dela verdadeira (além de ser uma explicação no mínimo nebulosa de como adquirimos conhecimento matemático e ético, se há verdades da ética). Depois disso, a teoria causal tornou-se uma curiosidade histórica – mas não podemos deixar de notar a intuição externalista de que a propriedade distintiva de estados de conhecimento é uma relação irrefletida entre crença e verdade. Vamos, então, ao contraexemplo apresentado por Goldman (1976), que serve para promover a famosa análise confiabilista de processo:

Imaginemos que Celeste está dirigindo pelo interior e sem saber ela entra no condado dos celeiros falsos, um condado em que a grande maioria dos celeiros é apenas uma fachada que simula perfeitamente um celeiro, como nos cenários hollywoodianos, sem poder servir como um. Para cada 999 celeiros falsos, há, contudo, um celeiro real que Celeste por acaso se encontra de estar olhando logo após ter entrado no condado dos celeiros falsos. Ela o vê (em boas condições de percepção) e acredita que tem diante de si um belo exemplar de celeiro real. Sua crença é verdadeira, mas, diz Goldman “se o objeto fosse um fac-símile, [Celeste] o teria confundido com um celeiro” (1976, p. 773).

Certamente há algo de errado com a situação epistêmica de Celeste: embora sua crença de que há um celeiro diante de si seja verdadeira e causalmente relacionada com o fato que faz dela verdadeira, nossas intuições aqui tendem a dizer que ela não possui conhecimento. Ademais, contra o internalismo, podemos dizer que ela dispõe de boas razões e evidências – sua vista não é prejudicada pela distância, e, em circunstâncias normais, nada de reflexivamente acessível ofereceria garantias melhores para a crença verdadeira de que há um celeiro diante de si. No entanto, dada a maneira como descrevemos o caso, ela não sabe que ali há um celeiro. Notemos, principalmente, que algo de externo à crença de Celeste, que não o seu valor de verdade, parece privá-la de garantia epistêmica. O diagnóstico de Goldman é de que, naquelas circunstâncias, o exercício de um processo subjetivo de reconhecimento de celeiros não é confiável. Como vamos entender o conceito chave de confiabilidade aqui? Diz Goldman:

Rudemente, um mecanismo ou processo cognitivo é confiável se ele não apenas produz crenças verdadeiras nas circunstâncias atuais, mas produziria crenças verdadeiras, ou ao menos inibiria crenças falsas, em situações contrafactuais relevantes. (ibid.: 771)

O que há de errado, pois, na situação epistêmica de Celeste é que, nas circunstâncias imaginadas, o processo pelo qual ela formou sua crença facilmente resultaria em uma crença falsa, embora atualmente resulte em uma crença verdadeira. O confiabilismo de processo – que recebe esse nome porque enfatiza o processo pelo qual a crença é formada – pretende explicitamente acomodar a nossa intuição inicial de que conhecimento exclui crença verdadeira em função da sorte, caracterizando-se, como é frequentemente dito na literatura pós-Gettier, como uma epistemologia anti-sorte. Novamente: nós interpretamos a ideia de que a verdade de uma crença é devida à sorte de acordo com uma noção modal: em circunstâncias semelhantes, mas diferentes das atuais nos aspectos relevantes, a crença seria falsa. No caso de Celeste, em circunstâncias semelhantes, como naquelas em que ela dirigiu algumas centenas de metros até o próximo celeiro, sua crença facilmente seria falsa. A definição de confiabilidade de um processo de formação de crença visa eliminar precisamente ocorrências desse tipo ao fazer menção às circunstâncias em que o processo de formação de crença é exercido – esses são fatores externos que determinam a posse da garantia epistêmica que, em conjunção com uma crença verdadeira, confere conhecimento ao sujeito de acordo com o confiabilismo. É isso que caracteriza o confiabilismo como uma noção externalista conhecimento, dispensando inteiramente o acesso reflexivo como uma condição de posse de conhecimento. O que caracteriza estados de conhecimento, então, é uma relação de covariância entre crença e verdade que é garantida pelo processo através do qual a crença foi obtida. Desnecessário dizer, o confiabilista não exclui inferências indutivas e dedutivas do conjunto de processos confiáveis de obtenção de crença, pois, na medida em que aquelas transmitem a verdade, são modos de garantir que crença e verdade estejam alinhadas. O que não é necessário é que o sujeito saiba que é um processo confiável que garante essa covariância.

Para tornar essas observações mais claras, imaginemos um caso parecido com o de Celeste, mas em que a proporção seja de 999 celeiros reais para um falso (no condado do celeiro falso): se ela formasse a crença verdadeira de que tem diante de si um belo celeiro real através dos mesmos processos subjetivos de formação de crença exercidos no cenário original, nestas circunstâncias, o processo seria confiável, porque produziria crenças verdadeiras em situações contrafactuais – digamos, nas situações em que ela dirigisse por mais algumas centenas de metros até que encontrasse outro celeiro e formasse uma crença também verdadeira. Isso significa que, se as coisas fossem diferentes, a crença do sujeito teria acompanhado essas diferenças. No caso do condado do celeiro falso, o indivíduo continuaria a crer verdadeiramente, no caso original de Celeste, contudo, ela acreditaria falsamente em circunstâncias alternativas.

O que devemos destacar, então, é uma forte intuição modal presente no confiabilismo de processos – o que Goldman não deixou de perceber (Cf. 1976, p. 771). Com efeito, a própria noção de confiabilidade é uma noção modal: dizemos que algo é confiável, porque em algumas situações diferentes o resultado seria o esperado (por exemplo, um relógio é confiável se ele nos dá o horário certo, independente do horário em que o conferimos). Assim sendo, o confiabilismo incorpora uma condicional contrafactual com a restrição do processo de obtenção de crença. Nós fixamos esse processo no cenário em que a história é contada, e, por simplificação, chamamos esse cenário de mundo atual. Por exemplo, Celeste atualmente (no cenário em que descrevemos) forma a crença verdadeira de que há um belo celeiro no campo à sua frente pelo mesmo processo que levamos em conta na formação de uma crença semelhante em uma situação alternativa. De acordo com o confiabilismo, então, um sujeito S sabe que P se satisfaz a seguinte condicional contrafactual confiabilista:

(CCC) Se P fosse falso, S não acreditaria que P através do processo pelo qual atualmente acredita que P.

Com (CCC) temos uma interpretação modal do insight confiabilista. A ideia aqui é que, se a crença de S foi obtida por um processo confiável, ela o permite discriminar as situações em que P é o caso de situações alternativas em que P é falsa. Naturalmente, não é qualquer alternativa que um processo confiável permite excluir – e aqui podemos dar sentido à expressão que Dretske (1970) fez famosa, a noção de “alternativas relevantes”. Um relógio que é confiável porque nos dá o horário certo não tem a sua confiabilidade prejudicada porque não oferecia o mesmo resultado se estivesse em um ambiente com muita pressão, como no fundo do oceano. Essa seria uma alternativa (porque é diferente da situação atual) irrelevante (porque não influencia a confiabilidade do relógio). Semelhantemente, nossos processos perceptivos, por exemplo, não nos permitem excluir as alternativas de que somos cérebros encubados ou vítimas de um Gênio Maligno, pois, nesses cenários, os mesmos processos de que atualmente dispomos gerariam crenças falsas. Isso não faz, no entanto, com que a nossa percepção não seja um processo confiável em circunstâncias normais, porque a situação contrafactual descrita nos cenários céticos não é relevante, não, pelo menos, nos nossos inquéritos epistêmicos de dia-a-dia. Isso é claro: no caso de Celeste e os celeiros falsos, nós somos introduzidos à possibilidade de que sua crença tivesse sido falsa pela descrição do cenário. Assim, naquelas circunstâncias, o processo pelo qual ela obteve a crença „há um belo exemplar de celeiro aqui‟ não exclui a alternativa relevante de que o celeiro que ela observa poderia ser falso – e aqui ela falha em ter conhecimento, pois continuaria a crer mesmo que sua crença tivesse sido falsa. Isto é, ela não satisfaz (CCC).

A intuição anti-sorte oferecida pelo confiabilismo é uma boa estratégia para lidar com casos de Gettier, pois ela atesta que os sujeitos continuariam a crer falsamente dadas as alternativas relevantes que seus processos de obtenção de crença não permitem excluir. Por exemplo, Edmund crê verdadeiramente que John tem um Ford ou Smith está em Barcelona. O processo cujo resultado é essa crença não exclui as alternativas relevantes de que Smith poderia estar em Valência ou em Pamplona – e então facilmente a crença de Edmund seria falsa, pois não satisfaz o (CCC). Isso sendo dito, podemos avançar para as objeções ao confiabilismo.

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Fonte:
GIOVANNI ROLLA: “Conceitos de Conhecimento no Debate Contemporâneo: Internalismo e Externalismo”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Eros Moreira de Carvalho. Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Filosofia).  Porto Alegre, 2013.


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Imagem:
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