“A Recepção do Darwinismo no Brasil”

“Em todo o mundo latino a recepção do darwinismo causou um afiado debate entre católicos — em particular a alta hierarquia da igreja — e darwinistas, com tendência fortemente anticlerical. Se levarmos em consideração a Espanha, como modelo de polarização extrema, não existia — levando-se em consideração quase a totalidade — nenhum darwinista que fosse religioso e nenhum político conservador que fosse darwinista, sendo que a única exceção significativa era de um grupo de clérigos católicos progressistas. Com poucas exceções, o governo central controlava a maioria das instituições públicas relevantes (universidades, museus), de uma forma tal que ficava difícil para seus empregados serem abertamente darwinistas. Não existia nenhuma possibilidade de haver um discurso civil entre direita e esquerda sobre o tema.

Três fatores separados mitigavam a expressão, tão afiada em polarização ideológica, sobre o darwinismo no Brasil. O primeiro era que o Imperador não era de todo contrário a Darwin; o segundo era que os elementos da elite católica foram cooptados em seus pontos de vista pelo evolucionismo poligenista com uma base cientificamente legitimada para a manutenção da supremacia branca. Com essa visão, a elite, mesmo se católica, tinha alguma coisa para ganhar aceitando o programa poligenista da evolução humana. Apesar de incomum, outras elites católicas estavam também atentas a sacrificar seus princípios religiosos se existisse uma boa razão para tal. Vaqueiros uruguaios que favoreceram a seleção ao invés do cruzamento, por exemplo, não tiveram dificuldade de citar Darwm com aprovação. O terceiro fator, relevante para nosso argumento, é que, no Brasil, havia simpatizantes do darwinismo no controle das principais instituições: museus de ciências (lindislau Netto, no Museu Nacional, era simpático ao darwinismo e Emilio Goeldi, no Museu do Pará, era um haeckliano; já von Ihering, em São Paulo, era um evolucionista, mas não um darwinista); em importantes faculdades, como a de Medicina, na Bahia, e a de Direito, no Recife, discutia-se a teoria. Por todas essas razões a recepção de Darwin no Brasil pareceu menos problemática do que na maioria dos outros países católicos.

O problema racial estimulou o discurso evolucionista e levou a um movimento para classificar as raças cientificamente. Neste discurso, ambos, sambaquis e botocudos, tornaram-se ‘tropo’ darwinistas. Sambaquis são montes de conchas (middens) considerados restos de antigos assentamentos humanos. Hoje, eles são principalmente valorizados pelos arqueólogos como pistas para o conhecimento da dieta humana, mas, no século XIX, eram considerados registros do passado dos índios. A estratégia das pesquisas nos sambaquis (principalmente germânicas, mas algumas brasileiras) era associar sambaquis ao crânio ‘primitivo’, com o objetivo de demonstrar as deficiências biológicas dos índios.

O poligenismo brasileiro era a forma darwinista de ‘racismo científico’ (entre aspas porque Darwin era um monogenista). Poligenistas pré-Darwin eram apoiados por aqueles que achavam ofensivo que judeus pudessem ter sido os ancestrais de toda a raça humana. Os primeiros poligenistas norte- americanos, como o anatomista Samuel George Morton, eram celebrados pelos darwinistas sociais brasileiros, como Euclides da Cunha, que admirava o trabalho pró-escravos — pro-slavery — dos estudantes de Morton, George R. Gliddon e Josiah Clark Nott. O que atraía Cunha era a idéia da origem diferenciada das raças, que fazia possível uma América autônoma, berço da espécie humana — idéia adotada pelo paleontólogo argentino Florentino Ameghino. O antropólogo inglês James Cowles Prichard afirmava que Adão era negro e que toda a espécie humana tinha se tomado progressivamente branca através de um processo semelhante — a seleção sexual —, o que foi de imediato considerado fonte de classificação evolucionista da raça humana, de preto para branco, de superior para inferior. O aparentemente alto nível de miscigenação no Brasil converteu o país em um ‘grande laboratório racial’, cujos técnicos eram preeminentemente cientistas germânicos de posse dos últimos métodos em craniometria. Esta rica mistura de teoria e método converteu o Brasil em uma fonte fecunda da teoria racial nos fins do XIX e início do século XX” (p. 23, 24).

Do livro:
A Recepção do Darwinismo no Brasil”. Organizadores: Heloisa Betol Domingues, Magali Romero Sá e Thomas Glick. Coleção História e Saúde. Editora Fiocruz, 2003.

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