"Por haver, no discurso da IURD, uma tentativa constante de se estabelecer uma relação entre a quantidade de bens materiais e a vergonha, essa paixão caminha ao lado do medo, ou seja, quanto menos bens materiais o sujeito possuir, mais envergonhado sentir-se-á. A vergonha, tanto quanto o medo, é uma paixão da ordem do saber que reflete, porém , um estado de alma exclusivamente humano, definido pela combinação do /querer ser/ + /não poder não ser/ + /saber não ser/ relacionado a algo moralizado positivamente pela sociedade. Veremos, no 2º segmento, o depoimento de um sujeito que afirma ter perdido a honra, envergonhado perante a sociedade e insatisfeito por não possuir bens materiais.
Como afirma de-La-Taille (1999 : 25)31, [esse sujeito] dá valor e torna legítimo o olhar de um outro destinador, a própria sociedade, que o sanciona negativam ente por não ter emprego ou estar em dificuldades financeiras. Ao mesmo tempo e, a partir da aceitação dessa reprovação da sociedade, assume o papel de autodestinador-julgador, reprovando-se a si mesmo, pois não é o que pensou que viria a ser. Envergonha-se porque não realizou sua autoimagem virtual, conjunta e relaxada, mas apresenta, segundo seu próprio julgamento, uma imagem não-conjunta e intensa. O agente religioso-destinador precisa aproveitar-se desse estado e fazer o destinatário acreditar que só conseguirá obter seu objeto de valor indo ao tem plo. Ali, o sujeito será exaltado e não ficará mais envergonhado perante Deus e os outros.
Visando a esclarecer melhor essa tentativa de estabelecer uma relação entre a escassez de bens materiais com a vergonha, esquematizamos a criação do simulacro que projeta a imagem de um sujeito envergonhado. No quadro abaixo, procuramos mostrar que, após ser m anipulado, o sujeito, disjunto dos bens materiais, reprova-se a si mesmo, diante da sanção negativa imposta tanto pela sociedade quanto por seu próprio modo de ver o mundo, tornando-se, a partir daí, um sujeito envergonhado. Fiorin (1992: 57) afirma:
A vergonha é, assim, um estado de alma da ordem do saber: o sujeito sabe que não possui a competência para um fazer exigido pelo simulacro de membro de um dado grupo ou que fez algo em des acordo com a deontologia grupal.
A conjunção dessas três paixões o medo, a vergonha, a insatisfação conduz o sujeito em direção à infelicidade e, finalmente, ao desespero, uma paixão intensa. O discurso da IURD, no entanto, procura atenuar ou anular esse encadeamento passional ao instaurar a esperança, oferecendo-se como adjuvante na guerra contra o antissujeito, o Mal, causador de todos os problemas do telespectador. Aderindo ao contrato, o sujeito, agora esperançoso, caminhará em direção à felicidade.
Sobre o desespero, procuramos, a princípio, examinar as origens etimológicas do lexema e encontramos o seguinte: o substantivo desespero é formado por derivação deverbal de desesperar, que, por sua vez, provém, por derivação prefixal, de esperar (do latim spero, as, avi, atum, are). Assim, etimologicamente:
1. estado de profundo desânimo de uma pessoa que se s ente incapaz de qualquer ação; desalento. 2. estado de consciência que julga uma situação sem saída; desesperança. 3. estado de desânimo, de sofrimento a que se sujeita uma pessoa devido a um excesso de dificuldades ou de aflições; aflição, angústia, exasperação. 4. aquilo que, pela sua dificuldade e pela sua exigência de perfeccionismo, causa frustração ou desânimo. 5. irritação profunda; cólera, furor, raiva.
O sujeito amedrontado pelos simulacros do Mal construídos pelo destinador, envergonhado diante da sociedade e insatisfeito com a situação em que se encontra, deve ser levado ao desespero para, só então, movido pela esperança de resolver seus problemas, buscar a ajuda salvadora da Igreja. Aliás, é comum ouvirmos as pessoas dizerem que só se voltaram a Deus diante de uma situação desesperadora, sem saída. Para Greimas & Fontanille (1993: 68), o desespero é uma paixão resultante de uma configuração modal conflitual segundo o /querer-ser/, de um lado, e os /saber-não-ser/ e / não-poder-ser/, de outro. Apesar de contrariarem -se, esses dois grupos de modalizações antitéticas não se modificam mutuam ente, o que provoca uma ruptura interna do sujeito. Na realidade, ainda segundo os semioticistas, no desespero há universos modais incompatíveis, ou seja, o sujeito desesperado vive uma crise de confiança, imbuído de duas identidades modais independentes: a do fracasso e da frustração, por um lado, e a da confiança e da expectativa, por outro. O sujeito desesperado procurará a Igreja se, mesmo enxergando-se a si mesmo um frustrado/fracassado, tiver esperança de que ela, por meio de seus agentes, pode acionar a onipotência de Deus para resolver todos os seus problemas e levá-lo à felicidade.
No Dicionário da Houaiss/UOL da Língua Portuguesa, o lexema esperança dispõe das seguintes acepções:
(1) sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja; confiança em coisa boa; fé (2) (rubrica: religião) a segunda das três virtudes básicas do cristão, ao lado da fé e da caridade [representa-se por uma âncora] (3) expectativa, espera.
No Dicionário de Teologia (2002: 50), encontramos:
Esperança: termo bíblico referente à expectativa do crente de que Deus cumprirá as promessas feitas no passado. A esperança bíblica é mais que simples desejo; compreende a certeza baseada na demonstração, na história da salvação, da fidelidade de Deus para com as pessoas, conforme registrado nas Es crituras e na experiência da igreja. Em última análise, a esperança futura do cristão baseia-s e na promessa de retorno de Cristo e na expectativa da ressurreição dos mortos.
São bastante diferentes as acepções apresentadas pelo dicionário de língua portuguesa e pelo dicionário de Teologia. Isso porque enquanto o Houaiss define a esperança como a visão da realização de um desejo, o Teológico a define como, mais que um desejo, a expectativa de cumprimento de promessas divinas (a salvação, o retorno de Cristo, a ressurreição dos mortos). Podem os afirmar, no entanto, que a primeira definição se identifica com o discurso iurdiano (o paraíso – o sucesso – é aqui e agora) e a segunda, com boa parte do discurso católico e de outras religiões, que postergam a felicidade plena para a vida após a morte.
A confiança (paixão intersubjetiva) e a esperança, como apontam os na ilustração, andam sempre unidas e são cruciais no discurso religioso, pois é necessário que o sujeito confie no destinador, para, esperançoso, dirigir-se à igreja em busca de ajuda. Confiante, o sujeito de estado pensa poder contar com o sujeito do fazer para a realização de “suas esperanças” e/ou de “seus direitos”. O contrato de confiança é, segundo Greimas (1981), imaginário, e corresponde à construção de simulacros. Sem a confiança no destinador não haverá instauração da esperança de se chegar à felicidade (obtenção dos objetos de valor).
Para Tatit (2002: 163), a esperança não deixa de ser uma relação de continuidade extensa entre o sujeito e seu objeto. É uma paixão típica da espera fiduciária já que o sujeito de estado atribui ao sujeito do fazer um /dever-fazer/ que vai levá-lo à felicidade. O grupo de paixões visto até aqui, carrega potencial suficiente para levar o telespectador a aderir ao contrato proposto, pois a confiança no agente religioso e a esperança de uma vida melhor são paixões consideravelmente atenuantes do medo, da vergonha e do desespero.
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É isso!
Fonte:
JOSÉ CARLOS JADON: “SUCESSO E SALVAÇÃO: Estudo semiótico comparativo entre os discursos televisivos das Igrejas Universal do Reino de Deus e Católica Apostólica Romana no Brasil”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros). SÃO PAULO , 2009.
Nota:
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