O “fato científico” nas concepções de Fleck e Kuhn

"O problema fundamental que Fleck quis responder foi o da origem e do desenvolvimento do fato científico. E para mostrar como os fatos são construídos sociologicamente, ele analisou o conceito de sífilis, passando, por sua vez, por vários estilos de pensamento diferentes, desde seus primórdios até a reação de Wassermann. Enquanto para Fleck o principal objeto é a descrição da constituição do fato científico em um determinado estilo de pensamento e secundária a mudança de um estilo em outro, pois para Fleck não existe algo como revoluções científicas, para Kuhn, ao contrário, estava interessado exatamente nessa mudança que ele chamou “revolução”. Contudo, sustentamos que a concepção de Kuhn não é incompatível com a de Fleck, mesmo que Fleck veja a referida mudança como uma transformação gradual, semelhante às transformações das espécies biológicas. Para Kuhn, o importante é mostrar quão profundas são as diferenças entre os paradigmas, e, ao mesmo tempo, como elas se ocultam da comunidade científica. Neste aspecto, Kuhn tem muito mais a dizer do que Fleck. Não obstante, ele estava comprometido com a construção do fato científico, pois ele só é possível por meio do paradigma que leva os membros da comunidade a perceberem um fato como tal. Por exemplo, a descoberta de um novo fato científico só é possível se um cientista pertence a um determinado paradigma; só assim estará apto a ver as anomalias que constituem um novo fato. Neste aspecto, Fleck é muito mais sofisticado, quando na monografia de 1935, utilizou um estudo comparativo de manuais de anatomia, onde mostra as diferenças de percepção do corpo humano. Kuhn utilizou os clássicos exemplos da Gestalt, como, por exemplo, a figura pato-coelho, que não se mostram tão relacionados ao “perceber configurado” requerido por um paradigma como os exemplos de Fleck (cf. FLECK, 1986, p. 181-93).

Em A Origem e o desenvolvimento de um Fato Científico (1935), Fleck analisou o desenvolvimento da sífilis numa obra de quatro capítulos. Podemos comparar a tarefa de Fleck a de Kuhn ao escrever seu livro “A Revolução Copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento ocidental” (KUHN, 1957). Assim, Kuhn, de modo semelhante ao de Fleck com o conceito de sífilis, fez o percurso da passagem do sistema ptolomaico ao copernicano. A dívida de Kuhn em relação a Fleck, segundo nossa avaliação, está presente já nesse trabalho.

A metodologia de Fleck consistiu primeiramente em reconstruir historicamente o conceito de sífilis, ou seja, como surgiu o conceito atual de sífilis e sua evolução histórica: entidade nosológica “mítico-ética”, “empírico-terapêutica”, patogênica e etiológica. No segundo capítulo, Fleck fez uma avaliação epistemológica dessa reconstrução, isto é, das conseqüências epistemológicas da história do conceito de sífilis. Fleck foi consciente da dificuldade de reconstruir a história (em linguagem kuhniana: o período pré-paradigmático) de uma disciplina científica. Segundo Fleck:

É muito difícil, se não impossível, descrever corretamente a história de um campo do saber. Esta se compõe de muitas linhas de desenvolvimento de idéias, que se cruzam e se influem mutuamente. Todas elas teriam que ser representadas, primeiro, como linhas contínuas e depois, em um segundo momento, com todas as conexões estabelecidas entre elas. Em terceiro lugar, se teria que traçar, simultaneamente e à parte, a direção principal de desenvolvimento, tomada como uma media idealizada. Portanto, é como se quiséramos reproduzir, por escrito e com fidelidade ao desenvolvimento natural, uma conversação muito animada, na qual várias pessoas falassem simultaneamente uma com as outras tentando impor sua voz sobre as demais e na qual haveria, sem embargo, uma idéia comum que vai cristalizando. Um esquema mais ou menos artificial ocuparia então o lugar da descrição de uma interação dinâmica vital” (FLECK, 1986, p. 62).

No terceiro capítulo, temos novamente um estudo histórico sobre a reação de Wassermann e seu desenvolvimento, bem como a participação individual e coletiva neste desenvolvimento. Por fim, o último capítulo é uma avaliação epistemológica sobre o tema do terceiro capítulo, ou seja, a reação de Wassermann.

O que é um fato? Foi com essa interrogação que Fleck abriu sua monografia. Freqüentemente, o fato é considerado como algo fixo, independente do sujeito conhecedor, é aquilo que é dado; “fato” é considerado também como sinônimo de “existência” ou “realidade”. Fleck questionou esse tipo de noção do fato científico, assim como que o objetivo das ciências fosse o de descobrir tais fatos. Também Kuhn questionou a possibilidade de podermos apreender os fatos em si ou fatos comuns a todos os humanos, independentemente de sua educação, bem como, de que o objetivo da ciência seja descobrir fatos novos. Segundo Kuhn, o objetivo do cientista é o de resolver problemas gerados pela “ciência normal”, isto é, desenvolver o paradigma estabelecido até onde for possível.

Segundo Fleck, a concepção realista nos impede de obter um conhecimento crítico do mecanismo cognitivo de produção dos fatos. Fleck sugeriu que a análise de um fato novo, como o da chamada reação de Wassermann é epistemologicamente interessante, pois é fenomenológica e historicamente rica, e livre dos prejuízos a que nossos fatos cotidianos estão submetidos."

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É isso!

Fonte:
Adilson Alciomar Koslowski: “Nas origens da Estrutura das Revoluções Científicas: A influência de Fleck, Polanyi e Quine na Filosofia da Ciência de Thomas Samuel Kuhn”. (Dissertação submetida ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de Concentração: Epistemologia. Orientador: Prof. Dr. Alberto O. Cupani). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2004.

Nota:

O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

2 comentários:

  1. Prezado,

    Tenho me interrogado em que pontos convergem e divergem Kuhn, Fleck e Latour/Callon/Law, pois não consigo estabelecer um divisor claro entre a noção de paradigmas, de construção do fato científico segundo Fleck e essa mesma construção segundo a teoria ator-rede! Poderia me ajudar? Obrigado.

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  2. Isso e muito confuso

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