Terminei há algum tempo a leitura de “Cândido”, do genial François-Marie Arouet ou simplesmente Voltaire. Dentre as muitas personagens do romance, destaca-se o Doutor Pangloss, uma caricata figura que me fez lembrar a versão igualmente caricata do darwinismo, também denominada ultradarwinismo. Tal qual o Doutor Pangloss, os ultradarwinistas são exímios na capacidade de criar estórias aparentemente plausíveis porém não fundamentadas na realidade. Mas, vamos ao “Cândido”:
“Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra maneira: pois, como tudo foi feito para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim. Queiram notar que os narizes foram feitos para usar óculos, e por isso nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para as calças, e por isso temos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas e edificar castelos, e por isso Monsenhor tem um lindo castelo; o mais considerável barão da província deve ser o mais bem alojado; e, como os porcos foram feitos para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro: por conseguinte, aqueles que asseveravam que tudo está bem disseram uma tolice; deviam era dizer que tudo está o melhor possível”.
No mundo do Doutor Pangloss nada acontecia sem um propósito determinado. Para tal personagem voltaireana não havia efeito sem causa, e este mundo era o melhor possível dos mundos: “o castelo do senhor barão era o mais belo possível dos castelos e a senhora a melhor das baronesas possíveis”.
Assim, não é lá muito diferente o mundo panglossiano daquele em que vivem deslumbradamente os ultradarwinistas. Neste "mundo" darwiniano, por exemplo, o naturalista inglês fora um homem à prova de qualquer suspeita, um cidadão dedicado ao bem da humanidade, o protótipo ideal de um lídimo e verdadeiro cientista. E, tal qual o Doutor Pangloss, os ultradarwinistas vêem o darwinismo como o melhor de todos os “mundos”, o lugar perfeito onde a verdade finca-se como um estandarte iluminando as trevas do “obscurantismo religioso e retrógrado”. Em função disso, são peritos em criar estórias aparentemente verossímeis, a maior parte das quais fundamentadas na velha e ultrapassada muleta do adaptacionismo. Para eles, cada característica de um ser vivo necessariamente tem sua razão de ser.
Suas conclusões normalmente estão baseadas em inferências acerca “daquilo que poderiam ter sido” ou “naquilo que desejariam que fosse”. No caso do chimpanzé, por exemplo, não obstante façam uso da “justificativa genética”, a proximidade entre este animal e o homem norteia-se preponderantemente pela semelhança morfológica entre ambos: “O homem parece como o macaco, logo o homem tem uma relação evolutiva com ele”. Coincidentemente, há uma passagem hilária em “Cândido”, na qual se narra que as mulheres mantinham um relacionamento conjugal com esses bicinhos.
“Ia continuar, mas o espanto lhe paralisou a língua ao ver aquelas duas raparigas beijarem ternamente os dois macacos, desatando em pranto sobre os seus corpos e enchendo o ar com os gritos mais pungentes.
— Eu não esperava tanta bondade de alma – disse afinal a Cacambo, o qual replicou:
— Bela coisa fez o patrão! Acaba de matar os amantes dessas moças.
— Seus amantes! Será possível? Estás zombando de mim, Cacambo. Como vou acreditar numa coisa dessas?
— O senhor, meu caro patrão, anda sempre a espantar-se de tudo; por que acha tão estranho que nalguns países haja macacos que obtém favores femininos? Eles têm um quarto de homens, como eu tenho um quarto de espanhol.
— Ah! – disse Cândido, – lembro-me de ter ouvido a Pangloss que outrora aconteciam tais acidentes, e que tal mescla produzira egipãs, faunos, sátiros; que várias personagens da antigüidade os haviam visto; mas eu tomava tudo isso por fábulas”. ((rs))
Além disso, proliferam as conclusões fundamentadas em lacunas. Por exemplo, no caso do registro fóssil, justificam as ausências pelo fato de ser ele imperfeito, uma vez que, quando um animal morre, há uma possibilidade muito reduzida de ele vir a ser fossilizado, o que explicaria tais lacunas nas genealogias fósseis.
Outra característica do panglossianismo darwinista, e esta ainda mais irônica, refere-se ao fato de acreditar que a Teoria da Evolução tenha alguma utilidade prática para a humanidade. O que me remete novamente ao “Cândido”, a uma passagem em que outra personagem, Pococurante, um nobre veneziano, desdenha da teoria científica livresca:
— Ah! – exclamou Martinho. – Eis aqui oitenta volumes dos anais de uma academia de ciências; deve haver nisso tudo alguma coisa de bom.
— Haveria – disse Pococurante – se um só dos autores dessa moxinifada tivesse inventado ao menos a arte de fabricar alfinetes; mas em todos esses volumes não há mais que inócuos sistemas e nenhuma coisa útil. ((rs))
Não há dúvidas da plausibilidade em se discutir muitos aspectos do darwinismo pelo viés científico, todavia, sua essência, ainda que à ojeriza de seus ferrenhos adeptos, fundamenta-se no ponto de vista filosófico. As inúmeras extrapolações feita a partir da realidade vivenciada, tem sua origem no naturalismo filosófico, no cientificismo e na profunda vontade de que as coisas fossem de um determinado modo, o que novamente remete à mesma filosofia. “Mas a ciência é materialista” diriam ao modo peculiar do Doutor Pangloss, confundindo a praticidade da ciência com a abstração materialista e ideológica.
É isso!
Do darwinismo e da lógica do Dr. Pangloss
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