Medindo cabeças


Com este título, Stephen Jay Gould intruduz um dos capítulos de seu recomendadíssimo livro “A Falsa Medida do Homem”, em que trata do fascínio das ciências humanas pelos números, no século XIX: “a fé em que as medições rigorosas poderiam garantir uma precisão irrefutável e seriam capazes de marcar a transição entre a especulação subjetiva e uma verdadeira ciência, tão digna quanto a física newtoniana. A evolução e a quantificação formaram uma temível aliança; em certo sentido, sua união forjou a primeira teoria racista "científica" de peso, se definirmos "ciência" erroneamente, como muitos” (p. 65).

Já de início, Gould (para quem não conhece, um dos mais respeitados darwinistas, que morreu em 1982), faz menção de uma frase de T. H. HUXLEY, o fiel amigo de Charles Darwin, frase esta na qual aparece a medição como fator para determinar a suposta superioridade do branco em relação ao negro:

“Nenhum homem racional, bem informado, acredita que o negro médio seja igual, e muito menos superior, ao branco médio. E, se isto for verdade, é simplesmente inadmissível que, uma vez eliminadas todas as incapacidades de nosso parente prógnato, este possa competir em condições justas, sem ser favorecido nem oprimido, e esteja habilitado a competir com êxito com seu rival de cérebro maior e mandíbula menor em um confronto em que as armas já não são as dentadas, mas as ideias” –
T. H. HUXLEY (P. 65).
Bem, diriam alguns: “esta mentalidade estava restrita a uma época na qual tais conceitos eram amplamente partilhados pela sociedade.

Pois bem. Estando a visitar um conhecido site de notícias (BBC), deparei-me com uma recente matéria em que de certa forma contradiz tal assertiva. Diz ela:

Agressão pode estar 'escrita no rosto', diz pesquisa
“As tendências agressivas de um homem podem ser identificadas nos traços de seu rosto, segundo um estudo realizado por pesquisadores canadenses.

"O formato do rosto foi determinado ao medir a distância entre as ossos acima das bochechas e dividindo essa medida pela distância entre as sobrancelhas e o lábio superior.

Pelo estudo, quanto maior a proporção entre a largura e o comprimento do rosto, mais agressivo o jogador era”.

E, agora, a conclusão:

"Os resultados sugerem que o formato do rosto pode ter sido moldado pela evolução como uma marca da propensão à agressão.

O próximo passo será analisar se as pessoas podem julgar, pelo formato do rosto, a personalidade de outros seres humanos”.

Agora, vejamos mais uma a bem abalizada opinião de Gould, em seu referido livro "
A Falsa Medida do Homem".

“A teoria evolucionista eliminou a base criacionista que sustentava o intenso debate entre os monogenistas e os poligenistas, mas satisfez ambas as partes proporcionando-lhes uma justificação ainda melhor para o racismo de que ambas compartilhavam. Os monogenistas continuaram a estabelecer hierarquias lineares das raças segundo seus respectivos valores mentais e morais; os poligenistas tiveram então de admitir a existência de um ancestral comum perdido nas brumas da pré-história, mas afirmavam que as raças haviam estado separadas durante um tempo suficientemente prolongado para desenvolver diferenças hereditárias significativas quanto ao talento e à inteligência” (p. 650).

Esta mesma notícia fez-me voltar, também, à Alemanha de Hitler, onde o processo de medição de cabeças era uma prática rotineira, com a qual se procurava saber se uma pessoa era ou não judia e, portanto, "inferior" do ponto de vista da "ciência" de Hitler.

Como se vê, este fascínio não ficou restrito ao século XIX. Ele perpassou todo o século XX e chegou em pleno século XXI, tendo ainda a reboque a "pecha" da "evolução".

E, finalizando, resumo aqui, com as palavras do próprio Gould, como pensavam os racistas medidores de cabeças:

1. Os racistas e sexistas científicos restringem seu rótulo de inferioridade a um único grupo socialmente relegado; mas a raça, o sexo e a classe andam juntos e são permutáveis. Embora os diferentes estudos tenham alcance limitado, a filosofia geral do determinismo biológico é sempre a mesma: as hierarquias existentes entre os grupos mais ou menos favorecidos obedeceriam aos ditames da natureza; a estratificação social constituiria um reflexo da biologia. Bean estudou as raças, mas estendeu sua conclusão mais importante às mulheres, e também invocou as diferenças de classe social para justificar a tese de que a igualdade dos tamanhos cerebrais de negros e brancos refletiria realmente a inferioridade dos primeiros.

2. As conclusões não são ditadas pelo exame de uma documentação numérica copiosa, mas porpreconceitos anteriores à investigação. É praticamente indubitável que a afirmação de Bean a respeito da presunção dos negros não constitui uma indução a partir do estudo dos dados sobre as partes anterior e posterior do cérebro, mas o reflexo de uma crença a príorí que ele tentou apresentar como uma conclusão objetiva. Quanto à alegação especial no sentido de que a inferioridade dos negros podia ser deduzida da igualdade dos tamanhos dos cérebros, ela nos parece particularmente ridícula quando formulada fora dos limites de uma crença apriorística na inferioridade desse grupo humano.

3. A autoridade dos números e dos gráficos não aumenta com o grau de exatidão da medição, com o tamanho da amostragem ou com a complexidade de elaboração dos dados. Projetos experimentais básicos podem ser defeituosos desde o início e a repetição reiteirada do experimento não implica a sua ratificação. O compromisso prévio em favor de uma das muitas conclusões possíveis com frequência acarreta graves defeitos na concepção das experiências.


4. A craniometria não foi apenas uma distração de académicos, um tema confinado às publicações técnicas.Suas conclusões inundaram a imprensa popular. Quando ganhavam aceitação, muitas vezes adquiriam vida própria e eram copiadas de fontes cada vez mais distanciadas das originais, tornando-se refratárias a qualquer tipo de refutação, já que nenhuma examinava a fragilidade da documentação primitiva. Neste caso, Mall eliminou um dogma potencial, mas não antes que uma publicação importante recomendasse a supressão do direito de voto dos negros por causa da sua estupidez inata”.

Fonte:
Stephen Jay Gould. “A Falsa Medida do Homem”. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1991, p. 74.

É isso!

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