A SECULARIZAÇÃO E O ETHOS RELIGIOSO QUE EMERGE NA SOCIEDADE GLOBAL: “EU
POSSO”
A
secularização compreendida como um fenômeno que provoca uma desfiliação de
crenças tradicionais da religião caracteriza bem a nova configuração religiosa
que vem se desenvolvendo no horizonte do capitalismo global. Para alguns
sociólogos, esta nova configuração religiosa do mundo contemporâneo é definida
como “religião de mercado sem fronteiras” (PRANDI, 1996), para evocar um
conjunto de afinidades axiológicas que elas têm com o capitalismo global.
A
globalização não só diluiu as fronteiras confessionais das grandes religiões,
de acordo com Pace (1996), como também neutralizou a capacidade ética das
igrejas consideradas cristãs de se apresentarem como “comunidade do contraste”
(LOHFINK, 1998) no mundo profano que as circundam. À medida que o efeito
secularizante da globalização atingiu o ideário religioso, a atenção dos
indivíduos inseridos no contexto da religião se voltou mais para o ideal de
felicidade e auto-realização, não mais o de renúncia a elas. O instinto
aquisitivo associado ao ideal de conquista se notabiliza com mais freqüência
neste contexto. A meta para se alcançar a “experiência máxima” (BAUMAN, 1998)
se transforma em sentido dado à própria vida.
O
impulso para a conquista é característico da ética protestante. O labor das
atividades produtivas não teria sucesso sem este impulso aquisitivo. Mesmo
condenando a aproximação moral do ideal de vida hedônica, a ética calvinista
provocou a secularização de seu ethos na medida em que as ocupações
seculares se tornaram necessárias para se obter a confirmação do estado de
graça que o crente buscava. Apesar de rejeitar a vida de luxo e de consumo
desnecessário, a ética protestante (calvinista) volta sua atenção para o mundo
com a disposição de relativizar um mandamento típico do cristianismo
escatológico originário: “não acumuleis riquezas sobre a terra” (Mt 6,19,
Bíblia Sagrada). A apostasia deve ser considerada como o descontrole
moral dos crentes sobre este instinto aquisitivo que alimenta e justifica o
ideal de conquista característico de uma “vida sem Deus no mundo” (atheos).
O ideal de conquista promove uma afinidade moral capaz de tornar indistintos os
dois mundos separados e antagonizados: o sagrado e o profano.
A
secularização da escatologia cristã implicou, conforme mencionado
anteriormente, um redimensionamento da perspectiva hermenêutica da teologia da histórica do cristianismo Ocidental (na vertente
protestante), operando nele uma nova disposição de transgredir três crenças
fundamentais da antropologia escatológico-cristã: a mortificação da carne
(FOUCAULT apud BAUMAN, 1998), a “satanização da riqueza” (PIRES, 2007) e
a relativização do ideal de felicidade/prazer intramundano (DUMONT, 1985).
A
presença de um “impulso para a satisfação”, conforme Bauman (1998) descreve em
sua análise da religião inserida no contexto pós-tradicional da globalização,
reflete a mudança axiológica produzida pelo processo da secularização. A
“experiência máxima” (BAUMAN, 1998), como ideal de conquista que se figura no
novo ethos religioso, indica a exaltação autonomista que se atribui à
vontade da pessoa e nela emerge como senso de poder da escolha emancipada. A
visão determinista da escatologia tradicional cede espaço para uma nova
afirmação indeterminista de vida na História no contexto pós-tradicional da
globalização/secularização: “„Você pode fazer isso‟. „Todo o mundo pode
fazê-lo‟. „Cabe somente a você decidir se vai fazê-lo‟” (BAUMAN, 1998,
p.224, grifo meu).
A
“desfatalização da História” implicou em um novo significado para a
antropologia religiosa: a vocação da expansão das possibilidades de
auto-realização dos indivíduos no mundo tornado transcendente. Os construtos
“desfatalização da História e destradicionalização” são justapostos aqui, pois
ambos reforçam a “autonomia das escolhas” dos indivíduos em relação à vida que
estes querem ter. Como a destradicionalização potencializou o senso de
autonomia dos indivíduos, estes, por conseguinte, se viram livres da
necessidade de terem que se submeter ao rito de obediência a um comportamento
considerado normal ou adequado às expectativas de uma tradição. A desfiliação
sugere o “abandono” de um paradigma ético considerado certo e normativo com
força de modelar um comportamento social. Quando isso acontece, o futuro se
torna imprevisível. Pois as escolhas dos indivíduos deverão ser sempre novas.
Compulsividade é, de acordo com Giddens (1995), “inclinação emocional para
repetição”, não no sentido da ação com o reforço moral de uma tradição, mas
como a busca interminável pela aquisição de uma nova experiência. Se na
tradição há uma rotinização da conduta, na destradicionalização a ação dos
indivíduos é desrotinizada, cedendo espaço para a compulsão, isto é, o vicio
da aquisição de experiências novas e indeterminadas.13 O
sentido da autonomia das escolhas se reforça aí. Poder decidir o que se quer
ser é uma prerrogativa dada aos indivíduos que vivem no contexto
pós-tradicional da globalização. A cultura da repetição na realização de um
“fim predefinido” no rito da tradição se diluiu com a nova compreensão de
processo histórico desfatalizado que surge no contexto da sociedade secular
global. O novo se torna alvo de contínua conquista dos indivíduos.
Neste
sentido, as benesses que na ordem da tradição escatológica eram projetadas para
um novum pós-histórico, agora, no contexto da secularização, se
redimensionam para o mundo real, onde a possibilidade de experimentar o prazer
de uma nova experiência já pode ser alcançada agora e progressivamente. Esta
nova tendência da religião inserida no mundo pós-tradicional da
globalização/secularização caracteriza a apostasia das crenças éticas
fundamentais ligadas à tradição escatológico-cristã no mundo ocidental, como já
se mencionou anteriormente. O ethos religioso que se descortina agora
reflete grande afinidade com os valores de uma cultura hedônica preconizados no
impulso para aquisição dos indivíduos inseridos no contexto da sociedade de
consumidores na era da globalização. A secularização significa neste contexto
“o olhar para dentro da história” com desejo de realizar novas aquisições que
possibilitem alcançar a plenitude da “experiência máxima ou orgástica” (BAUMAN,
1998).
Por
esta razão, o ideal de vida que se expande é alcançado através do consumo de
sempre novas possibilidades. A transição do paradigma ético “eu renuncio”
(característico da tradição escatológica protocristã) para o “eu posso”
(característico da sociedade consumista e pós-tradicional) define o caráter
hedônico que a secularização produziu no ethos religioso no contexto da
globalização, preconizando com isso um novo conceito de subjetividade
religiosa. A mudança ocorrida no ethos religioso da sociedade compreendida
como “pós-tradicional” sugere que a secularização representa a desfiliação
axiológica de uma perspectiva de vida determinada pelo imperativo categórico do
“eu-não-posso-agora” (ascese).
A
revolução antiescatológica produz rupturas ao mesmo tempo em que inaugura uma
nova disposição psicológica no crente de lidar com valores morais até então
anatematizados pela tradição escatológico-cristã. A modernidade
pós-tradicional, de acordo com Bauman (1998), desfez a obsessão do crente com a
vida após a morte, e concentrou a atenção do novo ator
religioso à “vida aqui e agora” (BAUMAN, 1998). A “historização da esperança” (PIRES,
2007) é o efeito que mais visibilidade apresentou a partir do processo da
secularização, cujo nascedouro histórico se encontra no protestantismo
puritano, como já se afirmou anteriormente.
Entretanto,
esta mesma revolução antiescatológica contribuiu para a formação de uma nova
visão de mundo religiosa: além de valorizar a vida intramundana (transcendência
do mundo), a religião que emerge no contexto da globalização procura empreender
um maior “esforço de comunicar experiências máximas a quem não atinge o máximo”
(MASLOW apud BAUMAN, 1998, p.223). O ideal de „progresso individual‟ entra em
cena também na vida religiosa agora. A vida humana deve se expandir no
horizonte da mundanidade: esta é sua maior vocação. A estabilidade da vida
intramundana é considerada um entrave para o progresso individual. A metáfora
do “orgasmo múltiplo” de que fala Bauman (1998) revela a incansável busca por
maiores sensações de prazer que orienta a projeção de novas conquistas uma
visão de mundo antiescatológica.
O
poder que gera a capacidade de consumo é condição sine qua non
para satisfazer o ideal de vida feliz para esta nova configuração religiosa de
vida no mundo globalizado. A secularização apresenta-se aí como expansão do
horizonte de progresso da vida intramundana, possibilitando um estilo de vida
social marcado pela transgressão da norma (escatológica) e o abandono
consciente dos limites éticos que o imperativo moral do “negue-se a si mesmo”
impõe a cada crente. No „poder para conquistar‟ figura o modelo de vida feliz
representado pela nova subjetividade religiosa que emerge no cenário social da
globalização.
Neste
sentido, o eu-posso se torna símbolo paradigmático da cultura religiosa
na qual se preconiza uma ruptura teológica com o tradicional tu-podes.
Ele aparece como uma nova categoria de vida na fé que se desfilia da
tradicional visão de mundo dominada pela providência e guiada pela razão
escatológica da história. O eu-posso representa o grito de emancipação
da nova religião de suas origens histórico-teológicas, onde a visão
determinista da tradição escatológica do cristianismo cede lugar a uma nova
perspectiva hermenêutica de visão do mundo na qual o próprio crente, e não mais
Deus, é colocado na condição de quem governa e vive a própria vida.
No
quadro abaixo, são resumidas as principais crenças e valores que se
revitalizaram com a secularização no mundo pós-tradicional da globalização:
Quadro
5: Crenças e valores da secularização no contexto pós-tradiconal da
globalização.
Apostasia
das crenças centrais da tradição cristã (desfiliação da tradição escatológica;
destradicionalização; revolução antiescatológica);
Valorização da mobilidade
social (ideal de progresso);
Valorização da vida secular
(transcendência do mundo);
Valorização da autonomia das
escolhas do indivíduo (individualismo; abrir o próprio negócio);
Vocação de expansão das
possibilidades de auto-realização dos indivíduos (ímpeto para novas aquisições;
hedonismo);
Impulso para a satisfação
(compulsividade e busca pela aquisição do novo);
Poder para conquistar o que se
deseja (eu-posso-agora).
Neste
segundo capítulo da tese, foi privilegiado o tema sobre a globalização e
secularização. São temas amplos que abarcam vários outros fenômenos que
acontecem simultaneamente, tais como a ascensão do hedonismo, o advento da
destradicionalização, a exaltação de uma nova modalidade de individualismo, a
revolução anti-escatológica, etc. As crenças que foram revitalizadas no
contexto da globalização estão diretamente ligadas à construção de uma nova
identidade religiosa para o movimento evangélico que começa a despontar, como
afirmado anteriormente, a partir da década de 70 do século XX.
As
três primeiras crenças revitalizadas que foram expostas no quadro demonstrativo
acima (revolução anti-escatológica, valorização da mobilidade social ou do
ideal de progresso e a valorização da vida secular) tiveram um papel
determinante na formação do ethos neopentecostal. No contexto da
globalização, o estilo de vida (ethos) calvinista/puritano, com seus
valores e crenças correspondentes, são renovados e entra no cenário religioso
brasileiro.
O
mundo de insegurança e de inúmeras vulnerabilidades favoreceu a criação de um
novo sistema de crença religioso reativo capaz de adequar a visão de mundo do
crente às novas exigências de vida trazidas e figuradas nos processos da
globalização, conforme Mariano (1999) analisa. A ética religiosa deste novo
movimento evangélico brasileiro em nada parece afetar diretamente o capitalismo
global, mas certamente este último tem afetada a estrutura do sistema de crença
daquele outro. A compulsividade pela aquisição material do novo e a valorização
do poder para conquistar o que se deseja (típicas crenças protestantes
calvinistas) são conseqüências inegáveis da influência da globalização sobre o ethos
neoprotestante da igreja SNT mais adiante.
---
Fonte:
ANDERSON CLAYTON PIRES: “A METAFÍSICA DO SUCESSO, A ESPIRITUALIDADE DO CONSUMO E A ÉTICA HEDÔNICA CONFIGURADAS NO SISTEMA AXIOLÓGICO NEOPROTESTANTE DA IGREJA EVANGÉLICA SARA NOSSA TERRA”. (Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Dra. Clarissa Eckert Baeta Neves). Porto Alegre, 2011.
Fonte:
ANDERSON CLAYTON PIRES: “A METAFÍSICA DO SUCESSO, A ESPIRITUALIDADE DO CONSUMO E A ÉTICA HEDÔNICA CONFIGURADAS NO SISTEMA AXIOLÓGICO NEOPROTESTANTE DA IGREJA EVANGÉLICA SARA NOSSA TERRA”. (Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Dra. Clarissa Eckert Baeta Neves). Porto Alegre, 2011.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Repositório Digital da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Direitos autorais:
Segundo Portaria n 5068, de 13/10/2010, da UFRS: “Os trabalhos depositados no Lume estão disponíveis gratuitamente para fins de pesquisa de acordo com a licença pública Creative Commons.”
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