Kautsky e a “teoria do colapso”


KAUTSKY E A “TEORIA DO COLAPSO”

O desafio de Bernstein demandava respostas da ala ortodoxa da social-democracia. A “teoria do colapso” subjacente ao Programa de Erfurt havia sido centralmente atacada. Mas a doutrina do SPD, e da maior parte dos marxistas alemães, realmente se baseava na previsão de um colapso? Kautsky nega isso. Em sua resposta a Bernstein (em artigo intitulado Bernstein und das Sozialdemokratische Programm), Kautsky mantém que a alegada “teoria do colapso”, inclusive o próprio termo, seria uma invenção de Bernstein: nem Marx, nem Engels, nem ele próprio teriam desenvolvido qualquer teoria passível de ser entendida como um fatalismo econômico (HOWARD; KING, 1989).

No entanto, em The Class Struggle, sua apresentação do Programa de Erfurt, Kautsky claramente esposa a visão de um colapso econômico em várias passagens, e ao longo do texto constrói uma perspectiva da derrocada inevitável do capitalismo como resultado do seu desenvolvimento, chegando mesmo a afirmar:

[…] today there is no longer any question as to whether the system of private ownership in the means of production shall be maintained. Its downfall is certain. The only question to be answered is: Shall the system of private ownership in the means of production be allowed to pull society with itself down into the abyss; or shall society shake off that burden and then, free and strong, resume the path of progress which the evolutionary law prescribes to it? (KAUTSKY, 2000)

“[…] hoje não há mais qualquer questão sobre se o sistema de propriedade privada dos meios de produção deve ser mantido. Sua queda é certa. A única questão a ser respondida é: deve-se permitir que o sistema de propriedade privada nos meios de produção carregue a sociedade consigo para o abismo; ou deve a sociedade livrar-se desse fardo e então, livre e forte, retomar o caminho do progresso que a lei da evolução prescreve a ela?” ((KAUTSKY, 2000, tradução nossa).

Essa passagem indica a existência, de fato, de uma “teoria do colapso” subjacente à visão de Kautsky: apesar de sua crença em que a classe trabalhadora organizada efetue a tomada do poder e transforme a sociedade, a ruína do “sistema de propriedade privada dos meios de produção” é certa. E essa ruína é certa a despeito da transformação socialista da sociedade ou da sua queda junto ao “abismo”. Em outras palavras, o colapso capitalista (e os termos de Kautsky não fazem mais do que evocar a visão de um colapso) é a direção para a qual ruma o seu desenvolvimento imanente. A transformação revolucionária apenas deve determinar se o resultado da ruína será o socialismo, a retomada do “progresso”, ou o “abismo”. Voltaremos adiante ao papel que cumpre, nessa visão, a ação revolucionária consciente. Antes, veremos como Kautsky chega à sua conclusão.

Kautsky (2000) analisa os efeitos do desenvolvimento capitalista sobre as duas classes fundamentais da sociedade. Esse processo leva, de um lado, à dissolução da pequena propriedade e da pequena produção, acelerando a proletarização e seus efeitos nocivos sobre a classe trabalhadora: a ampliação da classe de não-proprietários, com contenção dos salários, desemprego etc., além de reproduzir e expandir o proletariado também difunde suas condições de vida para outras classes, como os pequenos comerciantes. De outro lado, em relação à classe capitalista, o desenvolvimento econômico leva à maior interdependência e divisão do trabalho, assim como à concentração e centralização do capital, reduzindo o número de capitalistas e tornando suas condições de acumulação mais incertas. A tendência à queda na taxa de lucro e as constantes revoluções na técnica (mutuamente causa e consequência uma da outra), aumentam o montante de capital necessário à produção, forçam a adoção de maquinário novo, tornando uma parcela do antigo obsoleto, e contribuem para a renovação e engrandecimento das plantas produtivas. O resultado é o acirramento da concorrência que leva à quebra de muitos capitais menores e faz com que os grandes capitalistas se unam em torno de sindicatos patronais, trusts, ou leva, em termos atuais, à integração vertical. As sociedades por ações e o crédito seriam parte integrante desse processo centralizador, uma vez que o crédito, ao transferir recursos ociosos para a produção capitalista permite elevar o ritmo da acumulação e reforça as tendências de seu desenvolvimento. Já o capital acionário possibilita que um único capitalista, mesmo desconhecendo os ramos de produção, possua diversos empreendimentos em ramos diferentes, basta para isso possuir o capital necessário. Assim, o crescimento das companhias por ações, como o crédito, ao invés de tornar acessível os benefícios da grande produção a muitos pequenos poupadores, na visão de Kautsky, seria ao contrário o meio de colocar à disposição do grande capitalista a propriedade desses pequenos poupadores. Mais importante, na companhia acionária, “[...] a pessoa do capitalista não tem papel, e a única coisa que importa é seu capital” (KAUTSKY, 2000).

Tendência da produção capitalista: crescimento dos estabelecimentos produtivos, aumento das grandes fortunas, a diminuição do número de estabelecimentos, e a concentração de diferentes empresas nas mãos do mesmo capitalista levam à concentração dos meios de produção por um número cada vez menor de grandes capitalistas. O resultado limite seria a concentração de todos os meios de produção nas mãos de um único capitalista ou de uma gigantesca corporação por ações, o que levaria ao fim do capitalismo: “The private ownership of the means of production leads, under the capitalist system, to its own destruction! Its development takes the ground from under itself.” (KAUTSKY, 2000).

Kautsky nota que tal situação é impossível, porque a mera aproximação a esse estado de coisas tornaria os sofrimentos e antagonismos sociais insuportáveis e a sociedade se destruiria. Mas, não obstante, essa seria a direção para a qual a sociedade capitalista caminha. Quanto mais seu desenvolvimento aproxima-se do ponto limite para o qual tende, mais se aproxima a revolta das classes exploradas e a revolução social.

Não é difícil ver nessa ilustração geral aquilo que Bernstein chamou de “teoria do colapso”. A visão difusa do Manifesto Comunista é mantida e desenvolvida: a polarização da luta de classes e o acirramento dos antagonismos sociais, levando à revolução, são o resultado do processo de acumulação capitalista. Mas qual o papel das crises nisso? Tal como no Manifesto, em The Class Struggle se apresenta uma tendência à piora progressiva das crises e seus efeitos que aponta para a dissolução do modo capitalista de produção. E Kautsky apresenta essa tendência por meio de sua teoria de uma “superprodução crônica”.

Kautsky (2000) vê as crises industriais como ocorrências periódicas surgidas da superprodução de mercadorias, cuja causa seria “a falta de planejamento que inevitavelmente caracteriza nosso sistema de produção de mercadorias”. As crises seriam parte do ciclo industrial normal. Dentro da indústria, alguns setores se destacam, e quando esses setores recebem um impulso (seja, por exemplo, a expansão para novos mercados ou investimentos públicos, como nas ferrovias) a economia toda é impulsionada. Outros setores se beneficiam, novas oportunidades de investimento surgem, a demanda geral cresce (junto com os lucros, a renda e os salários) e a confiança aumenta. Então o crédito e os investimentos crescem de forma ilimitada acompanhando a euforia geral para que não se perca a oportunidade de lucro. No entanto, após a demanda inicial (e a derivada) ser satisfeita, a produção continua crescendo para além da demanda. Os estoques, então, começam a se acumular, e quando uma quantidade suficiente de mercadorias não pode ser vendida, o efeito é revertido. Os comerciantes precisam pagar pelas mercadorias que adquiriram, mas como não conseguem vender não possuem o dinheiro para isso. Os capitalistas industriais, por sua vez, não recebem o valor das mercadorias produzidas, e assim não conseguem honrar as dívidas que foram contraídas para a sua produção. “Thus one bankruptcy follows another until a general collapse ensues. The recent blind confidence turns into an equally blind fear, the panic grows general, and the crash comes.” (KAUTSKY, 2000)9. Como consequência da crise cresce a incerteza e se reforçam os efeitos negativos do desenvolvimento capitalista tanto sobre os trabalhadores como sobre a classe proprietária: falência dos capitais mais frágeis, expropriação dos pequenos proprietários, concentração da produção e acumulação de grandes fortunas, desemprego, aumento da prostituição e do crime, etc.

É significativo que, nesse arcabouço, a explicação das crises encontre-se inteiramente na “falta de planejamento” do capitalismo, que leva à incapacidade de correta estimação da demanda por parte dos capitalistas e, assim, possibilita que as flutuações no nível de produção e demanda transformem-se em crises. Nesse nível, trata-se mais de uma constatação descritiva do caráter cíclico das crises que propriamente de uma explicação teórica. Mas Kautsky fornece ainda uma teoria do agravamento progressivo das crises e sua relação com os limites do capitalismo: a tendência à “superprodução crônica”.

Segundo Kautsky (2000), se o capitalismo é recorrentemente atingido por crises de superprodução, subjaz a essas crises uma tendência à superprodução crônica que agrava as crises, dificulta cada vez mais a saída das crises e aproxima a revolução social. O capitalismo não pode permanecer estacionário: a constante revolução nas forças produtivas prossegue ilimitadamente e, assim, a acumulação e a expansão da produção tornam-se um imperativo. Desse modo, há uma pressão permanente para o incremento ilimitado da produção, sem levar em consideração a extensão mercado. Mas o mercado, ao contrário, tem sua extensão limitada, tanto externa como internamente. O desenvolvimento capitalista proletarizou as populações locais e se expandiu a ponto de tornar o mercado virtualmente global. Como resultado, o poder de compra da população diminui e o assentamento das bases para a produção capitalista em áreas não-capitalistas lança novos concorrentes no mercado mundial: Japão, Rússia, China e Austrália aparecem como novos pólos industriais, não mais como mercados a serem descobertos. Nesse estágio, a expansão do mercado não consegue mais acompanhar o ritmo da produção, tornando cada vez mais difícil para o capitalismo desenvolver plenamente sua capacidade produtiva. Os intervalos de prosperidade diminuem e a duração das crises aumenta. Não apenas uma quantidade cada vez maior de forças produtivas torna-se ociosa ou é descartada, mas também a força de trabalho: cresce o desemprego e a miséria entre os trabalhadores. “O sistema capitalista começa a sufocar no seu próprio excesso” (KAUTSKY, 2000). Quando as potências mundiais não conseguirem mais expandir o mercado para seus produtos, e esse mercado começar a se contrair, todo o sistema capitalista irá à bancarrota.

Daí o juízo taxativo sobre a inevitabilidade da derrocada. Mas apesar do fato de que o desenvolvimento capitalista conforme exposto encontre seu limite último quando se esgotar o mercado mundial, o fator que deve levar o capitalismo ao seu fim continua sendo a luta de classes. Esta aprofundada pelas crises e pela limitação do mercado. Por isso, Kautsky nega que a teoria social-democrata entenda a Revolução como algo que prescinda da ação consciente dos homens e, antecipando a possível acusação de “passivismo” a essa teoria, delimita sua posição em termos claros:

When we declare the abolition of private property in the means of production to be unavoidable, we do not mean that some fine morning the exploited classes will find that, without their help, some good fairy has brought about the revolution. We consider the breakdown of the present social system to be unavoidable, because we know that the economic evolution inevitably brings on conditions that will compel the exploited classes to rise against this system of private ownership. We know that this system multiplies the number and the strength of the exploited, and diminishes the number and strength of the exploiting, classes, and that it will finally lead to such unbearable conditions for the mass of the population that they will have no choice but to go down into degradation or to overthrow the system of private property. (KAUTSKY, 2000)

“Quando nós declaramos que a abolição da propriedade privada dos meios de produção é inevitável, nós não queremos dizer que em uma bela manhã as classes exploradas irão descobrir que, sem sua ajuda, uma fada boa trouxe a revolução. Nós consideramos que o colapso do sistema social presente é inevitável porque nós sabemos que a evolução econômica, inevitavelmente, traz consigo as condições que irão compelir as classes exploradas a se rebelar contra esse sistema de propriedade privada. Nós sabemos que este sistema multiplica o número e a força dos explorados, e diminui o número e a força das classes exploraoras, e que ele finalmente levará a condições tão insuportáveis para a massa da população que eles não terão escolha a não ser deixar-se afundar em degradação ou derrubar o sistema de propriedade privada.” (KAUTSKY, 2000, tradução nossa)

A social-democracia alemã, levando adiante certas proposições de Marx e Engels, e especialmente do último, efetivamente construíra uma teoria do “colapso” do capitalismo.

Independente da negativa de Kautsky, o que se depreende de sua exposição do programa do partido é o fim inevitável do modo de produção capitalista pelo seu próprio desenvolvimento econômico, não de forma automática e sem participação dos homens, é certo, mas como resultado inescapável do acirramento dos antagonismos de classe. Seja qual for a forma assumida por esse “colapso”, e os sinônimos usados por Kautsky são numerosos o suficiente para que se possa usar esse termo, Bernstein corretamente apontou para sua existência como uma hipótese que determinara toda a visão teórica do SPD. Fica claro que a revolução proletária não apenas é inevitável para Kautsky, mas que ele a vê com grande urgência, com o inexorável desenvolvimento econômico rumando a passos largos para o fim do capitalismo. A tarefa da social-democracia, então, seria preparar a sociedade futura. E essencialmente nesse sentido, Bernstein tem razão em denunciar o caráter de “utopismo” dessa visão, tanto em relação à teoria como em relação às tarefas práticas que ela colocava, as quais o SPD certamente não estava à altura (isto é, a preparação da Revolução). Bernstein colocara um desafio difícil a seus colegas de partido. Ele mobilizara uma ampla gama de estatísticas e argumentos razoáveis, e precisava ser respondido em seus próprios termos. Ou seja, a intelectualidade social-democrata não podia negar sua “teoria do colapso”, mas precisava defendê-la contra o ataque revisionista, que parecia ter a realidade econômica a seu favor.

---
Fonte:

ALEXANDRE POSSIDENTE TAVEIRA: “TEORIAS MARXISTAS DA CRISE E A  “CONTROVÉRSIA DO COLAPSO”. (Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Economia da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Economia. Prof. Dr. Eduardo Augusto de Lima Maldonado Filho – Orientador). Porto Alegre, 2014.


Nota:

A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Direitos autorais:
Segundo Portaria n 5068, de 13/10/2010, da UFRS: “Os trabalhos depositados no Lume estão disponíveis gratuitamente para fins de pesquisa de acordo com a licença pública Creative Commons.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!