A TEORIA DO JUÍZO DE SCHOPENHAUER
Schopenhauer
defende uma tese diametralmente antagônica à concepção de juízo de Kant,
necessária para a Dedução Metafísica, acima apresentada. Mas isso se
deve à teoria geral das faculdades do sistema de Schopenhauer, exposta no
capítulo 2, a qual estabelece um relacionamento distinto daquele que Kant
concebera entre faculdades cognitivas e seus respectivos produtos. Para
Schopenhauer, tanto juízos relacionam somente conceitos, como a percepção se dá
sem o concurso de nenhuma faculdade ou representação discursiva. Essa tese trará dificuldades
para explicar como podemos fazer juízos empíricos, como veremos na última seção
deste capítulo. Mas já adiantamos que a saída será apelar para a tese da gênese
dos conceitos em um processo de abstração, os quais serão os mediadores entre
os diferentes domínios. Assim, embora nenhuma função da faculdade discursiva
possa atuar na intuição, os conceitos eles mesmos fazem a mediação entre o que
é pensado e a realidade.
Nós
nos ocuparemos agora de apresentar a concepção de juízo de Schopenhauer,
incompatível com a teoria do juízo de Kant delineada acima (comprometida com a
possibilidade da cooperação entre faculdades, isto é, com a possibilidade de
atuação da função lógica dos juízos no múltiplo da intuição), destacando os
aspectos anti-kantianos. Teremos no horizonte a revisão da Tábua do Juízo
realizada por Schopenhauer no texto Crítica da Filosofia Kantiana (SW,
I, 609-34); revisão essa que consiste em indicar a “correta” fonte em nossas
faculdades cognitivas das formas do juízo de Kant, as quais, “no todo, em si
mesmas, estão corretas”, isto é, o desacordo de Schopenhauer diz respeito
essencialmente à origem que as formas do juízo têm em nossas faculdades
cognitivas e ao uso que o autor da Crítica fez delas: a derivação da Tábua
das Categorias. É importante ressaltar que Schopenhauer concebe o
entendimento (Verstand) e a razão (Vernunft) de maneira diferente da kantiana,
o que jogará um importante papel na sua revisão da Tábua do Juízo, que
agora analisaremos. Quanto a isso, podemos dizer que a função do entendimento –
na teoria de Schopenhauer – já foi tratada anteriormente204: é a faculdade
perceptiva. Cuidaremos agora, então, de apresentar como a faculdade discursiva,
a razão, opera.
A
razão opera somente com conceitos, são todos abstratos e empíricos, pois
oriundos de um processo de abstração. Schopenhauer, ao contrário de Kant, se
compromete com uma teoria da gênese de conceitos. Esse processo, concisamente
descrito, transcorre da seguinte maneira: das
representações intuitivas (anschaulische Vorstellungen) é retirada toda determinação
particular: esta ou aquela determinação espaço-temporal. As representações
abstratas (abstrakte Vorstellungen), geradas através desse processo, possuem
como característica distintiva generalidade e universalidade. (SW, III, §27:
124-5). Essa aptidão de lidar com conceitos abstratos é tomada como uma
capacidade dos seres humanos; fato este, aliás, que nos diferencia
especificamente como animais capazes de fala e riso. Essas representações
abstratas são consideradas, ainda, de modo muito semelhante a Locke, uma
facilitação da comunicação. Pois bem, embora esse tipo de representação faculte
aos homens diferentes usos,
será o juízo, o uso próprio desse tipo de representação, isto é, a aptidão para
o juízo é a mais fundamental dentre as aptidões próprias do homem. Vejamos,
então, como será compreendido o ato de julgar:
(...)[C]ada conceito
tem aquilo que chamamos de uma extensão ou esfera, até mesmo no caso em que só
existe um único objeto real que o instancia, simplesmente porque eles são
abstratos, não-intuitivos e, por isso, não são representações completamente
determinadas. Agora, acabamos por perceber que, em geral, a esfera de cada
conceito tem algo comum com a esfera de outro, isto é, na parte de um conceito
é pensado aquilo que é pensado em outro e vice-versa; no entanto, se eles são de fato conceitos
diferentes, cada um deles, ou, pelo menos, um dos dois contém algo que o outro
não tem: nesta relação situa-se cada sujeito para o seu predicado. Reconhecer
(erkennen) esta relação (Verhältniss) chama-se julgar (urteilen).(SW, I, 81-2)
O
juízo é entendido como um reconhecimento de uma relação entre as esferas de
conceitos, os quais, por definição, possuiriam extensão. Assim, todo conceito
possui uma extensão e todas as formas do juízo são modos diferentes de
relacionar o que está na extensão dos conceitos.
É
importante notar como a definição de conceito joga um papel importante na
teoria do juízo de Schopenhauer e como esta é compreendida de acordo com a sua
teoria geral das faculdades. Como vimos, cada classe de representações possui
seu correlato, que é uma faculdade cognitiva, e vice-versa. Os conceitos
formam uma classe de representações cujo correlato é a razão. De modo que todas
as funções discursivas e operações lógicas, passíveis de serem realizadas no
domínio da classe de representações, da qual os conceitos fazem parte, precisam
ser derivadas de um conjunto de determinações, cognoscível a priori, entendido
como tendo sede na razão.
Schopenhauer
desenvolve uma maneira ilustrativa de representar a relação judicativa através
de figuras, a qual é tida como uma aprimoração dos métodos já usados por Ploucquet,
Lambert e Euler. Apresentamos a ilustração do juízo: “Todos os cavalos são
animais”.
Schopenhauer
apresenta, aliás, modelos ilustrativos para todas as formas do juízo e sugere
que a tábua do juízo de Kant poderia ser expressa através desses modelos (SW,
I, 82-3). Consideraremos agora, algumas diferenças em relação à concepção de
juízo de Kant, tendo como desafio principal, sustentar a concepção de juízo de
Schopenhauer, de acordo com a sua teoria geral das faculdades, que
impossibilita conceber a cooperação entre faculdades cognitivas defendida por
Kant em sua Lógica Transcendental. Preliminarmente, podemos constatar,
em uma mera comparação das duas concepções de juízo, que o fato de conceber
conceitos como essencialmente abstratos já impede ipso facto que possa
haver algo como conceitos a priori, pois todo conceito depende, nessa
perspectiva, que algo tenha sido intuído. Somando-se com a tese da
impossibilidade da cooperação entre faculdades, o sistema de Schopenhauer não
tem lugar para as categorias, que, por definição, são conceitos a priori
que determinam um múltiplo dado à sensibilidade..Consideradas essas diferenças,
prosseguimos a examinar o modo como Schopenhauer substitui a tábua kantiana
através de uma derivação de todas as formas do juízo da noção de conceito
abstrato em geral. O que será, igualmente, um exame da concepção de juízo de
Schopenhauer, extremamente vinculada com a sua teoria geral das faculdades:
Todo o conhecimento reflexivo, ou a
razão, tem apenas uma forma principal e esta é o conceito abstrato: ela é a
própria razão mesma e não tem imediatamente nenhuma conexão (Zusammenhang)
necessária com o mundo intuitivo. (SW, I, 612)
É
preciso ressaltar que “aquilo que não tem nenhuma relação necessária com o
mundo intuitivo” é somente a forma (Form) dos conceitos abstratos,
enquanto o conteúdo (Inhalt) depende completamente do que é intuído.
Ora, justamente através dessa propriedade essencial dos conceitos, ter
conteúdo, se dá um relacionamento entre intuições e conceitos, a saber: a própria gênese dos
conceitos. Mas é importante perceber que aquilo que é próprio dos conceitos em
geral não é oriundo do processo abstrativo, pois esse processo contribui apenas
para o que acaba constituindo o conteúdo dos conceitos; o que é próprio
da forma dos conceitos é responsabilidade da razão, o que é , como mostramos
acima, uma consequência da teoria das faculdades de Schopenhauer, que defende
uma correlação necessária entre faculdade e produto cognitivo e a função da
faculdade é a de justamente instaurar a forma de seu produto. (SW, I, 614)
É
importante lembrar que Kant utiliza a forma do juízo para determinar o modo
como a realidade é apreendida e é apenas isto que estamos entendendo pela
cooperação entre faculdades presente em Kant e incompatível com o sistema de
Schopenhauer: o fato de as formas do conhecimento empírico, sensível, serem
determinadas pela faculdade discursiva. Por outro lado, não resta dúvida que
qualquer sistema filosófico que se comprometa com uma distinção específica dos
modos de conhecimento precisa relacionar de algum modo representações de
naturezas distintas, pois, do contrário, não seriam possíveis juízos sobre as
coisas, por exemplo, cujo acesso epistêmico, no sistema de Schopenhauer, se dá
através de uma faculdade de natureza distinta da faculdade de conceitos. Assim,
o sistema de Schopenhauer enfrenta uma grande dificuldade para explicar esse
fato indiscutível de que falamos sobre o mundo, ou: fazemos juízos sobre as
coisas (o que ele chama de juízos com “verdade empírica”), e manter a tese da
sua teoria das faculdades incompatível com a atuação de uma faculdade cognitiva
fora de seu respectivo domínio. Adiante analisaremos como o sistema de
Schopenhauer lida com esse problema, ao examinarmos o modo como Schopenhauer se
pronuncia a respeito dos juízos singulares (einzelne Urteile) de Kant, após
examinarmos os aspectos mais gerais do modo como Schopenhauer compreende as
formas do juízo de Kant, presentes em sua Tábua do Juízo.
Pois
bem, Schopenhauer se incumbe da tarefa de mostrar como seu sistema filosófico
explica a Tábua do Juízo de Kant. Como adiantamos acima, Schopenhauer
considera a tábua em si mesma correta, isto é, aquilo que ela distingue e
classifica, deve, de fato, ser distinguido e classificado por um sistema
filosófico, e Kant o faz corretamente. No entanto, de acordo com Schopenhauer,
o modo como Kant explicou a tábua não está correto e o erro decorre,
fundamentalmente, do fato que Kant não tem uma teoria das faculdades correta.
Schopenhauer indica como, a partir de seu próprio sistema, as formas do juízo
devem ser estabelecidas:
“A ligação de conceitos no ato de julgar tem certas e determinadas formas
regulares, as quais, descobertas por indução, constituem a tábua dos juízos”.(SW,
I, 612)
No sistema
de Schopenhauer, essas maneiras diferentes de se combinar conceitos em juízos
se chamam leis do pensamento e algo que diferencia o seu sistema de Kant é que
nem todas as formas do juízo presentes na Tábua dos Juízos de Kant serão
explicadas por leis do pensamento, pois parte da tábua dos juízos ficará a
cargo da faculdade intuitiva: o entendimento; como é o caso de todas as formas
do juízo que se reúnem sob o título da modalidade. A segunda tese distintiva, a
mais problemática para o sistema de Schopenhauer, diz respeito à interação dos
domínios das representações intuitivas e discursivas: momento no qual
entendimento e razão precisarão cooperar. Um exame detalhado do modo como se
explica o que Kant chamava juízos singulares, que gera dificuldades evidentes
para o sistema de Schopenhauer, faremos na última seção deste capítulo; ocasião
em que examinaremos como se dá a geração de conceitos.
A correta
determinação do que são as formas do juízo, segundo Schopenhauer, são modos de
combinar conceitos, unicamente; suas críticas a Kant, em geral, consistirão em
acusações de um arranjo arbitrário dos títulos, onde as formas subsumidas a
eles não obedeceriam a um “critério plausível”, mas ao afã por simetria
arquitetônica: Kant teria organizado a Tábua dos Juízos da maneira como
o fez para delas derivar formas de apreensão da realidade empírica, isto é, as
categorias. (SW, I, 612)
A forma do
juízo por excelência se expressa no juízo categórico, pois “julgar significa
simplesmente pensar a ligação ou a incompatibilidade (Unvereinbarkeit) das
esferas de conceitos”. O juízo categórico expressa, aliás, a “maneira de
se relacionar conceitos: a intersecção e a completa separação da esfera de
conceitos”. De modo que as formas kantianas de “afirmação” e “negação”, seriam
sub-espécies de juízos categóricos, as quais Kant colocou sob o título
“qualidade”: a combinação entre as esferas de conceitos pode ser afirmada ou negada.
Prosseguindo em sua revisão da Tábua do Juízo, Schopenhauer afirma que à
natureza dos conceitos é próprio não somente ser pensada a ligação de suas
esferas afirmativamente, ou negativamente, mas que o pensar a pertinência, ou
não, da ligação das esferas dos conceitos (afirmar ou negar) varia conforme as
partes da esfera dos conceitos que estão ligadas: “a intersecção e separação
das esferas pode se dar completamente ou só parcialmente”. Assim, o que Kant
reuniu sob o título “quantidade” seria uma sub-espécie dos atos de pensar a
intersecção ou separação de esferas de conceitos, ou seja: para Schopenhauer a
tábua dos juízos deveria ter como forma suprema o juízo categórico, a qual
teria como sub-espécie o que Kant reuniu sob o título de “qualidade”, a qual,
por sua vez, teria como sub-espécie o que Kant chamou de “quantidade”. (SW, I,
615-6)
Kant teria,
então, disposto os títulos da tábua de maneira questionável, pois ainda teria
colocado sob o título “relação” juízos hipotéticos, disjuntivos e categóricos,
quando os hipotéticos e disjuntivos só se aplicariam a juízos prontos, não
alterando a combinação já estabelecida entre os conceitos, que é a própria
forma categórica; as formas hipotética e disjuntiva não atuariam, portanto, em
conceitos, propriamente. (SW, I, 616)
Assim, a
forma categórica do juízo seria a forma suprema, não pertencendo ao gênero
“relação”. Aliás, o arranjo kantiano das formas do juízo da maneira que se deu,
sob este título, é ainda acusado de agrupar o que é muito diverso e separar o
que é semelhante, sugerindo que a maneira de ordenação das formas do juízo não
teria sido adequadamente executada, pois tinha em vista a Tábua das
Categorias e a Analítica dos princípios, onde as noções de substância,
matéria e causa se articulam de modo peculiar. (SW, I, 614, 616)
O modo como
Schopenhauer revisa e re-significa a forma hipotética do juízo demanda uma
compreensão do papel das verdades metalógicas em sua teoria do juízo, enquanto
“leis do pensamento”, inerentes à razão e à natureza dos conceitos enquanto
tais:
A natureza dos
conceitos abstratos, a qual é justamente a essência da razão ela mesma,
objetivamente considerada, traz consigo mesma a possibilidade de unir e separar
suas esferas e, nesta possibilidade, como seu pressuposto, fundamentam-se as
leis gerais do pensamento da identidade e da contradição, as quais, por
surgirem puramente da razão e não poderem ser explicadas através de algo
distinto, são consideradas por mim verdade metalógica. (SW, I, 614)
Então:
“as formas do juízo inerentes à razão são nada mais do que maneiras distintas
de combinar as esferas dos conceitos”. Muito bem, a forma hipotética do juízo
de Kant não é tida, como as outras, como uma combinação de conceitos. Esta, de
acordo com Schopenhauer, seria uma expressão da forma do conhecimento em geral:
o Princípio de Razão Suficiente. Diferentemente de Kant, portanto, que deriva o
princípio de causalidade da forma hipotética do juízo, Schopenhauer deriva
ambos os princípios de uma fonte geral do conhecimento humano, a qual não seria
própria a nenhuma faculdade em especial, mas comum a todas. O Princípio de
Razão Suficiente adquire, então, na razão, a forma do Princípio de Razão
Suficiente do Conhecimento (Satz vom zureichenden Erkenntnissgründe), o qual
consiste, basicamente, em condicionar a concessão “do predicado verdadeiro” aos
juízos, à efetividade de sua relação com algo diferente do juízo. Esse “algo
diferente do juízo” é algo que se relaciona diretamente com a origem do
conceito e com o modo de combinação proposta pelo juízo em questão. (SW, III,
129; PRS §29) Uma vez que Schopenhauer concebe diferentes modos de conhecer e,
portanto, diferentes fontes de geração de conceitos, teremos diferentes tipos
de “juízos verdadeiros”, os quais são classificados quanto à origem dos
conceitos envolvidos nos juízos em questão. Assim, teremos juízos de verdade
lógica, verdade empírica, verdade transcendental e verdade
metalógica.(SW, III, 129-134)
Podemos
afirmar, portanto, que Schopenhauer está comprometido com uma espécie de teoria
da verdade por correspondência porque a determinação da verdade ou falsidade de
um juízo é sempre buscada em uma outra instância. Instância essa, sempre
distinta do juízo, que varia sempre em relação à gênese do conceito: se o conceito
é oriundo de uma representação intuitiva, verifica-se no mundo, isto é, nas
representações intuitivas, se a relação proposta pela relação de conceitos nele
afirmada, ou negada, se dá e, então, determina-se a verdade ou falsidade do
juízo; a estes juízos é dado o nome de verdade empírica (Empirische
Wahrheit). Os juízos de verdade transcendental (Transzendentale
Wahrheit) são aqueles em que os conceitos combinados fazem referência a
intuições puras a priori e a determinação da verdade desses juízos se dá
de maneira análoga aos de verdade empírica, com uma diferença: a pertinência ou
não da ligação dos conceitos não é determinada através de uma comparação com o
mundo, isto é, com as intuições empíricas, mas com intuições puras. Os juízos
de verdade lógica (Logische Wahrheit) apresentam como justificativa da
ligação dos conceitos neles combinados outro juízo, podendo se estender
por uma longa cadeia de juízos. Por fim, os juízos de verdade metalógica
(Metalogische Wahrheit) são os juízos cuja ligação dos conceitos se funda
unicamente nas regras do pensamento. (dos quais trataremos melhor após
oferecermos exemplos para todos os demais)
Apresento
exemplos: “O sol é amarelo”: Trata-se de uma relação de dois conceitos: “ser
sol” e “ser amarelo”. O conceito de “sol” é um caso importante, pois parece
contradizer a tese que todo conceito é universal, mas percebemos naquela
citação que fizemos onde introduzimos a definição de juízo, como podemos
entender o conceito de “sol” não como um conceito particular, mas simplesmente
um conceito que possui apenas um objeto em sua extensão. Muito bem, a
determinação da verdade do juízo se dará através de uma comparação com as
representações intuitivas, isto é, com o mundo. Isso é assim, pois se
analisarmos a origem de cada um dos conceitos que compõem o juízo, veremos que
é o caso de conceitos que têm origem nas representações intuitivas. Se a
ligação proposta pelos conceitos no juízo corresponder à ligação presente nas
representações intuitivas correspondentes, o juízo será verdadeiro então a ele
será conferida verdade empírica.
“O
triângulo possui três lados”: A verdade deste juízo é determinada por uma
intuição pura a priori do espaço. Assim, possui verdade transcendental.
A
noção de verdade metalógica, que suscitou o desenvolvimento do papel que
o princípio de razão suficiente adquire na razão, possui um vínculo forte com a
maneira como as formas do juízo de Kant se acomodam no sistema de Schopenhauer,
pois todas as “leis do pensamento” terão verdade metalógica, mas nem toda
verdade metalógica é uma lei do pensamento: o princípio de razão do
conhecimento, do qual brota a noção de verdade, como vimos, é um caso de um
princípio de verdade metalógica que não consiste em um modo peculiar de
combinar conceitos, inerentes à natureza da razão mesma e do conceito abstrato.
Vejamos, então, a
lista completa dessas “leis do pensamento” com as quais Schopenhauer se
compromete e suas definições:
Princípio de Identidade, de
contradição, do terceiro excluído e de razão suficiente do conhecimento. (Satz
vom zureichenden Erkenntniss-gründe).(SW, I, §10: 91-4)
Respectivamente:
1. Um sujeito é igual
à soma de seus predicados ou a = a. 2. Um predicado não pode conjuntamente
(zugleich) ser atribuído e negado de um sujeito ou a = - a = 0. 3. De cada par
de predicados opostos e contraditórios um precisa pertencer a cada sujeito. 4.
A verdade é a relação de um juízo com algo externo a ele que é sua razão
suficiente.226 (SW, III, 133; PRS, §33)
O princípio
de razão suficiente do conhecimento é um juízo de verdade metalógica não porque
ele expressa um modo peculiar de se combinar conceitos, como os demais, mas
porque é o princípio supremo de toda explicação: condição de possibilidade da
atribuição de verdade a juízos. Trata-se de um princípio auto-evidente, pois
ele mesmo impõe as condições para que um juízo possa ser verdadeiro; ao
exigirmos uma razão para sua verdade, já supomos que ele seja verdadeiro. (SW,
III, 37-8)
Assim,
apesar de Schopenhauer manifestar críticas ao modo como Kant teria disposto os
títulos da Tábua do Juízo e, ao fazer isso, esboçar uma espécie de
reformulação da tábua, o sistema de Schopenhauer não contará com um substituo
direto da tábua de Kant, que expresse as diferentes formas do juízo. Teremos,
porém, algo análogo: essa lista de “verdades metalógicas” que consiste em leis
do pensamento, inerentes à razão ela mesma e que se relacionam com os
diferentes modos de se combinar conceitos, exceto pelo quarta lei que é a
exigência de um terceiro elemento para a determinação da verdade de juízos.
A possibilidade de combinar as esferas dos conceitos de acordo com essas leis
do pensamento substitui a tábua lógica do juízo de Kant, e dá conta das
diferentes formas de julgar inerentes à faculdade discursiva, que diferencia os
homens dos animais. Deste modo, não encontramos uma nova Tábua do Juízo porque
Schopenhauer não procura demonstrar a validade objetiva dos princípios
da experiência através das regras do julgar. como fez Kant, que estabelece a Tábua
das Categorias a partir da Tábua do Juízo para depois
mostrar que é através desses conceitos puros do entendimento que a experiência
é possível. (Cf. §19 da CRP)
Portanto,
muitas das noções que Kant derivou da forma do juízo precisam de outra origem,
como é o caso de substância e acidente, que serão derivadas da categoria intuitiva da
causalidade e que, como em Kant, serão noções muito ligadas à noção de matéria.
Deixando o mundo intuitivo em sua autonomia intuitiva, como um reflexo de sua
teoria das faculdades, Schopenhauer apresenta sua Tábua de Predicáveis a
priori (Tafel der praedicabilia a priori) que contém vinte e oito
juízos sintéticos a priori formulados a partir de cada uma das noções inerentes
a toda experiência: tempo, espaço e matéria (correlato pressuposto da
causalidade). No total são oitenta e quatro juízos sintéticos a priori, os
quais são os candidatos a substituir aqueles de que se ocupa a Analítica dos
Princípios. Assim, se não temos uma nova tábua do juízo, nem uma tábua das
categorias, temos uma outra tábua, mais vasta, que difere da kantiana, como já
a qualificamos, quanto à origem em nossas faculdades cognitivas. (SW, II,
66-70)
Agora,
apenas para completarmos nossa exposição da revisão da tábua dos juízos
promovida por Schopenhauer, apresentaremos sucintamente o modo com o qual
Schopenhauer se pronuncia a respeito das formas de juízos agrupadas sob os títulos
da relação e da modalidade.
A
derivação da categoria da ação recíproca da forma disjuntiva do juízo é
rejeitada, pois o análogo lógico da ação recíproca seria o circulo vicioso e
como isso é algo logicamente impossível, o mesmo se daria na experiência, isto
é, não há tal coisa como ação recíproca. Na tentativa de corroborar essa tese,
Schopenhauer desenvolve a sua concepção de causalidade e pretende assim
mostrar, por outra via, que não há tal coisa como ação recíproca, pois toda
causa é anterior ao efeito. (SW, I, 617- 23)
No
caso das formas do juízo da modalidade, temos o maior acordo entre Kant e
Schopenhauer, pois as formas e os títulos das categorias serão mantidos,
mudando, no entanto, a fonte primeira e o estatuto; se em Kant as formas problemática,
assertórica e apodítica dos juízos dão origem às categorias da possibilidade,
existência e necessidade e suas respectivas negações, temos em Schopenhauer uma
inversão: a própria experiência contém as noções modais, pois ela mesma está
sempre sujeita ao princípio de razão suficiente. Assim, Schopenhauer não terá
algo como categorias modais, que moldam a experiência, mas modos de
apreender a realidade de acordo com o princípio de razão suficiente, os quais
podem ser entendidos como substitutos das categorias modais kantianas. (SW, I,
623-34)
As razões
apresentadas por Schopenhauer para a recusa da derivação das formas do juízo
para as categorias são em alguns casos mais detalhadas e cuidadosas e, em
outros, permanecem apenas com o seu argumento geral de que as formas do juízo,
ou, de acordo com a terminologia de seu sistema, as leis do pensamento, são
próprias ao conhecimento discursivo e que delas não podem, por isso, ser
derivadas condições de possibilidade da experiência; a razão para essa recusa é
tese de sua teoria das faculdades que impede que a forma de um tipo de cognição
seja produzida por mais de uma faculdade cognitiva. No caso dos juízos da
quantidade, por exemplo, Schopenhauer não é muito prolixo e apenas comenta que
Kant, das sutis operações peculiares à riqueza da linguagem, que se diferenciam
através das expressões “todos” e “alguns”, deriva categorias que determinam o
modo como a experiência é apreendida. Comentário esse fundamentado na tese de
seu sistema segundo a qual a linguagem e o uso de conceitos fazem parte de um
domínio heterogêneo ao do conhecimento empírico e, por isso, a forma do juízo
não pode ser usada para determinar o modo como objetos da experiência são
apreendidos. De acordo com o sistema de Schopenhauer, de resto, o domínio do
conhecimento discursivo é que é dependente do conhecimento intuitivo; o
conteúdo de cada conceito é derivado da intuição da qual ele foi abstraído em
sua gênese. Disso trataremos na secção seguinte.
---
Fonte:
ALEXANDRE TELES: “O SISTEMA DE FILOSOFIA TRANSCENDENTAL DE SCHOPENHAUER: Uma Interpretação e Defesa”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Paulo Franscisco Estrella Faria). Porto Alegre, 2009.
Fonte:
ALEXANDRE TELES: “O SISTEMA DE FILOSOFIA TRANSCENDENTAL DE SCHOPENHAUER: Uma Interpretação e Defesa”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Paulo Franscisco Estrella Faria). Porto Alegre, 2009.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Repositório Digital da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Direitos autorais:
Segundo Portaria n 5068, de 13/10/2010, da UFRS: “Os trabalhos depositados no Lume estão disponíveis gratuitamente para fins de pesquisa de acordo com a licença pública Creative Commons.”
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