Lima Barreto, Leon Tolstói e o
Ideário Anarquista
A aproximação do escritor Lima
Barreto a Leon Tolstói se dá pelo viés da problemática social, principalmente
através das ideias libertárias, ideias essas que estão diretamente ligadas à
concepção de arte de ambos. Um dos fatos principais que os une é o fato de eles
conceberem a literatura como elemento fundamental para a transformação social,
pois a manejavam como uma arma afiada contra a sociedade burguesa, principal
inimiga do indivíduo, na visão dos autores.
Tanto Leon Tolstói como Lima Barreto
são vistos como anarquistas. Conforme Errico Malatesta (1853-1932), pensador e
militante anarquista italiano, a palavra Anarquia era, geralmente,
entendida no sentido de desordem, confusão; ainda hoje, ela é
entendida nesse sentido. A distinção entre a palavra e o conceito se faz
primordial para a compreensão.
É importante
ressaltar que a palavra Anarquia vem do grego e significa sem governo,
estado de um povo que se rege sem autoridade constituída; ela pode “[...] ser
usada para expressar a condição negativa de ausência de governo, quanto à
condição positiva de não haver governo, por ser ele desnecessário à preservação
da ordem” (WOODCOCK, 1983, p. 8).
Assim, anarquia, anarquismo,
anarquista são palavras que comportam um sentido denotativo e outro conotativo,
sendo necessário recorrer ao contexto em que estão inseridas para
determinar-lhes o significado. Errico Malatesta enfatiza que o erro não depende
da palavra, mas da coisa em si, e a dificuldade encontrada pelos anarquistas na
propaganda não depende do nome que eles se dão, mas do fato de que seu conceito
fere todos os preconceitos arraigados que o povo cria da função do governo ou,
como se diz, ordinariamente, do Estado (MALATESTA, 2001, p. 14). O anarquismo
defende a ideia de que o Estado não só faz mal ao indivíduo, como também é
absolutamente desnecessário e, portanto, dispensável. Errico Malatesta diz que
tudo que o “[...] governo faz é [...] dominação, e ordenado para defender,
aumentar e perpetuar seus próprios privilégios e aqueles da classe da qual é o
representante e o defensor” (MALATESTA, 2001, p. 29).
Leon Tolstói e Lima Barreto são
anarquistas por professarem essas ideias, podendo ser tachados de “niilistas” e
panfletários. Isso, porém, ocorre muito mais no âmbito do discurso do que
propriamente da ação. Não se faz necessário enfatizar que, para escritores de
atitude, tal qual Leon Tolstói e Lima Barreto, a ação é o próprio discurso.
“Niilista” diz-se da pessoa partidário do niilismo, enquanto que “Niilismo”
significa a redução a nada; absoluta descrença; sistema que tem partidários na
Rússia, que visa à destruição radical da ordem social estabelecida. Já,
panfletário, conforme consta no dicionário, significa: adj. Relativo a
panfleto; próprio de panfleto; (fig.) que emprega linguagem violenta; s.m.
aquele que faz panfletos; panfletista. Neste caso, se refere aos escritores no
sentido figurado, isto é, aquele que emprega linguagem violenta. Os atributos
que ambos recebem podem refletir-se de modo positivo tanto quanto negativo, o
que dependerá do receptor. Caso tenham o Estado, como receptor, ou melhor, os
representantes do governo, automaticamente, terão uma recepção que refletirá o
sentido negativo.
Lima e Leon Tolstói foram assim
classificados devido à disposição desses escritores em combater as instituições
que consideravam pervertidas, tais como a literatura, a arte, o jornalismo, a
política, a república, a igreja ortodoxa, a burguesia, o Estado e tudo o mais
que os desagradasse. Daí a associação de ambos ao ideário anarquista. Enfim, a
definição adequada do termo, relacionada à postura dos escritores, sempre
oscilou entre: anarquistas, comunistas, socialistas, libertários; embora esses
termos estejam interligados, pode-se dizer, então, que “revolucionários” os
definiria melhor. Contudo, ressalta-se que nenhum dos dois escritores gostava
de ser assim denominado, conforme veremos a seguir.
No que se refere a Lima Barreto, as
palavras de Francisco de Assis Barbosa (1952), biógrafo do escritor, embasam
tal definição: “É ele o anticonvencional. É o antiacadêmico. É ainda mais do
que isso: é o revolucionário” (BARBOSA, 1975, p. 240). Se, por um lado, Lima
Barreto se posiciona, praticamente desde o início de sua carreira literária, de
maneira anarquista, o mesmo não ocorre com Leon Tolstói. Membro da aristocracia
russa proprietária de terras, juntamente com Kropotkin e Bakunin, compunha o
trio mais ilustre dos teóricos anarquistas (MAGNONI, 1998, p. 57). Leon Tolstói
não se considerava um anarquista, mas um cristão. Anarquistas, para ele, seriam
aqueles que procuravam transformar a sociedade utilizando-se da violência.
Porém, sua rejeição ao Estado, à propriedade, à violência das leis, e o fato de
ser favorável a que os homens dispusessem sobre suas próprias vidas lhes
credencia à tradição libertária.
No Brasil, por volta de 1900, emerge
uma literatura social, cujo aparecimento coincide com as primeiras greves no
Rio de Janeiro. Esses romances e contos de conteúdo social representam, na
verdade, a expressão de ideias novas, que vinham da Europa, através de livros
franceses e de correntes imigratórias. Entre lavradores e operários,
principalmente italianos, desembarcavam, também, os anarquistas, muitos deles
já acostumados ao trabalho de agitação política. Exatamente nesse período,
conforme nos informa Brito Broca (2004, p. 169), constata-se que “[...] a voga de
Tolstói no Brasil conjugou-se com as atividades anarquistas e socialistas aqui
verificadas nas duas primeiras décadas do século XX” e, ao contrário do que se
esperava, o anarquismo, em sua maior parte, se ateve à literatura. Conforme
constatou Antonio Cândido (2000, p. 130), “[...] diferentemente do que sucede
em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que filosofia e as
ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito” e ainda, a literatura
“[...] preencheu a seu modo a lacuna, criando mitos e padrões que serviram para
orientar e dar forma ao pensamento” (CANDIDO, 2000, p. 131).
Para Brito Broca (2004), na ficção,
o resultado das obras produzidas a la anarquismo ou ainda a la
tolstoísmo não foi grande coisa. Nesses moldes, constam: “Regeneração” (1904),
de Manuel Curvelo de Mendonça (1870-1914); “A vitória da fome”, de Pausílipo da
Fonseca, publicado em folhetim de outubro a dezembro de 1911; “O cravo
vermelho” (1907), de Domingos Ribeiro Filho, entre outros. No geral, apresentam
uma inspiração libertária e tolstoiana. Ressalta-se que os romances de cunho
anarquista, basicamente, constituem-se de três elementos: a descrição de uma
sociedade burguesa, a apresentação e crítica das contradições dessa sociedade e
a projeção de uma sociedade utópica baseada nos preceitos do ideário anarquista
(FENERICK, 1997, p. 7).
Segundo Curvelo de Mendonça, os
escritores, a começar por ele mesmo, Fábio Luz, Domingos Ribeiro e Elísio de
Carvalho, eram os “discípulos de Tolstói” e seguidores de “Kropótkine”. Ao
falar do movimento socialista, no Brasil, no capítulo das influências, cita,
desde Jesus de Nazaré a Karl Marx e Kropotkin, passando por Babeuf, Cabot,
Fourier, Proudhon, Ruskin e Leon Tolstói. Aos “discípulos de Tolstói” e
seguidores de “Kropótkine” se junta o escritor Lima Barreto, pois, ao
iniciar-se nesse período nas letras, já demonstra estar a par dessas leituras,
pois as cita tanto nas obras de ficção quanto nas crônicas e artigos para os
jornais. E elas constam no relatório da Limana, incluindo a Revue des Deux
Mondes, Mercure de France ou a “última brochura de Félix Alcan”.
Os escritores Fábio Luz, Domingos
Ribeiro Filho e Curvelo de Mendonça, representantes da chamada Literatura útil,
de caráter libertário, participaram da criação da revista Floreal, da
qual Lima Barreto foi o maior responsável. Como se vê, a aproximação entre
esses escritores não é gratuita, ocorre por compartilharem interesses e ideias
voltados para o social. Interesses e ideias que estão explícitos na
apresentação da revista Floreal:
Não
se trata de uma revista de escola, de uma publicação de “clã” ou maloca
literária [...]
Não
se destina pois a Floreal a trazer a público obras que revelem uma estética
novíssima e apurada; ela não traz senão nomes dispostos a dizer abnegadamente
as suas opiniões sobre tudo o que interessar a nossa sociedade, guardando as
conveniências de quem quer ser respeitado. É uma revista individualista, em que
cada um poderá, pelas suas páginas, com a responsabilidade de sua assinatura,
manifestar as suas preferências, comunicar as suas intenções, dizer os seus
julgamentos, quaisquer que sejam. (BARRETO, 1956, v. XIII,
p.181-182).
O lançamento da revista Floreal
deu-se em 1907, e essa postura crítica, franca e livre, Lima Barreto
apresentará tanto na ficção quanto na vida pessoal. “Dizer abnegadamente as
suas opiniões sobre tudo o que interessar a nossa sociedade”, “com a
responsabilidade de sua assinatura”, “manifestar suas preferências, comunicar
as suas intenções, dizer os seus julgamentos, quaisquer que sejam”, estas são
regras de compromisso, de seriedade, principalmente, de sinceridade. Apesar da
revista Floreal não ter passado da quarta edição, Lima procurou seguir
essas regras à risca em seu projeto literário. Embora se expondo e
comprometendo-se por defender suas ideias, nem sempre vistas com bons olhos,
Lima, ainda assim, resguardava-se, e só depois de ter se aposentado do serviço
de amanuense da Secretaria de Guerra é que se sentiria livre para dizer tudo o
que queria.
Mesmo assim, não deixou de criar
romances notadamente com uma preocupação social. O estigma da cor marca toda a
obra de Lima Barreto e, conforme Monteiro Lobato, Lima introduziu, em nossa
literatura, a “crítica social, sem doutrinarismos dogmáticos”, o que, de certo modo, aproxima-o da ficção da década de 1930.
Ou melhor, Lima adianta em suas obras a preocupação com o social, tema que,
somente depois, será retomado pelos romancistas.
Já a adesão de Leon Tolstói ao
ideário anarquista, ou melhor, sua revolta contra o Estado, torna-se explícita
e toma um caminho sem volta, em 1857, por ocasião de sua estada em Paris,
quando assiste, no dia 25 de março, a uma execução pública na guilhotina e, a
partir de então, vê o mal que o Estado pratica em nome da ordem. Em carta a V.
P. Botkin, escreveu: “Lei do homem - que absurdo! A verdade é que o Estado é
uma conspiração designada não só a explorar, mas acima de tudo a corromper seus
cidadãos... Eu nunca vou servir qualquer tipo governo em lugar algum” (SHIRER,
1996, p.53). Esse fato perseguiu Leon Tolstói o resto de sua vida. Em suas Confissões,
vinte e dois anos mais tarde, o escritor retomou essa recordação e, imbuído de
suas preocupações morais, tornou-se mais enfático: “Compreendi, não pela razão,
mas por todo o meu ser, que nenhuma teoria sobre a racionalidade da ordem
existente e do progresso poderia justificar tal ato” (TOLSTÓI apud ZWEIG, 1967,
p. 31). Conforme Stefan Zweig (1967, p. 15): “Do pesquisador nasceu um crente,
do crente um profeta, e do profeta ao fanático não há mais do que um passo”.
Constata-se que, de fato, a evolução
de Leon Tolstói deu-se de forma gradativa, pois, quando assistiu à execução em
Paris, estava com 29 anos. A partir daí, até os 50 anos, época em que, de fato,
Leon Tolstói toma consciência do sofrimento da humanidade, ele vive um período
feliz com sua família e suas obras. Por volta dos 50 anos, Leon Tolstói passa
por uma crise existencial e escreve seu primeiro livro doutrinal, “Minha
Confissão”, que é interditado pela censura; e o segundo, “Minha Fé”, pelo Santo
Sínodo, o que resulta na excomunhão do escritor. Conforme Zweig (1967, p. 15),
“[...] Tolstoi, desde então, dirigiu-se para um caminho que o transforma,
irresistivelmente, no inimigo mais resoluto do Estado, no anarquista e no
adversário da coletividade mais apaixonado da época contemporânea”. Para Zweig,
Leon Tolstói posiciona-se de forma mais contundente que os reformadores Lutero
e Calvino, ou ainda, no domínio social, os anarquistas mais audaciosos, como
Steiner e os de sua escola. De pesquisador do Evangelho, transforma-se em
anarquista radical; se, antes, deixara a Igreja Ortodoxa, agora, abandona
moralmente a comunidade do Estado, “o verdadeiro Anticristo” na terra.
A partir de então, destaca-se o Leon
Tolstói doutrinário, o profeta de uma nova religião: “o tolstoísmo”, tendo por
princípio a “não-violência”. Para Stefan Zweig, o “homem-cristão”, de Leon
Tolstói é “O anarquista puro”. Mas como será esse “anarquista puro”?
O que ele pensa e faz? Antes, porém,
é necessário recorrer à distinção entre sua revolta religiosa – a de um
“cristão puro” – e a atividade dos profissionais da luta de classes, aliás,
feita pelo próprio Leon Tolstói.
Quando encontramos revolucionários,
pensamos muitas vezes, erradamente, que há pontos de contacto entre eles e nós.
Uns e outros, gritamos: abaixo o Estado, abaixo a propriedade individual,
abaixo a injustiça e muitas outras coisas. No entanto, uma grande diferença nos
separa: para o cristão não existe Estado, enquanto eles querem aniquilar o
Estado. Para o cristão todos os homens são iguais, enquanto pretendem destruir
a desigualdade. Os revolucionários combatem exteriormente o governo, enquanto o
cristianismo não o combate de nenhum modo mas sim destrói os fundamentos do
Estado, interiormente. (ZWEIG, 1967, p. 21).
“O homem cristão” de Leon Tolstói e
os “revolucionários da luta de classes”, embora tenham os mesmos objetivos – a
luta contra o Estado, contra a propriedade individual, contra a injustiça e a
desigualdade social –, divergem, devido à forma de ação e reação praticada por
eles, ser diferente. A revolução religiosa é bem mais perigosa, porque “destrói
os fundamentos do Estado, interiormente”. Para Leon Tolstói, é mais importante
a passividade do que a violência coletiva dos revolucionários, pois ele visa uma
revolução de almas e não de punhos. Leon Tolstói acredita que, para mudar a
ordem do mundo, primeiramente é necessário que os homens se modifiquem a si
mesmos.
O “homem cristão” Leon Tolstói, que
reflete sobre a importância da arte e escreve “O que é a Arte?” (1898), texto
no qual apresenta suas novas ideias e atitudes para com a criação literária, é
o grande influenciador de Lima Barreto. É justamente nesse “homem cristão” e em
sua concepção de arte que se encontram fortes indícios de aproximação à concepção
de arte de Lima Barreto e Leon Tolstói. Ver-se-á, porém, em primeiro lugar, a
aproximação que ocorre entre ambos através das ideias libertárias. Isto é,
algumas preocupações manifestadas pelo escritor Lima Barreto que fazem parte
também das reflexões de Leon Tolstói, “o anarquista puro”.
Lima Barreto, na crônica “Homem ou
boi de canga?”, manifesta-se contrário ao serviço militar obrigatório, não
aceita que, em nome da defesa da pátria, milhares de homens sejam levados aos
campos de batalha a dar tiros uns contra os outros, colocando suas próprias
vidas em risco, sem terem a mínima noção do por quê estavam ali. Nessa crônica,
narra que, em 1893, aos doze anos de idade, quando do episódio da Revolta da
Armada, soube pela boca de seu pai que um dos homens indagara o motivo da
contenda entre Floriano Peixoto e Custódio de Mello. Esse acontecimento
marcou-o profundamente:
Esse pequeno fato, que podia passar
completamente despercebido, feriu-me imensamente naquela fraca idade que eu
tinha então. Nunca pude imaginar que um homem arriscasse sua vida sem saber
porque, nem para que. Pareceu-me isto estúpido e indigno mesmo da condição de
homem. Um ato desses, de jogar a própria existência devia ser perfeitamente
refletido e consciente. Ficou-me o fato; e, anos depois, muitos anos mesmo,
quando fui ler o formidável – Guerra e Paz de Tolstói, encontrei uma
cena, não idêntica, mas do mesmo fundo. Não me recordo bem como é; mas dela se
desprende que o soldado nada sabe dos motivos por que combate.
E assim é feita a guerra.
As massas de combatentes, homens
simples e sem luzes, em geral, não sabem nitidamente porque dão tiros uns
contra os outros.
Às vezes, os seus chefes e diretores
conseguem instilar no espírito deles vagos motivos patrióticos... (BARRETO,
1956, v. IX, p. 274).
Desse modo, é impossível fazer a
leitura dessa crônica sem recorrer à fonte explícita, no texto: Guerra e Paz,
de Leon Tolstói; quem já a conhece sentir-se-á contemplado, e quem não a
conhece será induzido à leitura. A crônica de Lima Barreto “dialoga” com a
maior obra de Leon Tolstói e, ao reafirmar a relevância do que é posto em
questionamento – “a condição de homem” – no texto tolstoiano, demonstra sua
visão crítica dos acontecimentos históricos. Ao citar Guerra e Paz,
embora dizendo “Não me recordo bem como é”, traz à tona toda a essência do
texto tolstoiano que se reatualiza na crônica barretiana na qual enfatiza a
condição de homem, a crítica à guerra e à filosofia da história, reflexões
caras a Leon Tolstói.
Lima Barreto compartilha de um
sentimento precioso ao movimento libertário, que, historicamente, sempre se
posicionou contra o militarismo, as guerras e o envio compulsório de cidadãos
trabalhadores aos campos de batalha. Tal sentimento está presente em Leon
Tolstói, que também se opunha radicalmente ao serviço militar obrigatório. A
opinião tolstoiana era a de que os governos garantem que o exército serve,
basicamente, para proteger o país do ataque de inimigos externos, mas isso não
é verdade. Ele é necessário, antes de qualquer coisa, contra os próprios
cidadãos, e todos os homens que prestam serviço militar tornam-se,
involuntariamente, cúmplices em atos de violência que o governo inflige aos
seus súditos. Para Leon Tolstói, o serviço militar obrigatório é “[...] o
último estágio da violência que o governo utiliza para manter íntegra a
estrutura do poder e é o limite extremo a que pode chegar a submissão. Ele é a
pedra angular do arco que mantém de pé o edifício e sua remoção derrubaria todo
o sistema...” (TOLSTÓI apud WOODCOCK, 1981, p. 190-191).
Outro ponto, a aproximar Lima
Barreto e Leon Tolstói, ocorre através da Revolução Russa de 1917, pois Lima
foi um dos primeiros escritores a se manifestar sobre essa revolução, no
Brasil. Sua significação histórica e suas consequências para o mundo inteiro
foram abordadas, por Lima, em vários artigos. Enquanto Leon Tolstói, na visão
de Stefan Zweig, devido a seu radicalismo intelectual, foi o “[...] precursor,
o verdadeiro predecessor da revolução russa” (ZWEIG, 1967, p. 25).
Conforme Astrojildo Pereira, em “No
ajuste de contas...”, artigo datado de 1º de maio de 1918, Lima Barreto faz uma
espécie de manifesto político, tornando público seu programa revolucionário, no
qual “[...] expõe com franqueza as suas ideias e propõe uma série de medidas,
que a seu ver viriam resolver os problemas políticos, econômicos e sociais
colocados na ordem do dia” (PEREIRA, 1961, p. 15). Questões pertinentes e
coerentes com o pensamento de Lima, que, ao se referir a nossa “burguesa
finança governamental”, critica-a por aumentar os impostos e cortar o quadro de
amanuenses e serventes para equilibrar os orçamentos; chama o presidente à
responsabilidade de coibir os arroubos administrativos de cada ministro, alerta
para a “pesada massa de impostos” que recai sobre os gêneros de primeira
necessidade e, principalmente, recai “sobre a quase totalidade da população
brasileira que é de necessitados e pobríssimos”. A crítica à política e ao
desenvolvimento econômico de São Paulo vem à tona, pois o escritor observa que ele
“é guiado pela seguinte lei: tornar mais ricos, os ricos; e fazer mais pobres,
os pobres.” Apesar da crítica aos políticos, procura não generalizá-la,
ressaltando que, muitos deles, assim agem por “mero vício de educação”. Como
não poderia deixar de fora, refere-se também à “abolição da escravatura negra”,
na qual, segundo Lima, ocorreu fenômeno semelhante, pois, embora muitos se
dissessem abolicionistas, eram, antes, escravocratas e tinham a propriedade
como algo inviolável e sagrado.
Lima, tal qual Leon Tolstói,
posiciona-se contra a propriedade, a Igreja e o Estado, observando que os
fundamentos da propriedade estavam passando por uma revisão. Para Lima:
A propriedade é social e o indivíduo
só pode e deve conservar, para ele, de terras e outros bens tão-somente aquilo
que precisar para manter a sua vida e de sua família, devendo todos trabalhar
da forma que lhes for mais agradável e o menos possível, em benefício comum.
(BARRETO, 1956, v. IX, p. 90).
O escritor critica a atuação do
Estado em relação aos “atrozes impostos” que esmagam os que nada têm;
manifestando-se, devido a isso, contra a monopolização de terras por parte da
Igreja, “meia dúzia de sujeitos espertos e sem escrúpulos”, “em geral
fervorosos católicos”; propõe reformas que, a seu ver, seriam a solução: “[...]
uma revisão draconiana nas pensões graciosas, uma reforma cataclismática no
ensino público, suprimindo o ‘doutor’ [...]; a confiscação de certas fortunas,
etc., etc.” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 96). Estende sua critica à atuação da Igreja
frente à situação da escravidão, pois acreditava que ela não influenciava seus seguidores tanto quanto
deveria.21 Lima sempre se demonstra preocupado em respaldar seus
pontos de vista e suas opiniões, citando os teóricos lidos, como forma de dar
credibilidade ao que diz e, até mesmo, de auto-afirmação. Nesse mesmo artigo,
“No ajuste de contas”, cita Bastiat e sua obra Mélanges d’Économie
Politique, “[...] porque foi sua leitura que me fez considerar e analisar
melhor certos fatos e não ficar como o grosso do povo preso ‘ao que se vê’, sem
procurar a verdadeira explicação no ‘que não se vê’” (BARRETO, 1956, v. IX, p.
91). Enfim, posiciona-se abertamente contra a política, o Estado, a Igreja,
para finalmente confessar que sua inspiração para o artigo partiu da Revolução
Russa.
Em outro artigo, datado de julho de
1918, intitulado “Vera Zassúlitch”, retoma a Revolução Russa como tema de suas
reflexões e demonstra sua avaliação ao dizer que “[...] a Revolução Russa
abala, não unicamente os tronos, mas os fundamentos da nossa vilã e ávida
sociedade burguesa” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 72). Acrescenta, ainda: “Não
posso negar a grande simpatia que me merece tal movimento; não posso esconder o
desejo que tenho de ver um semelhante aqui, de modo a acabar com essa
chusma...” (p. 72). Mais uma vez, ressalta que “Precisamos deixar de panacéias;
a época é de medidas radicais” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 73). De certa forma,
Lima quer reafirmar suas sugestões de reformas manifestadas no artigo citado
anteriormente. E continua avaliando os acontecimentos políticos na Rússia: “Não
há quem [...], não lobrigue nele uma profunda e original feição social e um
alcance de universal interesse humano e de incalculável amplitude sociológica”
(p. 73). Nesse mesmo artigo, Lima demonstra-se defensor de Vera Zassúlitch, uma
militante russa que, além de ser encarcerada, foi designada como louca: “[...]
o que nos interessa, é o caráter dessa mulher, é a sua abnegação, é o seu
sacrifício em prol do sofrimento de outrem que ela absolutamente não conhecia”
(BARRETO, 1956, v. IX, p. 77). Mais uma vez, Lima demonstra estar a par dos
acontecimentos políticos e sociais da Rússia e avalia-os sempre como situação
paralela à do Brasil.
Em, “Sobre o maximalismo”, artigo
datado de março de 1919, Lima reafirma a defesa da Revolução de Outubro e
levanta polêmica com o famoso escriba Azevedo Amaral, editor de O País,
órgão conservador e oficioso. A seu ver, Azevedo Amaral era protegido pela
fama, até certo ponto merecida, mas que já estava extrapolando, pois falava
coisas sobre a revolução russa que não condiziam com os fatos. Questiona e
contrapõe-se ao fato de Azevedo Amaral ter chamado Jean Jacques Rousseau de
“[...] anarquista, ou que o anarquismo tinha origem na ‘filosofia sentimental e
chorosa’ do autor do Contrato Social” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 157). Lima
Barreto, assim como Leon Tolstói, era admirador e leitor extremado de J. J.
Rousseau, ambos nutriam muito mais que admiração pelo escritor, além de
professarem a ideia roussoniana de que o homem é bom e quem o corrompe é a
sociedade. Esses autores, em suas respectivas obras, fizeram um pacto em prol
do homem simples, do povo, como sendo modelo a ser seguido e cultuado. Leon
Tolstói chegou, inclusive, a usar um pingente com a foto do mestre, que carregava
ao pescoço como um talismã, já Lima Barreto almejava escrever uma grande obra,
confissão, essa, feita por intermédio de seu personagem Gonzaga de Sá: “Se eu
pudesse, se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim
um Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor, de violência, de
força, de coragem calculada, que lhes corrigisse a bondade e a doçura
deprimente” (BARRETO, 2001, p. 615).
Em, “Sobre o maximalismo”, reafirma
as quatro medidas sugeridas no artigo “No ajuste de contas”: supressão da
dívida externa, confiscação dos bens das ordens religiosas, extinção do direito
de testar e estabelecimento do divórcio e reafirma que “[...] todo o mal está
no capitalismo, na insensibilidade moral da burguesia, na sua ganância sem
freio de espécie alguma, que só vê na vida dinheiro [...]” (BARRETO, 1956, v.
IX, p. 163).
Buscou-se, aqui, demonstrar o
cruzamento de ideias entre Lima Barreto, Leon Tolstói e o ideário anarquista,
concretizada no cruzamento de vozes. A julgar pelo teor de seus escritos, é
possível dizer que a firme resolução de ambos de colocar em prática os
respectivos desejos e vontades, principalmente a de auto-afirmação, independe
de fatores externos, e, sim, constitui uma característica imanente dos escritores,
pois eles fizeram da literatura uma permanente arma de combate.
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Fonte:
ZÉLIA
RAMONA NOLASCO DOS SANTOS FREIRE: “A CONCEPÇÃO DE ARTE EM LIMA BARRETO E LEON
TOLSTÓI: DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS”. (Tese apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a
obtenção do título de Doutor em Letras - Área de Conhecimento: Literatura e
Vida Social. Orientadora: Profa. Dra. Sílvia Maria Azevedo). Assis, 2009.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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