As respostas de Santo Tomás: o problema das ‘verdades eternas’



AS RESPOSTAS DE SANTO TOMÁS: O PROBLEMA DAS ‘VERDADES ETERNAS’

Continuando o exame das objeções à potência divina, examinaremos agora uma das questões levantadas contra a coerência de se atribuir a Deus um poder absoluto. Essa nova questão ataca o poder divino ao afirmar um conflito insuperável entre ele e certas leis ou verdades que não parecem estar, de qualquer que seja a maneira, sujeitas a algum poder: as ‘verdades eternas’. Ora, não sendo sujeitas a algum poder, não estão sujeitas ao poder de Deus; logo, Ele não é onipotente.

A expressão ‘verdade eterna’ se aplica a todos os componentes de um conjunto que engloba desde os axiomas lógicos fundamentais e os conteúdos determinantes das essências dos seres em geral até as verdades derivadas das definições dos seres matemáticos. Por exemplo, (i) o princípio de não-contradição, o princípio do terceiro excluído, o princípio de identidade, pelo lado da lógica; (ii) a idéia de homem como ‘animal racional’ quanto à essência e (iii) os resultados de cálculos (adição, subtração, divisão, etc.) ou as relações geométricas derivadas das definições de certas figuras (que a soma dos ângulos internos de um triângulo seja igual a dois retos; que a distância de qualquer ponto da circunferência até o centro seja sempre a mesma, etc.), pelo lado da matemática. Nesse sentido, ‘verdades eternas’ são aquelas verdades que são absolutamente necessárias. Ou seja, por serem necessárias, não se pode pensá-las de outra forma. Sendo assim, não há um caso no qual elas não sejam válidas. De fato, que a soma de dois e dois resulte quatro não parece ser alterável em qualquer que seja a circunstância. Também não se pode pensar na alteração da essência de homem como ‘animal racional’ justamente por não se poder imaginar um caso em que um ser seja e não seja, simultaneamente e sob o mesmo aspecto, o que ele é ou que um ser seja contraditório à sua própria essência; no caso, que um homem não seja animal ou que não seja racional.

Em suma, ‘verdades eternas’ são aquelas universalmente válidas, seja para todos os seres, como são as verdades lógicas fundamentais, seja para os seres quanto a suas definições e, ainda, a todos os seres submetidos à categoria da quantidade, pois a partir deles é que as verdades matemáticas podem ser abstraídas.

Há duas posições possíveis perante as ‘verdades eternas’: ou (1) se aceita que elas são independentes de Deus ou (2) se aceita que elas dependem de Deus.

O quanto nos interessa nesta tese, o problema das ‘verdades eternas’ se toma, em primeiro lugar, como desafio à potência divina sob a hipótese de que tais verdades impõem uma limitação ao poder divino por serem independentes de Deus (1). Com efeito, se Deus não pode mudar o resultado de cálculos matemáticos, por exemplo, então Ele se depara com algo fora de Sua esfera de ação. Mas tudo o que existe foi criado, como defende Santo Tomás. Como, então, aceitar que haja algo absolutamente isento da intervenção do poder divino?

A essa questão Santo Tomás precisa responder. E ele o faz procedendo da maneira que lhe é usual, a saber, ele principia por examinar o significado da expressão.

Se aceitamos a definição de ‘verdade eterna’ como a de uma verdade impassível de mudança em qualquer que seja o tempo ou o caso e, mais ainda, impensável como algo mutável, convém que perguntemos se elas são, em algum sentido, independentes de Deus. Ou seja, possuem elas uma realidade ontológica própria independente de Deus? Para Santo Tomás, não. E ele constrói sua resposta do seguinte modo. ‘Verdade’ significa três coisas: o ser, a adequação entre o pensamento e a coisa pensada (objeto) e aquilo pelo qual se mostra o que é. Respectivamente, o fundamento da verdade, o que a verdade é formalmente e o efeito que se segue à verdade.

Dessas três formas de entender a verdade, Santo Tomás reconhece ser a segunda (a adequação) a principal significação: “[...] propriamente só há verdade na inteligência e as coisas são ditas verdadeiras em razão de uma verdade que se encontra num intelecto [...]”(STh. I, q. 16, a. 8, resp.). Isto porque, embora tenha como fundamento o ser, a verdade é uma assimilação ou contemplação de um objeto por um intelecto. E, como tal, é ao compor ou dividir corretamente que uma inteligência (ao menos a discursiva) atinge a verdade.

Tendo como base essa relação, entre um intelecto e um objeto qualquer, é que Santo Tomás encara primeiramente o problema das ‘verdades eternas’. Para haver verdade, é preciso um intelecto e, para haver ‘verdades eternas’, elas precisam estar presentes em um intelecto eterno. Não há qualquer tipo de status ontológico para as verdades se for excluído qualquer destes itens: a) uma base sobre um ser real e b) a concepção por algum intelecto. A verdade depende deles. Ora, afirma Santo Tomás, o único ser eterno é Deus, portanto Ele é o único a possuir o requisito de um intelecto eterno. E acrescenta que, se há verdades que são eternas, elas não só estão necessariamente no intelecto divino como também só são eternas graças a ele. Assim se expressa Santo Tomás na Suma de Teologia I, q. 16, a. 7: “[...] se não houvesse uma inteligência eterna, não haveria verdade eterna. Mas, como só a inteligência divina é eterna, é nela somente que a verdade é eterna [...]”.

Mas abordemos a questão sob outro ângulo.

Constatamos a obviedade e refletimos sobre a necessidade da identidade de um ser consigo mesmo, pois nosso intelecto compreende essa necessidade de identificar um ser com ele mesmo. Mas isso nos é apresentado como algo da própria natureza do ser em geral. Identificamos essa necessidade ao considerarmos como as coisas são no mundo. Contudo, pode-se dizer de Deus o mesmo? As ‘verdades eternas’ são constatadas por Ele de alguma maneira? E mais, constatadas como algo não sujeito ao Seu poder, por serem extrínsecas a Ele? Resumindo, elas são, além de eternas, independentes?

Uma leitura apressada de Suma Contra os Gentios II, cap. 25, 14 pode dar a impressão que Santo Tomás admite isso:

[...] os princípios de ciências como a Lógica, a Geometria e a Aritmética derivam-se unicamente [grifo nosso] dos princípios formais das coisas de que sua essência depende; donde se segue que escapa ao poder divino realizar o oposto desses princípios.

O que significa esse ‘unicamente’ no texto? Pode se tratar da aceitação, por parte do Aquinate, de uma independência desses princípios frente ao poder divino? Certamente não. Santo Tomás rejeita a idéia de algo absolutamente independente de Deus. No entanto, ele admite que Deus não tem poder sobre o que é absolutamente (simpliciter) impossível. Ao considerar os princípios de ciências como a Lógica, a Geometria e a Aritmética como derivando unicamente das formas das coisas, deve-se respeitar, sob a pena de cair em contradição, esses princípios formais essenciais, pois, como escreve Santo Tomás, “[...] a negação de um princípio essencial da coisa implica a negação da coisa ela mesma.” E Deus não pode alterar isso porque é contraditório, portanto, não possui razão de possívelMas esta necessidade não vem de fora de Deus. A necessidade, como diz Santo Tomás,

[...] não é mais que um modo da verdade; ora, o verdadeiro, segundo o Filósofo, se dá ‘na inteligência’. Portanto, o verdadeiro e o necessário, se eles são eternos, o são como existindo em uma inteligência eterna, que é unicamente a inteligência divina. (STh I, q. 10, a. 3, ad. 3).

A necessidade encontrada em ciências como Lógica e Geometria derivam, certamente, de algo eterno. Mas isso não significa, como assinala Santo Tomás na continuação do texto acima, que “[...] haja, fora de Deus, qualquer coisa de eterna [...]”.

A conseqüência de tal posição é a recusa completa em admitir as ‘verdades eternas’ como algo independente de Deus, ou seja, não se pode admitir que possuam realidade ontológica autônoma. Uma ‘verdade eterna’, qualquer que ela seja, isto é, qualquer que seja o tipo que Santo Tomás apresenta, só pode existir enquanto conteúdo de um pensamento e deve estar ligada a Deus, que é um ser eterno. Portanto, nesse sentido, elas são dependentes de Deus.

Não obstante o que foi apresentado acima, a resposta ainda não está completa, pois há uma segunda questão a tratar (2): qual o tipo de ligação que as ‘verdades eternas’ mantém com Deus.

Se há ‘verdades eternas’ e elas dependem de Deus, qual é, então, o fundamento de sua necessidade? Isto é, por que elas precisam ser necessariamente necessárias se elas dependem de Deus? Deus não poderia modificá-las? Não, reponde Santo Tomás. Por ser absolutamente simples, em Deus a “[...] verdade da inteligência divina é Deus mesmo.”( STh I, q. 16, a. 7) Assim, elas não podem ser alteradas, a não ser que se aceite uma mudança em Deus; o que Santo Tomás recusa. De fato, a natureza da dependência das ‘verdades eternas’ em relação a Deus não é do tipo criatura frente ao criador. Em Deus elas manifestam o Seu modo próprio de ser. Em outras palavras, dependem Dele porque Ele é assim. E nesse sentido, podemos dizer que as ‘verdades eternas’, quanto à existência, dependem de Deus, mas, quanto à verdade, não dependem.

Concluindo, o fundamento último das ‘verdades eternas’ é Deus mesmo. E, como o que estrutura ultimamente toda a realidade é a essência divina ela mesma, pois tudo que existe depende de Deus de alguma maneira e, ainda, como em Deus as ‘verdades eternas’ são princípios formais do seu próprio ser, pode-se ver por que elas são inalteráveis, ou seja, por que são necessariamente necessárias. Na verdade, elas se encontram e não se encontram sob o poder divino. Enquanto conteúdo de uma inteligência, verdades eternas só podem ser eternas enquanto estiverem em um intelecto eterno. Por outro lado, podemos considerá-las independentes na medida em que é inconcebível a idéia de estar sob o poder de Deus que Ele seja e não seja o que Ele é, por exemplo. Mas isso não implica qualquer prejuízo a Sua onipotência. Aqui de novo é a contradição que está em jogo. Para alterar as ‘verdades eternas’, Deus teria de alterar a Si próprio. Ele precisaria ser e não ser o que Ele é. Ora, isso é contraditório. E como o contraditório nada significa, a objeção à onipotência, ao apelar para a possibilidade de Deus poder ou não alterar as verdades eternas, fracassa.

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Fonte:
LÚCIO SOUZA LOBO: “ONIPOTÊNCIA DIVINA SEGUNDO SANTO TOMÁS DE AQUINO”. (Tese apresentada ao Departamento de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Balthazar Barbosa Filho. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL). Porto Alegre, 2006.


Notas:
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