Karl Marx e Charles Darwin: além das barbas

O que haveria de comum entre Charles Darwin e Karl Marx, além das suas longas barbas?

É sabido que numa nota introdutória da segunda edição de "
O Capital", Karl Marx escreveu como dedicatória a Charles Darwin:

"A Charles Darwin, de um autêntico amigo seu".

Já o fiel companheiro de Marx, Engels, manifestou igualmente sua admiração a Charles Darwin, desta maneira: "A natureza não opera metafisicamente senão dialeticamente. O nome de Darwin deveria ser relembrado antes de mais nada neste aspecto”. E mais: "Da mesma forma como Darwin descobriu a lei da evolução na natureza orgânica, Marx descobriu a lei da evolução da humanidade”.
Bem. Embora pareça paradoxal atribuir alguma relação entre as ideologias darwinistas e comunistas, de algum modo esta última soube aproveitar muito bem das idéias do naturalista inglês, para enfeitar ainda mais seu arcabouço teórico. Mas, como exatamente?

Em "
As Idéias de Darwin" (Editora Cultrix, 1982), que tenho aqui em mãos, Wilma George justifica este aproveitamento:

"
O próprio Marx, pregando, por um lado, a revolução, defendia, de outro, uma forma de evolução: que os sistemas sociais mutáveis mudavam os sistemas político e económico e que estes, em contrapar­tida, mudavam os sistemas sociais, e assim por diante. Isso se devia mais a dialética hegeliana do que ao darwinismo, mas Marx tinha em grande jconsideração a Origem: "o livro de Darwin é muito importante" — : escreveu ele - "e me convém que sustente a luta de classes na história do ponto de vista da ciência natural. Tem-se, é claro, que tolerar o tosco método inglês de discurso". Foi uma teoria materialista que incorporou a ideia da mudança num dado período de tempo, selecio-nada a partir de variações motivadas pelo meio ambiente. Mas isso estava muito longe de fornecer um argumento para o marxismo, como Engels foi o primeiro a perceber. O materialismo dialético foi mudan­ça e movimento durante um período de tempo, mas estava longe do gradualismo... O gradua­lismo e a variação individual seriam ignorados, a mudança, o materia­lismo e a hereditariedade dos caracteres adquiridos foram aceitos" (p. 102).


Já em seu interesantíssimo livro "Polemos: Uma análise crítica do darwinismo", o ex-professor da Universidade de Brasília (Unb), José Osvaldo de Meira Penna, dedica um capítulo todinho sobre a questão. Destaco aqui alguns dos principais pontos :

"
É verdade que Marx teria desejado dedicar uma de suas obras a Darwin. No Dos kapitalprocurou construir os fundamentos metodológicos de sua vi são materialista da história, acentuando que "Darwin despertou nosso inte resse na história da tecnologia natural, isto é, na formação dos órgãos das plantas e dos animais, como instrumentos de produção para sustentar a vida". A partir desse ponto, Marx argumenta se o desenvolvimento dos órgãos pro dutivos do homem, dos que serviriam de base material à organização social, não mereceria atenção especial. Aparentemente, o que aconteceu é que ape nas se entusiasmara com o potencial revolucionário da doutrina do biólogo inglês, sem levar em conta seu fundamento na realidade. O darwinismo pa recia comprometer a religião e atingia em cheio o "ópio do povo", reforçan do uma concepção paralela à dialética hegeliana que adotara e transformara numa "dialética materialista" - o que quer que queira isso dizer. Bastava esse paralelismo aparente para lhe merecer os mais calorosos aplausos. Não per cebia que suas consequências não se encaminhavam, logicamente, para um objetivo condizente com a substituição do capitalismo pelo socialismo - o qual, por definição, procura justamente eliminar a concorrência e o "egoís mo" inerente à "luta" entre os produtores individuais, eliminando qualquer possibilidade de seleção natural.

Além disso, em Darwin encontrava Marx argumentos para sustentar
suas convicções tenebrosas a respeito da luta de classe, a qual, necessariamente, terminaria numa revolução sangrenta com o triunfo daclasse mais capaz ou seja, do proletariado. Após essa vitória final, cessaria comopor encanto todo conflito social e a história encontraria seu final glorioso...

Em carta a Engels de 19 de dezembro de 1860, um ano depois da publicação de
A origem das espécies, Marx informa a seu dileto amigo que, "durante meu tempo de provações, nas quatro últimas semanas, li toda espécie de coisas. Entre outras, o livro de Darwin sobre a seleção natural. Malgrado seu inglês pesado, esse livro contém o fundamento natural de nossa teoria". O que Marx deseja aí salientar, sem se estender sobre as consequências últimas de sua afirmação, é que o "fundamento natural" do darwinismo seria a justificação do princípio que consta logo no início do Manifesto Comunista de 1848: "A história de toda sociedade até hoje existente é a história da lula de classes". Dois pontos, nesse sentido, seriam essenciais na simpatia de Marx por Darwin: o de que o biólogo confirmava a sua tese geral do conflito polemos - como constituindo o princípio central da vida em sociedade; e o de que a teoria da evolução contribuía para derrubar o criacionismo cristão e toda espécie de fé religiosa. A visão é extremamente estreita. A comunidade filosófica entre ambos seria, unicamente, o materialismo ateu. A partir daí, tudo divergia entre as duas linhas de pensamento...

Essas parcas citações em que se encontram referências a Darwin na correspondência de Marx parecem confirmar que o grande economista, "profeta" e pensador da "ciência" socialista muito pouco entendeu, em última análise, das implicações filosóficas do darwinismo. O mesmo iria acontecer com a maior parte dos discípulos de Marx. Estes só perceberam no darwinismo seu conteúdo revolucionário, como doutrina dirigida contra os preconceitos religiosos da burguesia conservadora vitoriana. Em fins do século, um criminologista italiano, E. Ferri, ao elogiar a teoria marxista do determinism económico, acentuaria que "o socialismo científico é simplesmente a aplicacão lógica dos postulados de Darwin e de Spencer ao campo da economia política e da sociologia". O mal-entendido é total, a ingenuidade da
sancta simplicitas do mesmo modo.

Marx apontou mais ainda para a dívida de Darwin em relação a Malthus. Mas Marx detestava Malthus. Negava-se teimosamente a reconhecer a corre-ção da tese malthusiana de que existe e existirá sempre uma pressão inexorável da população, em determinado território, em relação ao espaço e aos recursos
escassos. Marx não foi a ponto de associar a concepção de Malthus à de Durwin - o primeiro um pastor protestante e o segundo, filho de pastores -com o substrato religioso do pensamento de ambos. Mas podemos acentuar que tal dependência existe. O contraste filosófico entre Darwin e Marx se pren de, assim, à postura existencial inconscientemente calvinista do primeiro, se gundo a qual o mundo é um campo de prova ou de batalha em que a alma se tempera no sofrido exercício da virtude, ao passo que o segundo, sem o saber, mergulha as raízes de sua doutrina no apocaliptismo soteriológico e profético da tradição judeo-cristã. O mundo é efetivamente o cenário diabólico e perver so da luta e da injustiça. Mas ele, Marx, anuncia profeticamente o reino messiânico que vai transformar o mundo, com a supressão do conflito, da violência e da alienação...

A ruptura entre ambos
é intransponível. A tese de Darwin levaria aos extremos do darwinismo social e seria elaborada filosoficamente por Nietzsche, com sua visão alucinante do super-homem como telos glorioso da evolução; a tese de Hegel e Marx terminaria no postulado totalitário de uma sociedade coletivizada, estagnada, esclerosada, empedernida, sem perspecti vas de transformação. Hoje, com o liberalismo, triunfa Darwin, enquanto o cadáver de Marx, de fedor já insuportável, é finalmente enterrado no descalabro da ex-União Soviética e no novo desafio de um totalitarismo religioso impre visto, o do Islã".

Fonte:
José Osvaldo de Meira Penna. “Polemos: uma análise crítica do darwinismo. Editora UnB (da Universidade de Brasília). Brasília, 2006, p. 221-220.

É isso!

6 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Não verifiquei nenhuma semelhança entre as teorias, há uma regra que é irrefutável, "A ordem emerge da anarquia", e não da influência de uma instituição centralizadora, não havia um ser controlando a evolução, a teoria da evolução das espécies tem muito mais compatibilidade com o Anarco-capitalismo.

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    1. Você não entendeu Darwin, querido.

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    2. Para a teoria da evolução, naturalmente existe a seleção dos mais aptos, sendo desnecessário e até impraticável a substituição por um planejamento central.Da mesma forma, para um defensor do livre mercado, naturalmente o capitalismo seleciona os mais produtivos para a sociedade, sendo também desnecessária e impraticável a centralização de todas as decisões.Vcs é que não entenderam.

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  3. Eu fiz campanhas para políticos da ARENA (sou do tempo que existiam apenas ARENA E MDB). Fui filiado no Partido Liberal e achava interessante a existência do TRABALHO (SALÁRIO) PRODUTIVO E TRABALHO (SALÁRIO) IMPRODUTIVO.
    Fácil verificar que no Brasil quem sempre mandou desde 1500 foi o TRABALHO IMPRODUTIVO (Juizes, Promotores e capital rentista, que nada produzem). No final do ano de 2017 o (neo)Liberalismo foi pra merda. No mundo capitalista os religiosos que predominam se mostram grandes canalhas.
    CHARLES DARWIN quando esteve no Brasil escreveu no Diário do Beagle:
    3 de julho
    Fomos à cidade. Ao desembarcar, encontrei a Praça do Palácio repleta de gente em volta da casa de dois cambistas que haviam sido assassinados na noite de ontem de forma mais atroz que o normal. É bastante temeroso ouvir os crimes enormes cometidos diariamente e não punidos. Um escravo que assassinar seu senhor se tornará um escravo do governo após ser confinado por algum tempo. Já um homem rico pode estar certo de que estará livre dentro de pouco tempo, por maior que seja a acusação contra si. Todos aqui podem ser subornados. Um homem pode se tornar marinheiro ou médico ou qualquer outra profissão se puder pagar o bastante. Alguns brasileiros já declararam com seriedade que o único defeito que enxergam nas leis inglesas foi não identificar qualquer vantagem dos ricos e respeitáveis sobre os pobres e miseráveis.

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