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"MORAL DARWINISTA: NOVA CIÊNCIA OU VELHA IDEOLOGIA?
Darwin é, ainda hoje, um dos maiores alvos de paixões intelectuais, mas não é todo dia que nasce uma nova ciência. Esse acontecimento excitante costuma merecer uma capa de revista e o lançamento de algum livro polêmico. De fato, a edição de 15 de agosto de 1994 da revista Time trazia o título: “infidelidade: pode estar em nossos genes “, anunciando uma nova “psicologia evolucionista”. Tratava- se do lançamento nos Estados Unidos do livro “O animal moral”, de Robert Wright, recentemente traduzido para o português pela Editora Campus, o que confirma o dito popular que diz que notícia ruim chega rápido.
O livro tem uma arquitetura muito interessante. Ele procura responder a intrigante pergunta de porque somos o que somos do ponto de vista de uma visão particular do evolucionismo darwinista. A estratégia é inovadora. Alguns episódios da vida do grande ídolo de Robert Wright, Charles Darwin, são relatados e analisados, apresentando algo próximo de uma versão “darwinista” do darwinismo. Quais as vantagens adaptativas que Charles Darwin teve ao desposar-se com Emma? Qual teria sido o impulso evolutivo que o teria levado a apresentar a público suas teorias quando percebeu que um competidor se aproximava das mesmas conclusões, comprometendo sua paternidade intelectual?
O passo seguinte será procurar demonstrar que esses casos não se devem a nenhuma particularidade histórica, mas seriam apenas manifestação de uma tendência biológica universal, a que todos estamos sujeitos. Dentro dessa ótica, o comportamento social humano seria apenas e tão somente o resultado da expressão de genes incrustrudos em nosso material genético, que a seleção natural teria cuidado de apurar com o decorrer das gerações. Seria possível agora entender a disputa entre Aquiles e Agamenon, na Ilíada, por uma bela escrava, e porque os filhos nascidos dessas conquistas eram tolerados pelas esposas legítimas, sendo homens livres e utilizando o nome do pai biológico. A “psicologia evolucionista” poderia até mesmo transformar em paradigma biológico, verdadeiro objetivo perseguido pela natureza, a mulher grega da época heróica de Homero, a reprodutora que cuida da casa, dos filhos e das escravas, que o marido transforma em concubinas a seu bel-prazer. Da mesma forma, a prostituição, protegida pelo Estado em Atenas, poderia também ser um imperativo biológico. Os jônios, quem diria, poderiam agora ter seu comportamento sexual e sua organização social explicados pela “nova ciência” e, ainda por cima, verem-se transformados em exemplos modelares da evolução biológica do comportamento moral.
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Robert Wright retoma a questão, agora com cuidados adicionais. Em primeiro lugar, ele possui credenciais científicas poderosas, como Edward Wilson continua tendo, pré-requisito essencial para os candidatos a êmulos de Darwin. O que nos diz de novo a “psicologia evolucionista”? Numa discutível aproximação freudiana, ela estaria centrada na “psicologia sexual, que inclui tudo, desde o amor-próprio instável de um adolescente aos juízos estéticos que homens e mulheres fazem uns dos outros, os juízos morais que fazem uns dos outros, e mesmo os juízos dos que pertencem ao seu próprio sexo.” Existiria uma diferença básica entre a moralidade do homem e a da mulher, uma vez que “grande parte dessa psicologia sexual humana decorre da escassez de ovos (sic) se comparados aos espermatozóides.” A capacidade de produção de células reprodutivas é muito diferente em homens e mulheres e, segundo Wright, isso não seria um detalhe menor para explicar o comportamento sexual e moral humano. O homem estaria ciente de que dispõe de um arsenal gamético ilimitado, o que lhe permitiria “atirar a esmo” em combates com o sexo oposto, enquanto a mulher teria consciência da limitação numérica de sua munição reprodutiva, o que a obrigaria a optar pela estratégia do “tiro certeiro” para assegurar sua reprodução.
Até aqui estamos ainda estacionados na retórica sociobiológica da década de 1970. As inovações tomarão — sinal dos tempos — a forma de estruturas biológicas virtuais: os comportamentos seriam produzidos por “Órgãos mentais”, localizados no cérebro, embora sejam tão invisíveis quanto a memória ROM dos computadores. Esses “órgãos virtuais” seriam, como qualquer outro órgão, determinados pelos genes. Esses genes, e não os comportamentos que determinam, é que teriam sido selecionados ao longo das gerações. Desta forma, as concepções morais humanas poderiam ser tão “biológicas” quanto o ato de respirar ou de fazer a digestão. Os órgãos específicos que se encarregariam dessas tarefas seriam esses “órgãos virtuais” supostamente localizados no cérebro, que teriam introjetado comportamentos na mente humana. E quais seriam esses comportamentos, essa “moralidade natural biológica”?
Os homens estariam programados para classificar as mulheres em uma de duas categorias: santa ou prostituta. Algumas mulheres (as santas) teriam como estratégia reprodutiva escolher um homem com posses e poder suficiente para assegurar uma vida tranqüila para si e para seus “ovos”. Elas seduziriam o escolhido, e só permitiriam relações sexuais após o casamento, quando o compromisso estivesse solidamente estabelecido. Esta teria sido a estratégia de Emma Weedgwood, a primeira “santa” do evangelho darwinista. Wright enfatiza que “se a dicotomia santa prostituta estiver firmemente enraizada na mente masculina, o sexo prematuro com uma mulher pode sufocar o amor nascente”. O cientista-conselheiro matrimonial arrisca um palpite para as solteironas na mesma página: “se você quer ouvir votos de eterna devoção até o dia de seu casamento — e quer ter certeza de que haverá esse dia — não durma com o seu homem até a lua-de-mel”. Afinal, prossegue Wright ainda na página 114, passando do cientificismo rasteiro para a pura baixaria, “um homem não vai comprar uma vaca se pode (sic) tirar leite de graça.”
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Charles Darwin teria pago caro pela sua santinha, um preço que hoje em dia nenhum homem paga mais. Ele e Emma mantiveram um casamento estritamente monogâmico, verdadeira linha de montagem uterina (foram dez filhos). Sem dúvida, foi um tiro certeiro. A abundância desse tipo de leite nas grandes cidades poderia explicar o declínio do número de casamentos e de filhos nas sociedades modernas. Mas a reprodução, a perpetuação da espécie, dependeria dessa instituição secular de forma que, para Wright, só haveria uma solução: a dura repressão aos transgressores. Mas ele não se refere ao casal.
“Uma vez que tenhamos examinado as desvantagens do casamento monogâmico de vida inteira (ele se refere à monotonia, etc), especificamente numa sociedade de economia estratificada — em outras palavras, uma vez que tenhamos examinado a natureza humana — é difícil imaginar outra coisa senão a dura repressão como meio de conservar a união.” Mas, prossegue ele, não são necessários exageros. Afinal, “a infidelidade masculina talvez não constitua ameaça ao casamento enquanto não leva (sic) à deserção (refere-se ao divórcio); as mulheres aceitam viver com o companheiro que as traiu com maior facilidade do que os homens. E uma forma de assegurar que a infidelidade masculina não conduza à deserção é restringi-la às ... prostitutas”. Esse “padrão moral de dois pesos e duas medidas pode não ser justo, mas tem uma espécie de fundamento lógico”, uma vez que um marido traído poderia tratar mal seus filhos, duvidando que fossem realmente seus; mas a mulher traída teria sempre certeza que seus filhos provieram do estoque ilimitado de espermatozóides do animal moral que dorme com ela e, ademais, não teria dúvida que o ovócito fecundado em seu ventre é realmente seu. Será isso uma nova ciência? Não, definitivamente não é todo dia que nasce uma nova ciência.
O que temos aqui chama-se ideologia. O ideólogo interpreta o mundo à sua volta projetando nele os valores de sua cultura e, tão satisfeito está com eles, acredita que seja pura coincidência encontrá-los fora da esfera de relações por ele construída. Com entusiasmo, e por vezes inconscientemente, julga ter alcançado resultado tão legítimo, verdadeiro e abrangente que refaz o caminho de volta e percebe que pode explicar as relações sociais com a lógica que projetou na natureza. Os valores de sua cultura voltam revigorados, uma vez que seriam agora expressão do mundo natural, de Deus ou da seleção natural".
Fonte:
Nélio Bizzo: "Darwinismo, Ciência ou ideologia, in: "Perspectivas em Epistemologia e História das Ciências". Universidade Estadual de Feira de Santana. Universidade Federal da Bahia - Programa Centro de Estudos Avançados. Orginizadores: André Luís Mattedi Dias, Charbel Niño El-Hani, José Carlos barreto de Santana e Olival Freire Jr., p. 140-145.
É isso!
É decepcionante (embora não surpreendente) que Nélio Bizzo se resuma a condenar moralmente o livro, ao invés de contra-argumentar as informações trazidas. Se certos padrões de comportamento são encontrados universalmente em todas as comunidades humanas, e até mesmo em primatas, então é presumível que isso se deva à influência biológica. Como negar isso? Não adianta simplesmente fechar os olhos para as informações que a Biologia nos dá e continuar a defender uma visão de homem que é cientificamente ultrapassada. Negar as evidências científicas é que é um ato puramente ideológico.
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