A WIKIPÉDIA E A NOÇÃO DE
ENCICLOPÉDIA
O termo “enciclopédia” nos é muito caro nessa dissertação, isto porque é
desta forma que a Wikipédia é definida, portanto, devemos lançar um olhar mais
detido sobre ele. Scotta (2008) buscou refletir sobre o que seria uma
enciclopédia e o que seria um saber enciclopédico e trouxe contribuições
importantes acerca dessas definições. Para a autora, um ponto subjaz à própria
enciclopédia: a busca do saber total, personificado miticamente na figura da
Biblioteca de Alexandria, lugar onde estariam depositados todos os saberes do
mundo. Logo, “este desejo do ‘saber total’ que atravessaria a noção de
enciclopédia estaria permeado por duas características conflitantes: ser a soma
e o ‘resumo’ de todos os saberes existentes” (SCOTTA, 2008, p.21).
Etimologicamente, enciclopédia tem origem no grego antigo, “eu-kukliospaideia” (ευ−κυκλιοσ)
como um círculo (kuklios) perfeito (eu) do conhecimento (paideia).
É utilizada em sua forma moderna apenas no século XVI em inglês por Thomas
Elyot, e em francês por François Rabelais em Pantagruel, porém o termo só se
torna usual no século XVIII quando o “enciclopedismo” se instaura realmente como
um movimento. Enciclopédia, portanto, traz em sua origem, uma rede de sentidos
que, de certo modo, vem definindo-a historicamente ao longo dos tempos: a
circularidade enquanto capacidade de abarcar todo o conhecimento, fechando,
como num abraço ou num cerco, a totalidade de saberes. Isto se reforça,
inclusive, quando, ao percorrer todo enciclopedismo desde sua origem na Grécia
até os dias atuais, Scotta (2008, p.51) constata que “um ideal em específico
perpassou praticamente toda a história do enciclopedismo: o ideal do saber
total” sobre o qual recai uma contradição, a de “ter este artefato de
conciliar a pretensão à exaustividade com a exigência da seletividade”.
Na historicização da enciclopédia, seja como artefato ou como
idealização, há um imaginário que a acompanha, significando-a: a busca por
abarcar todo o conhecimento, todos os saberes. Sem dúvida alguma, esse sentido,
marcado e disseminado fortemente no tempo, ratifica uma visão de que o
conhecimento possa ser aprisionado, de que todos os saberes possam ser
agregados e reunidos em um mesmo espaço/lugar. Por muito tempo, essa busca
permitiu a construção de artefatos, os livros ou coletâneas chamadas
enciclopédias, ocupando materialmente prateleiras e prateleiras... para então
ser “transmutada” para outras “prateleiras”, as virtuais. Sem dúvida, a
utopia do saber total encontra na noção de hipertexto e no universo da web
(enquanto espaço virtual de armazenamento ilimitado de informações) um agente
instigante e impulsionador: antes reduzido pela margem da folha do livro, pelos
custos de edição, pelo trabalho de concisão do enciclopedista; agora liberto
para a criação de páginas e páginas em um site, pelo baixo custo dos
acessamentos, pela possibilidade de escrita colaborativa.
Portanto, a Wikipédia, enquanto enciclopédia-online, se inscreve
nessa rede de sentidos que envolvem a busca pela totalidade de saberes, como um
ciclo perfeito do conhecimento.
Pfeiffer (2001, p.43) levanta a diferenciação entre intelectuais e cientistas,
como lugares aos quais cabem a análise ético-social (aos primeiros) e a análise
objetiva e exata (aos segundos) dos fenômenos do mundo, e questiona (centrando
no seu tema - o jornalismo científico) "quais processos discursivos estão
funcionando na construção de um imaginário de ‘conhecimento’, ‘ciência’,
‘educação’, ‘escola’, ‘professor’...”. A partir dessa reflexão da autora,
podemos deslocar nosso olhar e perceber que na enciclopédia há exatamente esse
esforço de construção de um imaginário de conhecimento, a ponto de podermos
assim defini-la. Entretanto, esse imaginário de conhecimento mobiliza
discursivizações por sujeitos que não ocupam legitimamente lugares nem de
“intelectuais” nem de “cientistas”, tanto na enciclopédia “tradicional”, onde o
lugar é ocupado pelo enciclopedista, tampouco na enciclopédia virtual
onde o lugar é ocupado pelo wikipedista.
Diante disso, uma configuração muito própria se estabelece: quais
saberes podem (ou devem) integrar esse imaginário de conhecimento, isto é,
quais elementos são autorizados ou tomados como saberes de uma enciclopédia, ou
ainda, saberes enciclopédicos. Na tênue aproximação entre
intelectualidade/cientificidade, mas sem ser nenhuma delas, o conhecimento
enciclopédico emerge como aquilo que cabe a todos a saber, vindo a compor,
portanto, uma enciclopédia. Como vimos antes, nada mais do que uma rede de
repetições historicamente posta em funcionamento. Detenhamo-nos um pouco neste
ponto acerca dos saberes e percebamos sua relação com os processos discursivos.
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Fonte:
GLÁUCIA DA SILVA HENGE: “SUJEITOS E SABERES: REDES
DISCURSIVAS EM UMA ENCICLOPÉDIA ONLINE”. (Dissertação de Mestrado em Teorias do Texto e do
Discurso apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
LETRAS. ÁREA: ESTUDOS DA LINGUAGEM. ORIENTADORA: PROFa. DRa. SOLANGE MITTMANN). PORTO ALEGRE, 2009.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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