A cura como espetáculo

"Para DEBORD, o espetáculo desempenha seu poder a partir do momento em que proporciona a geração de sensações reais baseadas na contemplação de imagens. Essas sensações reais de cura e libertação é o mais forte espetáculo do Show da Fé. É interessante observar como a cura, a transformação das pessoas se torna o carro-chefe, o grande instrumento de persuasão da Igreja Internacional da Graça. Em todos os cultos, em todos os momentos se apresentam testemunhos de fiéis que, de algum modo, transformaram suas vidas.

As atribuições recebidas e enaltecidas do guia-espiritual-fundador vai formando entre os seus ouvintes uma espécie de confiança automática naquilo que diz, mesmo se o que disser não for convincente e sábio. RIVERA aborda com propriedade esse fenômeno. Segundo ele, os pastores (...) possuem um carisma de função por representar a Igreja, mas a sua legitimidade depende da coerência ideológica do seu discurso, e não pela eficiência na transmissão ritual do carisma. Além disso, o pastor é um sacerdote que não pode se apoiar no rito. Como a sua legitimidade deriva do discurso elaborado por ele mesmo, assim como o profeta o pastor depende de um carisma pessoal. Mas o elemento emocional necessário no discurso profético não determina a legitimidade sem a existência do prodígio, comprovação objetiva do carisma. O pregador protestante tornou-se uma espécie de profeta sem milagre nem prodígio, cabendo aos fiéis a tarefa de reconhecer no discurso do pastor a legitimidade da verdade transmitida.

Mas, mesmo sem milagres, o discurso do pastor é legitimado. Faltando ainda a fé no fiel, é preciso ainda dizer que facilmente, nas pregações, se eleva o fiel a crer no poder da cura. Legitimase ainda mais o discurso pelo prodígio, que é demonstrado na tela, como principal comprovação da fala de quem prega.O poder de cura foi também pauta da entrevista de Jô Soares acima comentada, quando entrevistou R.R.Soares. O apresentador questionou o pastor do limite entre o poder da cura e o poder da sugestão. A cura como motivadora para novas conversões e adesões, é nitidamente percebida no Jornal impresso Show da Fé. Criado em 2006, o jornal teve a tiragem inicial de um milhão e 100 mil exemplares. Iniciou com 14 das 24 páginas atuais. Formato tablóide, todo colorido, tem por pauta as ações da Igreja Internacional da Graça de Deus. Conforme edição de janeiro de 2007, após um ano de circulação, foram 47 milhões de leitores tiveram acesso ao jornal durante o ano de 2006. Atualmente possui a tiragem de um milhão e 700 mil cópias. Conforme cálculo da editora Elaine Monteiro, em sua opinião editorial de janeiro de 2008, há atualmente sete milhões de leitores do jornal.

Notadamente percebemos o acento à cura já nas manchetes de capa em quase todas as edições desse jornal da Igreja de R.R. Soares. A edição de fevereiro de 2007 traz a seguinte manchete: “Elas voltaram a ouvir, enxergar e andar”; a de março estampa assim: “Voltei a andar”; de abril, destaca: “A vida depois do milagre”. A edição de junho reza: “Milagres no Sul do Brasil”; a de novembro professa: “Três histórias e o mesmo final: A CURA”. A manchete de dezembro de 2007 foi a seguinte: “Multidão em Palmas diante de curas e MILAGRES”. E a edição de janeiro de 2008 proclama na capa: “Voltei a ouvir”. Se abrirmos as páginas internas dessa última edição de janeiro, percebemos pautados os testemunhos de curas e transformações nas páginas 03,04,05,10, 14,15,16,17,19 e 23. Estampam-se grandes fotos nas capas e ilustrações médias nas páginas internas das pessoas transformadas e curadas.

Essa realidade é percebida nos programas de R.R.Soares que analisamos, também nos demais, onde o discurso se encaminha para um momento especial de bênção. Nos quinze minutos finais de cada programa, há uma oração concentrada realizada pelo missionário. O momento clímax do programa é a oração poderosa que é feita para os enfermos. É uma oração invocativa que a maioria dos pregadores evangélicos, pentecostais e carismáticos católicos, também realizam na conclusão de sua pregação. É uma oração de intercessão, ou seja, uma forte e concentrada súplica em favor do povo, pelas necessidades do momento, mencionadas, invocados, declaradas em tom orante e audível. Um fundo musical muitas vezes acompanha esse tipo de oração. A posição da cabeça inclinada e dos olhos fechados e os braços ocasionalmente erguidos são comuns. O tom de voz, antes da conclusão da oração, é aumentado e todo o povo também começa a falar em súplicas, numa mistura confusa de vozes e sons. R.R.Soares não se chega, ao vivo, à oração da glossololia, comentada no capítulo anterior. Mas o tom crescente é sentido e o missionário evoca a cura a libertação em nome do Senhor Jesus. O tom de voz é exortativo, incisivo, ordenando o afastamento do mal, com todas as letras, sempre em nome de Jesus. Mencionam-se alguns males concretos supostamente de pessoas presentes no ambiente e comenta-se uma possível cura merecida.

É percebida então uma espécie de “magia” de concentração e expectativa. Usando toda a sua concentração na elaboração de uma oração forte, cheia de palavras positivas e banhada de toda a "autoridade", que diz ter recebido diretamente de Deus, Soares gera no público a expectativa de fé na cura, que leva as pessoas a realmente se sentirem ou serem curadas. Não queremos e não podemos aqui entrar no mérito da cura ser verdadeira ou não, que exigiria uma comprovação científica, mas no poder exortativo da fala do intercessor.

Os testemunhos constantes de cura são os instrumentos de persuasão utilizados para a grande propaganda da Igreja Internacional da Graça. Sem entrar no mérito ético da ação, as pessoas são usadas, como marketing religioso, publicidade para a provocação da fé nos demais. Esse é um hábito comum nos programas de R.R.Soares.

A cura é o grande meio do espetáculo. Já é a mensagem. O método já é o conteúdo. GUY DEBORD afirmou que a imagem se torna parte formadora da realidade, sendo responsável pela atividade social daqueles que a contemplam. A imagem da pessoa transformada, segurando por exemplo sua bengala como percebemos nas edições dos jornais acima citados, é formadora de opinião. A imagem e o caminhar nos programas de pessoas que não caminhavam é costumeiramente focada no Show da Fé.

O olhar do fiel pós-moderno está anestesiado pelo prisma da imagem. Está na mentalidade espetacular, no sujeito domesticado pela virtualidade e comprovação da fé pelo milagre. Nesse fenômeno da cura comprova-se o olhar vicioso apontado por DEBORD, esse jeito fantástico de ver a realidade por meio de espetacularização. O Show da Fé é essencialmente um espetáculo de cura e libertação em vídeo.

A fé é entendida pelos atores e pelos contempladores como espetacular, como um show, como um carnaval de imagens, sensações, milagres e prodígios. Há uma economia da razão e um espetáculo da sensação de transformação. Voltamos ao princípio da admiração platônica das imagens e pessoas que desfilam na passarela da cura.

R.R. Soares exerce, neste espetáculo, não a missão tão somente de missionário, pregador e profeta, mas de milagreiro, de taumaturgo, tornando-se o animador do sagrado como espetáculo, um verdadeiro showmen de entretenimento, de prodigioso operador de milagres. Nessa indústria cultural religiosa da Igreja Internacional da Graça, vende-se essencialmente um único produto: a mudança de vida daquele que crê no poder do nome de Jesus.”

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É isso!


Fonte:
Gerson Schmidt: “TV Brasileira: novo púlpito da Igreja Eletrônica. O verbo se faz imagem televisiva”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito para obtenção do Grau de Mestrado em Comunicação Social. Orientadora: Profª. Drª. Cristiane Finger). Pontifícia Universidade Católica. Porto Alegre, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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