Essa crítica de Friedrich Wilhelm Nietzsche ao darwinismo, além de divertida, faz transparecer um pouco o modo como o naturalista inglês Charles Darwin concebia a evolução ao seu tempo, ou seja, uma “evolução” do tipo progressista, bem típica de filósofos como Herbert Spencer. O texto fora extraído de “A Vontade de Potência”, de Nietzsche, é claro.
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Contra o darwinismo.
A utilidade de um órgão não explica a origem; bem ao contrário!
Enquanto é formada uma quantidade ela não conserva o indivíduo e nem lhe é útil, pelo menos na luta contra as circunstâncias exteriores e os inimigos. Que quer dizer útil, afinal de contas? E mister perguntar: “útil com relação a quê?”
O que, por exemplo, é útil à duração do indivíduo poderá ser desfavorável à sua força e esplendor; o que conserva o indivíduo poderá simultaneamente retê-lo e imobilizá-lo na evolução. Por outra parte, um vício de conformação, uma degenerescência podem ser de maior utilidade, no sentido em que atuem como estimulantes dos outros órgãos. Da mesma sorte, um estado de necessidade pode ser uma condição de existência, no sentido que rebaixa o indivíduo a uma proporção em que se firma e não se desperdiça. — O indivíduo é o campo de batalha de suas diferentes partes (para a alimentação, espaço, etc.): sua evolução está ligada à vitória, à predominância de determinadas partes, ao perecimento, à transformação em órgãos de outras determinadas partes.
A influência das “circunstâncias exteriores” foi absurdamente exagerada por Darwin: o que há de essencial no processo vital é precisamente a imensa potência formadora, que cria formas de dentro para fora, que utiliza e explora as “circunstâncias exteriores”. As novas formas criadas de dentro para fora, não são formadas em vista de uma finalidade; mas, na luta das partes, uma forma nova não permanecerá por muito tempo sem relação com uma utilidade parcial, e com o decorrer do tempo, conforme o uso que dela faça, plasmará a si própria uma forma mais perfeita.
Anti-Darwin
Que valor definitivo pode ter a domesticação dos homens? Ou terá a domesticação sempre um valor definitivo? Existem razões para negarmos esta última proposição.
É verdade que a escola de Darwin fez grandes esforços para nos persuadir do contrário: ela quer que a influência da domesticação possa tornar-se profunda e até fundamental. Provisoriamente ficamos no passado: até hoje apenas foi demonstrada uma influência toda superficial da domesticação — ou ainda, a degenerescência. E tudo quanto consegue escapar-se da mão humana e de seu adestramento volve quase imediatamente ao seu estado natural. O tipo permanece constante: não se pode “dénaturer la nature”.
Confia-se na luta pela existência, na morte dos seres fracos e na sobrevivência dos mais robustos e melhor dotados; conseqüentemente imagina-se um aumento contínuo da perfeição dos seres. Em compensação temos comprovado que na luta pela vida, o acaso serve tanto aos fracos quanto aos fortes e que muitas vezes a astúcia supre o vigor com vantagem, que a fecundidade da espécie se encontra numa relação singular com as “chances” da destruição.
(...) tempo lentas e infinitas: querem crer que todo proveito transmite por hereditariedade e se manifesta nas gerações seguintes, com urna intensidade sempre maior (embora realmente a hereditariedade seja tão caprichosa...); encontram em certos seres a assimilação feliz às condições vitais determinadas e declaram que foi obtida por influência do ambiente.
Mas em nenhuma parte encontram exemplos de seleção inconsciente (de nenhuma espécie). Os mais díspares indivíduos unem-se, os mais extremos misturam-se à massa. Tudo concorre a manter seu tipo; os seres que possuem caracteres exteriores, que os protegem contra certos perigos, não os perdem quando submetidos às circunstâncias em que vivem sem perigo... Se transportados a lugares onde a roupagem cessa de escondê-los, absolutamente não se transformam para se reaproximarem do ambiente.
Exageraram a seleção dos seres mais belos a ponto que sobrepassaria em muito o instinto de beleza de nossa própria raça! Realmente o mais belo ajusta-se perfeitamente às criaturas deserdadas, o maior ao menor. Quase sempre vemos o macho e a fêmea aproveitarem-se de cada momento do acaso sem se apresentarem indecisos na escolha. — Há modificação pelo clima e pela nutrição, mas na realidade é diferente.
Não há formas intermediárias.
Pretendem que haja o desenvolvimento na evolução dos seres; mas falta qualquer fundamento a essa teoria. Cada tipo possui seus limites: além destes não há evolução. Até lá existe regularidade absoluta.
Minhas principais opiniões. — Primeira proposição: o homem como espécie não está em progresso. Realizam-se tipos superiores, porém não se conservam.
O nível da espécie não se eleva.
Segunda proposição: o homem, enquanto espécie, não realiza um progresso em comparação com qualquer outro animal. O mundo animal e vegetal, em seu conjunto, não se desenvolve do inferior ao superior... Tudo se faz ao mesmo tempo, a torto e a direito, superpondo-se, contrapondo-se... As formas mais complexas e mais ricas — a expressão “tipo superior” nada expressa a mais — perecem mais facilmente: só as inferiores mantêm seu caráter imperecível em aparência. As primeiras são realizadas com bastante raridade e mantêm-se dificilmente: as últimas têm a seu favor uma fecundidade comprometedora. Na humanidade também os tipos superiores, os casos felizes da evolução, com alternativas de boa e má sorte, perecem mais facilmente. São expostos a toda espécie de decadência; são extremos, e isso basta para torná-los quase decadentes... A curta duração da beleza, do gênio de César, é sui generis: tais qualidades não se transmitem por hereditariedade.
O tipo é hereditário; nada tem de extremo, não é um “lanço da sorte”... Não há nisso qualquer fatalidade particular, qualquer malquerer da natureza, mas simplesmente a idéia do “tipo superior”; o tipo superior representa uma complexidade infinitamente maior, — uma soma maior de elementos coordenados: eis por que a desagregação é infinitamente mais provável. O “gênio” é a máquina mais sublime que existe, — e por isso mesmo a mais frágil.
Terceira proposição: a domesticação (a “cultura”) do homem não atinge as camadas mais profundas... Em toda a parte onde penetra profundamente torna-se também degenerescência (o tipo de cristão). O homem “selvagem” (ou, para melhor expressar-me sob o ângulo moral, o homem mau) é um retorno à natureza — e, num certo sentido, um restabelecimento, uma cura da “cultura”...
O que mais me surpreende, quando passo em revista os grandes destinos da humanidade, é ter sempre diante dos olhos o contrário do que hoje vêem ou do que desejam ver Darwin e sua escola: a seleção em favor dos seres mais fortes e bem-nascidos, o progresso da espécie. Mas é precisamente o contrário o que entra pelos olhos: a supressão dos casos felizes, a inutilidade dos tipos melhor nascidos, a dominação inevitável dos tipos médios e até dos que estão abaixo da mediania. A menos que me demonstrem a razão que determina ser o homem exceção entre as criaturas, inclino-me a crer que a escola de Darwin errou em tudo. Essa vontade de potência, em que reconheço o fundo e o caráter de toda mutação, explica-nos por que a seleção não se faz precisamente em favor das exceções e dos acasos felizes: os mais fortes e os mais felizes são fracos, quando têm contra si os instintos organizados do rebanho, a pusilanimidade dos fracos e o grande número. Minha perspectiva total do mundo dos valores demonstra que, nos mais altos valores agora colocados acima da humanidade, não são os acasos felizes, os tipos de seleção que têm superado, mas os tipos de decadência. — Talvez nada haja de mais interessante neste mundo que este espetáculo indesejado...
Qualquer singularidade que haja em afirmá-lo, é mister sempre pôr em valor os fortes contra os fracos, os bem-nascidos contra os mal-nascidos, os saudáveis contra os degenerados e os doentes por hereditariedade. Se se quer reduzir a realidade numa fórmula moral, essa moral expressar-se-ia assim: a média vale mais que a exceção, as formações da decadência mais que a média; a vontade do nada prevalece sobre a vontade de viver — e a finalidade geral é, desde já, qualquer que seja a maneira em que se queira expressar, cristã, budista ou schopenhaueriana: “Antes não ser, que ser.”
Revolto-me contra essa maneira de formular a realidade para fazer dela uma moral: eis por que detesto o cristianismo com um ódio mortal, porque criou palavras e atitudes sublimes para outorgar a uma realidade detestável o manto do direito, da virtude, da divindade.
Vejo toda filosofia, vejo toda ciência de joelhos diante da realidade de uma luta pela vida que é o contrário dessa que ensina a escola de Darwin, quero dizer que percebo em toda a parte, na primeira fila, sobrando os que comprometem a vida, o valor da vida. O erro da escola de Darwin tornou-se para mim um problema: como se pode ser tão cego para enganar-se justamente neste caso?... Pretender que as espécies representam um progresso, é a afirmação mais desarrazoada do mundo: provisoriamente representam um nível. Se os organismos superiores se desenvolveram dos organismos inferiores, nenhum exemplo ao menos o demonstra... Vejo que os inferiores têm a preponderância pelo número, pela astúcia, pelo ardil. Não vejo como uma mutação fortuita pode ser vantajosa, sobretudo numa espécie de tempo tão longa: pois então se precisaria explicar por que uma transformação fortuita adquiriu uma tal força.
Encontro em outra parte a “crueldade da natureza” da qual tanto se fala: a natureza é cruel para os favoritos da fortuna: ela alimenta e protege e ama os humildes. Em resumo, o aumento de potência de uma espécie está garantido menos talvez pela preponderância de seus favoritos, de seus fortes, que pela preponderância dos tipos médios e inferiores... Estes últimos possuem uma grande fecundidade e a duração; com os primeiros, aumenta o perigo, a destruição rápida, a diminuição do número.”
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É isso!
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