O darwinismo de José Saramago

Sempre fui leitor assíduo do escritor português José Saramago. Um dos seus livros que recentemente tive o prazer de ler foi “Ensaio sobre a cegueira”. Embora tenha em conta o “Memorial do Convento” como a sua melhor obra, não se pode dizer que seu “Ensaio” não tenha lá muito mais méritos. A subjetividade neste caso tem muito pouca relevância e nada diz sobre o verdadeiro valor de uma obra.
Bom. Para quem não sabe, Saramago foi um dos mais ferrenhos críticos da fé cristã. Pode-se dizer que a religião foi sua grande obsessão, se é que não há um pouco de exagero nisso. Seja como for, é consensual o fato de que ele sempre foi um fervoroso adepto dos ideais marxistas, dentre os quais se incluem o materialismo filosófico e o ateísmo militante.

A par disto, portanto, e no que se refere propriamente à moral humana, para Saramago não faz o menor sentido atribuir-lhe uma causa divina ou religiosa. Isso ele deixa bem explícito logo no início da referida obra: “A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projeto confuso. Com o andar dos tempos, mais as atividades da convivência e as trocas genéticas, acabamos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca. Acresce a isto, que é geral, a circunstancia particular de que, em espíritos simples, o remorso causado por um mal feito se confunde freqüentemente com medos ancestrais de todo o tipo, donde resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser, sem pau nem pedra, duas vezes o merecido.

José Saramago, por motivos óbvios, era também adepto do evolucionismo. Em todo esse seu livro, o conceito darwinista de “sobrevivência do mais apto” ou de “luta pela sobrevivência” revela-se como demonstração de que a consciência humana sempre será moldada conforme as necessidades e as circunstâncias. Discorrendo, por exemplo, sobre uma personagem, o cego ladrão, escreve: “
Ao oferecer-se para ajudar o cego, o homem que depois roubou o carro não tinha em mira, nesse momento preciso, qualquer intenção malévola, muito pelo contrário, o que ele fez não foi mais que obedecer àqueles sentimentos de generosidade e altruísmo que são, como toda a gente sabe, duas das melhores características do gênero humano, podendo ser encontradas até em criminosos bem mais empedernidos do que este, simples ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadeiros donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre. No fim das contas, estas ou as outras, não é assim tão grande a diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca e tatebitate com o olho posto na herança. Foi só quando já estava perto da casa do cego que a ideia se lhe apresentou com toda a naturalidade, exactamente, assim se pode dizer, como se tivesse decidido comprar um bilhete de lotaria só por ter visto o cauteleiro, não teve nenhum palpite, comprou a ver o que dali sala, conformado de antemão com o que a volúvel fortuna lhe trouxesse, algo ou coisa nenhuma, outros diriam que agiu segundo um reflexo condicionado da sua personalidade. Os cépticos acerca da natureza humana, que são muitos e teimosos, vêm sustentando que se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão, também é certo que o ajuda muito. Quanto a nós, permitir-nos-emos pensar que se o cego tivesse aceitado o segundo oferecimento do afinal falso samaritano, naquele derradeiro instante em que a bondade nada poderia ter prevalecido referimo-nos o oferecimento de lhe ficar a fazer companhia enquanto a mulher não chegasse quem sabe se o efeito da responsabilidade moral resultante da confiança assim outorgada não teria inibido a tentação criminosa e feito vir ao de cima o que de luminoso e nobre sempre será possível encontrar mesmo nas almas mais perdidas.” Mais adiante, o cego ladrão busca auto-justificar sua consciência pelo roubo do carro do outro cego, que agora compartilhava com ele das mesmas carências e espaços físicos: “De súbito, sem que ele contasse, a consciência acordou e censurou-o asperamente por ter sido capaz de roubar o automóvel a um pobre cego. Se agora estou nesta situação, argumentou ele, não foi por lhe ter roubado o carro, mas por ter ido acompanhá-lo à casa, esse é que foi o meu grande erro. Não estava a consciência para debates casuísticos, as suas razões eram simples e claras. Um cego é sagrado, a um cego não se rouba. Tecnicamente falando, não o roubei, nem ele tinha o carro no bolso, nem eu lhe apontei uma pistola à cara, defendeu-se o acusado. Deixa-te de sofismas, resmungou a consciência, e vai lá aonde tens de ir.” Ou seja, diante da suprema e momentânea necessidade de sobrevivência, a consciência moral é suplantada pela consciência circunstancial, que lhe serve de álibi para fazer "o que deve ser feito", pouco importando se isso é humanamente amoral ou se está dentro dos padrões estabelecidos pela sociedade.

Num outro episódio, a prostituta de óculos escuros, que havia ferido o cego ladrão, o qual mais tarde morrera em conseqüência desse ferimento, ao sentir-se fortemente culpada pelo que praticara, logo é consolada pela razão de não ter sido capaz de calcular o que fizera ao homem: “
A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as conseqüências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala."

A tendência característica do darwinismo, ou seja, a “sobrevivência do mais apto” (alguns dizem “sobrevivência do mais forte”), no romance, é muito bem tipificada na pessoa da mulher do médico, a única que entre o turbilhão de cegos do manicômio tem sua visão preservada. Sobre este manicômio, aliás, metaforicamente ele serve como representação de um espaço geográfico onde animais se duelam pela posse de comida e de parceiros.

Por ser a “mais apta”, isto é, por ser a que estava em vantagem em relação às demais mulheres que ali viviam presas, a mulher do médico perpetua um ato que sintetiza muito bem o instinto de sobrevivência tão essencial no darwinismo. Lá pelas tantas, quando abusada sexualmente pelo chefe do outro grupo de cegos, ela não hesita em rasgar-lhe violentamente o pescoço. Logo em seguida, justifica-se: “
Sim, matei-o eu, porque alguém teria de o fazer, e não havia mais ninguém, e agora, agora estamos livres, eles sabem o que os espera. Se quiserem outra vez servir-se de nós, vai haver luta, guerra.”

Nesta eterna luta pela sobrevivência, agiríamos naturalmente como qualquer ser vivo em sua ânsia por manter-se vivo: “
Evidentemente, muitos destes cegos estão a ser pisados, empurrados, esmurrados, é o efeito do pânico, um efeito natural, pode-se dizer, a natureza animal é mesmo assim, também a vegetal se comportaria de igual maneira se não tivesse todas aquelas raízes a prendê-la ao chão, e que bonito seria poder ver as árvores do bosque a fugir ao incêndio”. E, como resultado desta “luta de vida ou morte", a noção do bem e do mal torna-se relativa, vai depender das circunstâncias: “agora somos todos iguais perante o mal e o bem, por favor, não me perguntem o que é o bem e o que é o mal, sabíamo-lo de cada vez que tivemos de agir no tempo em que a cegueira era uma exceção, o certo e o errado são apenas modos diferentes de entender a nossa relação com os outros, não a que temos com nós próprios, nessa não há que fiar, perdoem-me a prelação moralística, é que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o, e agora ponto final na dissertação, vamos comer.” Resumindo: diante do imperativo de viver, moldamos nossa moral e justificamos nossos atos, sejam eles convencionalmente bons ou maus.

É isso!

5 comentários:

  1. Oi, Iba. Admito que não consiguiria ter a sua generosidade para com Saramago. Se quiser saber a razão, leia este meu artigo:

    http://criacionista.blogspot.com/2009/08/o-evangelho-segundo-saramago.html

    Um abraço.

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  2. Ops, a palavra "conseguiria" saiu "consIguiria". Tem como consertar?

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  3. Caro Marco,

    Muito grato pela dica.

    Um forte abraço!

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  4. Marco,

    SE puder ler isso...
    http://humordarwinista.blogspot.com/2009/12/biblia-saramago-e-o-hormonio-comunista.html

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  5. Obrigado, Iba.

    Na verdade, eu já havia lido esse seu post, pois frequento o seu blog diariamente.

    Inclusive, por causa desse birra anti- cristã do Saramago eu acabei lendo "E se Jesus não tivesse nascido?" de D. Kennedy e Jerry Newcombe, Editora Vida, 1999.

    É um livro impressionante. Se puder, dê uma olhada e não se arrependerá.

    Um abraço, meu amigo.

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