O diálogo entre literatura e cinema


O DIÁLOGO ENTRE LITERATURA E CINEMA

Até agora vimos às diferenças entre texto literário e texto fílmico A Máquina do Tempo a partir da perspectiva da verossimilhança na narrativa de ficção-científica, da influência do contexto histórico e da organização econômica da indústria hollywoodiana. Agora vamos analisar de forma mais detalhada as diferenças entre texto literário e texto fílmico do que diz respeito às especificidades de cada mídia. Para tratarmos dos pormenores das diferenças entre o texto literário e o texto fílmico A Máquina do Tempo, vamos nos deter primeiro a um estudo das diferenças entre cinema e literatura de uma forma geral. Sobre as diferenças entre as duas mídias Seymour Chatman comenta:

Uma das mais importantes constatações da narratologia foi que a narrativa em si é uma estrutura profunda e independente de sua mídia. Em outras palavras, a narrativa é basicamente uma espécie de texto organizado, e essa organização, esse esquema, precisa ser expresso: seja em palavras faladas, combinado com o movimento de atores representando personagens em cenários que simulam lugares e paisagens, como peças de teatro e cinema, em desenhos, em histórias em quadrinhos, em números de dança, em balé e mímica, e até mesmo em música, [...] (1992, p. 403, tradução nossa)

A narratologia, conforme Chatman explica, traça uma diferença entre a narrativa enquanto o enredo em si e a mídia pela qual essa narrativa é transmitida. Dito de outra forma: a estória de um cientista que constrói uma máquina do tempo, viaja para futuro e encontra uma sociedade distópica seria a narrativa em si, a mídia seria o meio pela qual a narrativa é transmitida (cinema, literatura, história em quadrinhos, etc.).

Uma visão equivocada, e muito propagada pelo senso-comum, é a idéia de um filme baseado em um livro, para ser considerado bom, deve seguir a risca a trama do livro nos seus menores detalhes. Essa idéia errônea é comum porque a maioria das pessoas, quando lê um livro ou vê um filme, se prende apenas o enredo em si, desconsiderando as especificidades da literatura e cinema enquanto mídias diferentes. Nas primeiras tentativas de se teorizar sobre o cinema surgiu a tese de que planos de cinema equivaleriam a palavras e cenas a frases. Dito de outra forma: o plano de um mar num filme equivaleria à palavra mar num livro e uma cena num filme mostrando um homem sentado a beira de um mar equivaleria à frase “o homem está sentado à beira do mar”. Essa tese se mostrou falsa conforme Christian Metz demonstrou em seu livro A Significação no Cinema (1977), ao observar que uma palavra ou frase literária podem ser decupadas de inúmeras formas.

Metz usa o seguinte raciocínio para validar seu argumento: tomemos como exemplo a frase “o homem está sentado à beira do mar” e suas possíveis formas de decupagem. Vamos imaginar que essa frase faça parte de um livro e que nossa tarefa seja decupar e transformá-la num roteiro técnico para ser filmado. As opções são múltiplas: podemos optar por um plano geral de um homem sentado a beira do mar, ou seja, mostrar todos os elementos que compõem a frase “o homem está sentado à beira do mar” num único plano. Podemos iniciar com um close no rosto do homem, depois mostrar um plano conjunto do mar e terminar com um plano médio do homem sentado numa cadeira. Ou ainda podemos fazer um plano seqüência iniciando no mar, seguindo de um travelling pela areia até chegar no homem sentado a beira do mar. A análise de Metz mostra que não há uma equivalência entre cinema e literatura, que a escolha das imagens que irão representar as palavras do texto literário são arbitrárias, dependendo muito mais de um processo de escolha subjetivo do realizador cinematográfico do que alguma regra de equivalência entre planos e palavras ou frases e seqüências. Não é possível conceber algo como uma espécie de “dicionário” entre palavra e imagem, se formos fazer uma analogia.

Literatura e o cinema comunicam diferentemente e faz pouco sentido encontrar paralelos exatos entre os dois no nível da comunicação denotativa. A imagem fílmica não é como uma palavra, é mais como uma frase ou uma série de frases. Uma palavra ou seqüência de palavras comunica principalmente através de uma relação simbólica com sua referente; uma imagem, principalmente através de uma relação icônica e analógica. Nem palavras nem imagens devem ser confundidas com suas referentes respectivas, pois as duas são ilusórias. (JOHNSON, 1982, p. 28)

Portanto, aqui temos uma das principais diferenças entre cinema e literatura, o cinema mostra as imagens, enquanto a literatura alude a noções genéricas, ou seja, dá elementos para que o leitor construa suas próprias imagens mentalmente. Essa assertiva pode ser melhor explorada a partir de uma análise mais cuidadosa da frase “o homem está sentado à beira do mar”. Pois bem, que tipo de homem seria? Branco? Negro? Alto? Baixo? Magro? Gordo? A beira de qual mar ele sentado? Mar Cáspio? Mar da Galiléia? Mar Mediterrâneo? É dia ou noite o momento da ação? Enfim, cabe ao leitor da frase preencher essas lacunas.

O exemplo da frase “o homem está sentado à beira do mar” pode ser extendido a textos literários inteiros. Foi o que o já citado Seymour Chatman fez ao analisar o conto de Guy de Maupassant “Une Partie de Campagne” (1860) e sua respectiva transposição fílmica homônima realizada por Jean Renoir em 1936. Ao fazer uma comparação entre uma seqüência do filme de Renoir, que consiste na descrição do interior de uma carruagem, e a descrição no conto de Maupassant – a parte do conto de Maupassant analisada é a seguinte frase: “A carruagem tinha o teto sustentado por quatro barras onde cortinas estavam presas, e que haviam sido erguidas para que os ocupantes pudessem ver a paisagem campestre” (tradução nossa) – Chatman conclui que a imagem fílmica da carruagem apresenta ao espectador um número muito maior de informações que o texto literário, este restringido as informações que o narrador fornece, porém, oferecendo ao leitor um espaço maior para preencher os detalhes com sua imaginação.

O numero de detalhes na sentença de Maupassant é limitada a três. Em outras palavras, a seleção entre os possíveis números de detalhes apresentados é absolutamente determinado: o autor, através da figurado narrador, “selecionou” exatamente três detalhes. Portanto o leitor tem conhecimento apenas desses três detalhes e pode apenas imaginar o resto do cenário. Mas na versão fílmica, o número de detalhes que aparece é indeterminado, uma vez que a visão fílmica nos dá uma simulação de uma carruagem francesa de uma determinada época, e assim em diante.30(CHATMAN, 1992, p. 406, tradução nossa)

Ou seja, o narrador literário nos fornece um número limitado de elementos que constituem a descrição da carruagem (cortinas que quando levantadas permitiam ver a paisagem, etc.), deixando ao leitor o encargo de completar o cenário com sua imaginação, enquanto que o filme de Renoir, pelo caráter de presentificação da imagem no cinema, nos mostra muito mais detalhes (a paisagem pela qual a carruagem percorre, a roupa de seus ocupantes, etc.).

Portanto, o seguinte deve ser considerado: dada às diferenças entre a linguagem literária e cinematográfica, e a impossibilidade de haver uma equivalência direta entre ambas, sendo esta mais o resultado de um trabalho criativo do que de alguma regra a priori, torna-se incoerente falar em uma fidelidade ao original – no que diz respeito à impossibilidade da mídia fílmica transmitir uma mensagem da mesma forma que esta foi primeiramente transmitida por meio de palavras.

Alguns poderiam argumentar que, se o cinema não pode ser fiel à literatura do ponto de vista formal devido às diferenças de cada mídia, o cinema pode pelo menos fiel a narrativa literária, ou seja, a estrutura, diálogos e ordem cronológica dos eventos, enfim, o que comumente seria chamado de conteúdo. Mais um exemplo cinematográfico irá esclarecer essa questão: RebeccaA Mulher Inesquecível (Rebecca,1940) de Alfred Hitchcock, baseado no romance de Daphne Du Maurier, conta a estória de uma jovem de origem humilde que se casa com um viúvo aristocrata e precisa enfrentar o preconceito daqueles que não aceitam sua presença, além de ter que lidar com constantes comparações em relação à falecida esposa que dá nome ao filme. Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété comentam sobre a adaptação de Rebecca.

Adaptar é, portanto, não apenas efetuar escolhas de conteúdo, mas também trabalhar, modelar, uma narrativa em função das possibilidades ou, ao contrário, das impossibilidades inerentes ao meio. Observa- se em Rebecca que a especificidade do dispositivo narrativo fílmico, às vezes, pode até resultar em uma reinterpretarão de certos elementos de conteúdo que, contudo, não sofreram qualquer modificação particular: no romance, a jovem não tem nome, o que é notável, mas não chocante, pois ela ocupa a função de narrador e conta em primeira pessoa. O filme priva-a igualmente de identidade, mas aí o efeito é muito mais impressionante, pois a vemos com muita freqüência em situação de conversação. O fato de que nem seu marido, nem sua cunhada, nem seu cunhado, nem ninguém jamais a chame por seu nome acaba por criar como que um mal-estar e por reforçar bem evidentemente a presença de Rebecca, cuja identidade está inscrita por toda a parte. O dispositivo narrativo, suas imposições, suas possibilidades, determinam em parte o peso, o impacto, o valor de certos elementos de conteúdo que podem, portanto, variar de um meio para outro. (2006, p. 144) 

Portanto, até mesmo as tentativas de ser “fiel” ao conteúdo do texto literário acabam resultando em uma “infidelidade” porque as próprias particularidades da mídia fílmica alteram o sentido do texto literário, mesmo quando este é seguido à risca pelo filme. A maneira como ocorre a recepção de um filme, por parte do espectador, é completamente diferente da recepção que ocorre quando este, o espectador, está na posição de leitor.

Tomás Enrique Creus analisa, entre as diferentes teorias e opiniões referentes ao assunto “fidelidade ao original”, a do dramaturgo e roteirista Harold Pinter, onde Pinter afirma que se existe uma “regra” para realizar uma transposição de um texto literário para mídia fílmica essa regra seria a habilidade do realizador fílmico captar o espírito da obra literária.

Mas mesmo definir o que significa “ser fiel ao espírito da obra” é algo muito difícil, dependendo de critérios meramente subjetivos. As grandes obras literárias têm um grande número de leituras ou interpretações possíveis e, da mesma forma, vários críticos podem divergir se um certo filme captou ou não tal “sentido original”. Assim, quando falamos em “fidelidade”, de certa forma estamos tentando comparar valores diferentes com a mesma medida, como se fosse realmente possível traduzir uma linguagem à outra sem perdas ou mudanças, ou como se uma existisse em função da outra. Mas embora na literatura cada palavra ou frase possa evocar uma imagem, esta surge apenas na mente do leitor, enquanto que no cinema o processo é inverso, ou seja, a imagem surge primeiro, transformando-se depois em pensamento, memória. (2006, p. 63)

Concluindo, mesmo esse critério de fidelidade ao “espírito da obra” torna-se nebuloso, pois o que seria esse “espírito da obra” é algo que varia muito de acordo com a leitura pessoal de cada indivíduo. Sendo assim, torna-se mais produtivo, no lugar do critério de fidelidade, analisar como literatura e cinema se influenciam mutuamente, e as possibilidades que nascem desse diálogo. Ismail Xavier afirma que

a questão da adaptação literária pode ser discutida em muitas dimensões. E o debate tende a se concentrar no problema da interpretação feita pelo cineasta em sua transposição do livro. Vai-se direto ao sentido procurado pelo filme para verificar em que grau este se aproxima (é fiel) ou se afasta do texto de origem. [...] No entanto, nas últimas décadas tal cobrança perdeu terreno, pois há uma atenção especial voltada para os deslocamentos inevitáveis que ocorrem na cultura, mesmo quando se quer repetir, e passou-se a privilegiar a idéia do “diálogo” para pensar a criação das obras, adaptações ou não. O livro e o filme nele baseado são vistos como dois extremos de um processo que comporta alterações de sentido em função do fator tempo, a par de tudo o mais que, em principio, distingue as imagens, as trilhas sonoras e as encenações da palavra escrita e do silêncio da leitura. (2003, p. 61)

Um exemplo da assertiva de Xavier é a questão da viagem no tempo em A Máquina do Tempo. No texto de Wells o protagonista faz o que poderíamos chamar de viagem direta para o futuro, ou seja, o protagonista entra em sua máquina no ano 1895 e vai direto para era dos Morlocks e Elois. No filme de George Pal o protagonista inicia sua viagem em 1899 e para em diversas épocas da história humana – períodos entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, para ser mais exato – antes de alcançar a era dos Morlocks e Elois. Esse acréscimo cinematográfico a trama do texto literário se tornou possível graças aos 60 anos que separam a obra de H.G. Wells do filme de George Pal. Wells, quando escreveu A Máquina do Tempo em 1895 não sabia o que o futuro próximo poderia vir a ser. É claro que o autor podia especular e usar a imaginação para descrever cenários históricos possíveis para as primeiras décadas do século XX, mas não o fez. Portanto, o texto fílmico ganha uma certa vantagem em relação ao texto literário, pois o que é o futuro para H.G. Wells (o início do século XX) é o passado dos realizadores fílmicos (períodos entre 1917 e 1940). Sendo assim, os realizadores fílmicos puderam incluir eventos históricos reais a jornada do protagonista, tornando a seqüência da viagem no tempo, em sua versão cinematográfica, mais interessante e detalhada que sua versão literária. É dentro do escopo desse tipo de “diálogo” que as questões da transposição de textos literários para o cinema devem ser analisadas.

---
Fonte:
DANIEL ITURVIDES DUTRA: “LITERATURA DE FICÇÃO-CIENTÍFICA NO CINEMA: A TRANSPOSIÇÃO PARA A MÍDIA FÍLMICA DE A MÁQUINA DO TEMPO DE H.G. WELLS”. (Dissertação submetida à Universidade Federal do Rio Grande do Sul para a obtenção do grau de Mestre em Letras na ênfase Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Michael Korfmann). PORTO ALEGRE, 2009.

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Direitos autorais:
Segundo Portaria n 5068, de 13/10/2010, da UFRS: “Os trabalhos depositados no Lume estão disponíveis gratuitamente para fins de pesquisa de acordo com a licença pública Creative Commons.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!