Da loucura à alienação

“Na Grécia Antiga, assim como na Idade Média, o louco tinha efetivamente um lugar social. (Silveira, 2000,pp18,19) O que modernamente foi estabelecido como desrazão fazia parte do logos e por isto possibilitava o diálogo entre homens e deuses. Não havia, portanto, uma distinção definitiva entre razão e loucura, logos e mito. O lugar social do louco foi sendo redefinido na Europa a partir do século XVII e a positividade dada a ele foi perdida com o fim do Renascimento, estabelecendo-se uma ruptura radical entre a racionalidade e a loucura, que foi excluída da razão de modo decisivo:

O louco relacionado com potências imaginárias, com poderes sobrenaturais e subterrâneos, como no Renascimento, ou com o grau inferior da humanidade, forma última da encarnação divina, identificando-se com a animalidade, como nos séculos XVII e XVIII, não existe mais ao final deste e início do século XIX. Agora ele é um outro personagem, que vai ter tanto da animalidade e das potências imaginárias, se bem que as superando e dotando-as de novas significações, definidas a partir de seu novo lugar na rede inter-relacional das individualidades” (Birman, 1978, pp 96-97)

O processo modernizador na Europa não apenas redefiniu o lugar do louco na cidade. Isto é de fato a aparência de uma definição anterior, qual seja, a determinação da loucura como algo exterior à razão. Em
Meditações, obra citada por Foucault (2000, pg 45), Descartes afirma não estar louco pelo simples fato de estar pensando. Aqui temos a separação moderna entre razão e desrazão. A exclusão da insânia em relação à racionalidade no Ocidente permitiu, de uma maneira geral, que ela fosse tratada como patologia a partir do princípio do século XIX e determinou a forma como passou a ser percebida pelo social: a partir de então a loucura passou a perturbar a razão. O alienado tornou-se um personagem social que não conseguia integrar–se à normalidade das relações com os outros, normalidade esta identificada com um modelo único de Homem capaz de absoluto auto-controle e consciência-de-si, visto como critério de êxito social. Como diz Birman, fora da norma, o louco se insere sempre no interdito (1978).

A faixa do interdito e a alienação da norma e da razão inauguraram um novo estatuto da loucura. Entre outras variáveis, é possível apontar a reorganização social e a crise econômica provocadas pela mudança no modo de produção na Europa, no século XVII, como co-responsáveis no processo de enclausuramento de mendigos, desempregados, aleijados, doentes incuráveis, idiotas e loucos, por meio de uma determinação absolutista de ocultar o que não compactuasse com a norma. Esta nova ordem social que instituiu normas morais, afetivas e comportamentais, diante das quais a loucura foi posta como desrazão e interdição, demandou uma nova conceituação e produziu novas formas de gerenciamento dessa população.

Os loucos, que inevitavelmente mostravam-se desconformes com o projeto da cidade burguesa, deviam ser tratados e medicalizados em lugares especializados, tendo como foco em sua recuperação a adequação à ordem vigente. Isto se dava por meio de uma prática que oscilava entre a expulsão dos indivíduos indesejáveis e o adestramento dos corpos.

Na primeira metade do século XIX, quando o manicômio surgiu na França, pretendeu ser instrumento de cura, concomitantemente ao surgimento da nosografia e do tratamento moral de Pinel e Esquirol. Este marco teórico-clínico
surgiu ao mesmo tempo em que os antigos hospitais gerais como depósitos de desviantes, davam lugar a locais de tratamento especializado. Para que a loucura pudesse ser transformada em doença mental foi necessária uma reorganização profunda tanto dos conhecimentos médicos, quanto do discurso sobre a doença (Foucault, 2001). No bojo destas transformações, foi necessário que se construísse um sistema novo de referências conceituais e de práticas clínicas nele baseadas.

Uma das aparentes contradições da modernidade é o fato de, no auge da defesa iluminista da tolerância, ter sido estabelecida e institucionalizada uma atitude dissonante, de exclusão, levada a cabo na medida em que a tolerância iluminista limitava-se, apenas, ao que concerne à razão. O que escapasse a ela, escaparia também à tolerância. Vale contudo ressaltar que as novas normas sociais proibiam a privação de liberdade sem legitimidade jurídica, o que implicou no fim da época do “grande enclausuramento” tal como descrito por Foucault, uma vez que responsabilidade e liberdade passaram a ser o reflexo da nova soberania civil. Assim, a reclusão e o isolamento dos loucos (agora alienados da razão), esquadrinhados e separados dos outros “diferentes” - mendigos, aleijados, doentes venéreos, blasfemos, e outros incuráveis – passaram a ser definidos como terapêuticos. Esta é a premissa do tratamento moral: o isolamento de um
meio social gerador de distúrbios. Isolamento e tratamento moral formaram a dupla terapêutica do movimento alienista, que a partir de Pinel separou a loucura do bojo geral da exclusão e se converteu em objeto da medicina – passível de medicalização e cura (Desviat, M.,1999).

Assim, nasciam na França, no início do século XIX a psiquiatria, a psicologia moderna e o saber nosográfico da observação como coroamento do processo de instauração de uma nova racionalidade à implementação da nova ordem societária burguesa. Foi preciso que os loucos estivessem lá, devidamente isolados e à disposição do olhar, para que o saber alienista se desse. A determinação do lugar do louco na cidade moderna possibilitou que ele se transformasse em objeto de saber e permitisse o acúmulo de conhecimento para a
consolidação da nova ciência. A este respeito, afirma Elisabeth Roudinesco:

“(...) A loucura não é um fato de natureza, mas de cultura, e sua história é a das culturas que a dizem loucura e a perseguem. Da mesma forma, a ciência médica só intervém como uma das formas históricas da relação da loucura com a razão”.(Roudinesco, 2000, p.15)

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É isso!


Fonte
:
MARIA CLÁUDIA ALMEIDA ORLANDO MAGNANI: “O HOSPÍCIO DA DIAMANTINA – 1889 -1906”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências. Orientador: Profª Drª Cristiana Facchinetti). CASA DE OSWALDO CRUZ – FIOCRUZ. Rio de Janeiro, 2004.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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