A imagem de Deus e os vestígios divinos


A IMAGEM DE DEUS E OS VESTÍGIOS DIVINOS

A triplex via se insere dentro de uma tradição teológica que busca o conhecimento de Deus a partir da identificação das diferenças e/ou das remotas similitudes que os efeitos criados mantém com o Criador. Essa tradição teológica, de modo geral, supõe uma teoria que pode ser denominada de teoria dos vestígios divinos, a qual faz do filósofo-teólogo uma espécie de investigador que, perscrutando as pistas deixadas pelo Criador em sua obra, procura gradualmente constituir um corpus de conhecimento acerca de Deus.

A teoria dos vestígios divinos obteve um desenvolvimento singular na tradição cristã do Deus Tri-uno e, embora não seja nosso objeto de análise o estudo que Sto. Tomás faz acerca do mistério da Santíssima Trindade, é interessante encerrarmos esta secção acerca das vias de acesso cognitivo a Deus, mostrando como elas também podem ser vistas dentro de um contexto teológico peculiar à tradição cristã: o trinitarismo.

Como nesta dissertação interessa-nos, sobretudo, examinar os métodos que nos permitem - olhando para a criação como que para um espelho de Deus - identificar as semelhanças que as criaturas mantém com o Criador, capacitando-nos, por meio destas semelhanças, a obter algum conhecimento positivo acerca de Deus, é interessante examinarmos como Sto. Tomás, na ST, apresenta e distingue as noções de imagem e de vestígio da Trindade Divina na criação. Assim, poderemos apresentar algumas considerações de Aquino, acerca do que tratamos até aqui, agora do ponto de vista da consideração de Deus enquanto Trino. A consideração de Deus enquanto Tri-uno ocorre nas questões 37-43 da 1ª parte da ST, mas como um estudo específico acerca do mistério da Trindade ultrapassa nosso escopo, nos limitaremos a apresentar algumas considerações gnosiológicas acerca das noções de imagem e vestígio, presentes no artigo 3 da questão 33, e algumas considerações acerca do papel da Trindade na criação, presentes nos artigos 6 e 7 da questão 45 da 1ª parte da ST

Do ponto de vista da Tri-unidade divina a criação é feita conjuntamente pela Três Pessoas – de tal modo que há um único Deus criador - embora cada uma das Três Pessoas Divinas desempenhe um papel próprio no ato da criação. Segundo Sto. Tomás, o Pai (poder criador) cria por intermédio do Filho (sabedoria) e governa e mantém a criação por meio do Espírito Santo (bondade).

A doutrina da imagem e dos vestígios de Deus pressupõe alguns elementos já considerados anteriormente por nós, a saber, uma causalidade divina (eficiente e exemplar) não completamente equívoca e uma teoria da participação, pois as criaturas participam da semelhança de Deus, no modo com que um efeito participa da sua causa, e é esta participação da semelhança, ou imitação do exemplar divino, que pode ocorrer, segundo Sto.Tomás, de dois modos: ou com imagem ou como vestígio.

O vestígio ocorre quando “o efeito representa só a causalidade da causa e não a forma dela”, Sto. Tomás oferece como exemplos de vestígios o modo com que as pegadas representam um caminhante, ou que a fumaça representa o fogo.

A imagem ocorre quando o efeito “representa a causa quanto à similitude da forma dela”. Seus exemplos são: o fogo gerado representando o fogo gerador e a estátua de Mercúrio representando Mercúrio.

Sto. Tomás conclui que todas as criaturas representam a Trindade como vestígio, mas as criaturas racionais a representam como imagem. As criaturas racionais (homens e anjos), porque possuem intelecto e vontade, representam a Trindade enquanto imagem:

As processões das Pessoas Divinas, contudo, são consideradas segundo os atos do intelecto e da vontade, como acima foi dito. O Filho procede como Palavra do intelecto e o Espírito Santo como Amor da vontade. Portanto nas criaturas dotadas de razão, que têm intelecto e vontade, encontra-se uma representação da Trindade à maneira de imagem, na medida em que se encontram nelas uma palavra que é concebida e um amor que procede (ST, I, q.45, a.7, pp.60-61).

O restante das criaturas representa Deus como vestígio “desde que em toda a criatura encontram-se coisas que são necessariamente reduzidas às Pessoas Divinas como sua Causa”. Assim, toda a criatura é vestígio de Deus na medida em que é uma substância (subsistit in suo esse), tem uma forma que a determina a uma espécie e está ordenada para outro. Enquanto substância representa o Princípio ou Pai, na medida em que a substância é princípio de subsistência nas coisas naturais; enquanto forma representa o Verbo ou Filho, na medida em que a forma do artefato provém do conceito do artífice e, analogamente, as formas das coisas naturais provêm das idéias de Deus; enquanto ordenada representa o Espírito Santo ou Amor – na medida em que uma coisa se dirige para outro pela vontade do Criador.

No artigo 3 da questão 33 (Da pessoa do Pai) da 1ª parte da ST, encontramos uma aplicação destas noções de semelhança, vestígio e imagem no que diz respeito às relações de paternidade e filiação, que nos permitem, além de apreciar os graus de similitude entre o Deus Tri-uno e sua criação, também apreciar os graus de possibilidade cognitiva das criaturas com relação a Deus. Nessa escala onto-gnosiológica, vista agora a partir da consideração da Trindade, o conhecimento que a criatura racional pode obter de Deus, diz respeito ao modo com que ocorre a sua filiação a Deus, ou, em outras palavras, ao grau da sua semelhança com Cristo.

Inicialmente S.Tomás distingue dois sentidos da noção de filiação: aquela que diz respeito à processão interna da Trindade, que contém a perfeita filiação do Filho em relação ao Pai, e aquela que diz respeito à produção das criaturas. A primeira é perfeita “pois o Pai e o Filho têm uma só e mesma natureza e glória”, a segunda ocorre por uma certa semelhança imperfeita “porque o Criador e a criatura não têm a mesma natureza”. Assim é que a expressão “filho de Deus” aplica-se primariamente e de modo perfeito a Cristo, que é o Filho gerado pelo Pai, i.e., a imagem perfeita do Pai, sendo este o modo com que Deus conhece a si mesmo de modo perfeito e compreensivo. A expressão aplica-se apenas secundariamente e de modo imperfeito às criaturas produzidas pelo Deus Tri-uno e, no caso das criaturas racionais, a filiação pode ser aperfeiçoada pela graça na medida com que estas se assemelhem ao Cristo, filho Unigênito de Deus. A filiação cabe às criaturas em diferentes graus, de tal modo que, quanto mais se assemelham a Deus, mais próximas estão da noção de perfeita filiação e mais elevado é o conhecimento que podem obter acerca de Deus. Assim, como o Filho é um com o Pai, o artigo 3 da questão 23 da terceira parte da ST, mostra que quanto mais as criaturas se assemelhem ao Filho mais conhecerão ao Deus Tri-uno:

Das criaturas irracionais diz-se que Deus é pai por semelhança de vestígio.Assim toda criatura se assemelha ao Filho, na medida em que ela foi criada pelo Verbo. Nesse sentido pode-se dizer que todo ente, por ser criado, é filho de Deus.

Das criaturas racionais diz-se que Deus é pai por semelhança de imagem, na  medida em que elas participam do princípio de inteligibilidade do Verbo Criador, estando assim naturalmente aptas a serem filhos adotivos em Cristo pela graça do Espírito Santo.

Das criaturas racionais que receberam o dom da graça transmitido pelo Espírito Santo diz-se que Deus é pai, por semelhança na graça, e chamasse-lhes, então, de filhos adotivos de Deus em Cristo.

Das criaturas racionais que alcançaram a glória de Deus, diz-se que Deus é pai por semelhança na glória, e chamasse-lhes, então, de filhos de Deus, e participam então, sobrenaturalmente, da semelhança natural que o Verbo tem na unidade com o Pai.

Nessa classificação pode-se notar que quanto mais uma criatura assemelha-se com Deus, menos imperfeito é o conhecimento que ela obtém de Deus. Em (ii) podemos notar que a semelhança natural mais perfeita que uma criatura pode obter de Deus é possuir uma natureza intelectual, a qual lhe permite conhecer Deus pela via da razão natural, i.e, pela metafísica ou teologia. Já (iii) e (iv) dizem respeito a uma ampliação da semelhança e do poder cognitivo que uma criatura racional pode obter com o auxílio da graça divina: (iii) diz respeito à similitude e ao conhecimento que os homens podem obter na santificação, a qual diz respeito ao dom da caridade oferecido pela terceira pessoa da Santíssima Trindade, i.e., pelo Espírito Santo; enquanto (iv) diz respeito à máxima condição de perfeição, semelhança e conhecimento que uma criatura racional finita pode obter com relação ao Deus racional infinito, i.e., à participação na glória divina, que constitui a obtenção da deiformidade na visão beatífica de Deus.

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Fonte:

ANTÔNIO AUGUSTO CALDASSO COUTO: “OS VESTÍGIOS DE DEUS NO ESPELHO DO MUNDO: UM ESTUDO SOBRE O CONHECIMENTO DE DEUS E A SIGNIFICAÇÃO DOS NOMES DIVINOS NA SUMA TEOLÓGICA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Dr. José Alexandre Durry Guerzoni. Faculdade de Filosofia da UFRGS). Porto Alegre, 2006.

Notas:
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