O grande missão de Francis Galton

"O objetivo de Hereditary Genius é expresso de modo claro e direto na primeira frase do Capítulo Introdutório:

Proponho-me a demonstrar, neste livro, que as habilidades naturais de um homem derivam da hereditariedade e estão sujeitas exatamente às mesmas limitações da forma e das características físicas de todo o mundo orgânico
(Galton, 1869, p. 1)

Galton acredita que as variações observadas nos seres humanos são intelectuais e psicológicas por natureza. Com base em sua própria experiência, observara que, apesar de ter nascido em uma família estruturada, qu e lhe forneceu um rico ambiente intelectual, e de seu alto grau de motivação para se formar com honras em Cambridge, ele não fora capaz de superar o desempenho de vários de seus colegas. Assim sendo, o melhor desempenho daqueles que o suplantaram poderia se dever a uma “habilidade natural”. Também observara a presença de eminências intelectuais em determinadas famílias, inclusive na sua própria – Erasmus e Charles Darwin, por exemplo, além de outros menos conhecidos. Galton pesquisa o histórico das famílias e conta quantas eminências existem em cada uma; constata que as famílias com eminências representam aproximadamente uma em cada 4000 famílias da população normal. Examina então as relações familiares entre os eminentes e verifica que cerca de 10% deles tinham pelo menos um parente que poderia ser considerado “eminência”. Mesmo levando em conta o fato de cada pessoa ter vários parentes, os valores observados excediam, em muito, o que se poderia explicar pelo acaso. A evidência concreta fora revelada, e com Hereditary Genius Galton pretende provar que era hereditária.

Fancher (1979) faz uma análise cuidadosa da argumentação de Galton nessa obra. Os argumentos seguem três linhas: a distribuição normal, o pedigree dos gênios e os estudos de parentes adotados e biológicos.

Na primeira linha de argumentação, Galton mais uma vez volta-se para Cambridge e estuda os resultados em dois exames de distinção em matemática sucessivos. Observa qu e a distribuição dos resultados se aproximava muito da distribuição de medidas físicas da população, como altura e peso, observada pelo estatístico belga Adolphe Quetelet (1796 - 1874): a distribuição normal ou curva do sino. Esse dado é compatível com sua hipótese, embora não seja suficiente para comprová-la.

A segunda linha analisa a árvore genealógica de pessoas eminentes de doze grupos (juízes da Inglaterra, estadistas, militares de destaque, comandantes, escritores, cientistas, poetas, músicos, teólogos, pintores, acadêmicos, remadores, lutadores). Galton identifica dois padrões: (1) como ocorre com as características físicas, a tendência de laços de sangue próximos entre eminentes parentes era maior do que a tendência de laços distantes; as relações de primeiro grau (filhos ou irmãos) eram 4 vezes mais frequentes do que as de segundo grau (avós, netos, sobrinhos, tios), que por sua vez eram quatro vezes mais frequentes que as de terceiro grau (bisavós, primos etc); mesmo as relações de terceiro grau ocorriam com maior frequência do que seria esperado pelo acaso; (2) existe uma tendência imperfeita, mas evidente, de parentes se destacarem nas mesmas áreas; geralmente escritores eminentes tinham um avô eminente também escritor, embora a frequência de outras ocupações também aparecesse em uma proporção superior à prevista pelo acaso. Galton argumenta que, se o requisito “habilidade natural” para cada campo específico for uma combinação complexa de características físicas, mentais e emocionais separadas e parcialmente herdadas, a prole de um eminente herdaria certa proporção das qualidades necessárias para a eminência no mesmo campo, mas não necessariamente o conjunto inteiro.

Embora o mesmo padrão pudesse ser explicado pelo ambiente compartilhado pela mesma família, Galton procura reduzir a importância desse fator, embora o aborde mais diretamente em sua terceira linha de argumentação.

A terceira linha investiga as relações de eminências com seus parentes adotados. Observa que os papas católicos tinham o costume de adotar “sobrinhos”. Pondera que esses meninos partilhavam do mesmo ambiente de seus protetores, mas sem as vantagens biológicas. Opta então por comparar a frequência de eminências nesse grupo com a observada no grupo de filhos criados por pais biológicos. Galton reconhece que seu estudo não é rigoroso, mas acredita ser suficiente para corroborar sua hipótese, afirmando que a combinação de um filho capacitado e um genitor capacitado não é observada nas relações “protegido” e “protetor” entre os eclesiásticos de Roma. Ao contrário da análise cuidadosa observada anteriormente, o estudo dos casos de adoção foi feito em uma amostra no mínimo atípica, e sem o rigor demonstrado por Galton nas outras linhas de argumentação.

Embora as três linhas de evidência defendidas em Hereditary Genius sejam coerentes com a tese da hereditariedade, elas não a comprovam conclusivamente. Entretanto, Galton soube apresentá-las de modo claro, fundamentando-as com números e gráficos. Isso lhes conferiu uma aparência científica e credibilidade suficiente para que tanto seus aliados quanto seus oponentes as levassem a sério.

Mas Hereditary Genius também deixa evidente um projeto maior que ocupará a mente de Galton até o final de sua vida: a aplicação prática de sua tese em um projeto utópico de aperfeiçoamento da espécie. O Capítulo Introdutório da obra explicita esse projeto de modo inequívoco:

Assim como é fácil [...] obter, por meio de uma seleção cuidadosa, uma linhagem de cães ou cavalos dotados de talentos peculiares como correr ou fazer outra coisa qualquer, também seria bastante viável produzir uma raça de homens altamente dotados por meio de casamentos criteriosos durante várias gerações consecutivas
(Galton, 1869, p. 1)

Embora não fossem imediatamente visíveis para o público, dois movimentos internos de Galton se desenvolviam com intensidade crescente: o inesgotável apetite pelos números e a seleção um tanto arbitrária de trechos da obra de Darwin que ele recriava em formas novas e radicais (Brookes, 2004). Darwin usara a domesticação de animais para ilustrar como a evolução pela seleção natural produz mudanças na forma e nas características das espécies; o controle sobre os indivíduos que poderão se reproduzir por muitas gerações permite assegurar a transmissão de determinadas características desejáveis e a extinção das indesejáveis. Ora, pondera Galton, se os seres humanos, por serem mais fracos, precisam da inteligência para sobreviver, os mais inteligentes naturalmente atingirão o topo da sociedade. Começa então a imaginar o seu próprio experimento: o controle da reprodução dos seres humanos para a depuração da espécie em termos d e inteligência. Seu objetivo é aplicar a ideia da adaptação e da sobrevivência do mais apto à depuração da espécie humana para a qual cunha o termo eugenia: a possibilidade de aperfeiçoamento da raça humana. Considera, como critério, aqueles que se destacaram nos empreendimentos intelectuais e o povo “mais civilizado” – como não poderia deixar de ser, os ingleses. A esse projeto Galton se dedicará pelo resto de sua vida: praticamente tudo o que virá a fazer, a partir de então, estará relacionado a ele.

Como típico representante da alta classe vitoriana, Galton, assim como a maioria dos membros de sua classe na nação mais poderosa do planeta, vê com desprezo os que não lhe são igu ais: as mulheres, os negros, os pobres. Supunha que as mulheres eram menos inteligentes que os homens (Goodwin, 2005; White, 2006).
Em sua obra Inquiries into Human Faculty and its Development (1883, p. 20-21), afirma:

Identifiquei, como regra, que os homens têm poderes de discriminação mais refinados do que os das mulheres, e a experiência nos negócios da vida parece confirmar isso [...] As mulheres raramente distinguem os méritos do vinho à mesa, e embora o costume lhes permita presidir o desjejum, no geral os homens consideram que estão muito longe de ser boas preparadoras de chá e café.

Considera, ainda, que as pessoas retardadas têm deficiências sensoriais e intelectuais. Na mesma obra, declara: “A faculdade de discriminação dos idiotas é curiosamente baixa; eles mal podem distinguir frio e calor; e seu senso de dor é tão obtuso que alguns dos mais parvos parecem mal saber do que se trata.” (Galton, 1883, p. 20)

Para criar uma sociedade eugenista, Galton acredita que seria necessário incentivar o casamento dos rapazes mais aptos com as moças mais aptas, e levá-los a uma taxa de procriação superior à dos casais cujas habilidades fossem inferiores. Porém, para levar adiante seu projeto, é necessário resolver um problema: como avaliar os mais aptos?

Dedica atenção intermitente ao assunto, até pelo menos 1884, quando monta o Laboratório Antropométrico para a Feira Internacional de Saúde de Londres, posteriormente transferido para um museu onde coletaria dados durante dez anos. Os visitantes eram submetidos aos instrumentos de medição ou testes elaborados por ele. Eram medições físicas, como o tamanho da cabeça, e o desempenho em avaliações de tempo de reação e acuidade sensorial. Para Galton, são testes mentais que medem aspectos da inteligência. O argumento subjacente é: o indivíduo que tem habilidades intelectuais mais diferenciadas tem necessariamente um sistema nervoso e um cérebro mais eficientes e potentes; o poder do cérebro de uma pessoa provavelmente está relacionado ao tamanho do cérebro; portanto, medir a cabeça é o teste de inteligência mais simples, pois reflete o tamanho do cérebro contido e, assim sendo, o grau de diferenciação das habilidades intelectuais do indivíduo medido. Acredita também que a eficiência neurológica está relacionada à velocidade com que a pessoa responde aos objetos do ambiente, o que justifica o uso de testes de tempo de reação. Assim Galton defende a sua posição:

As únicas informações do mundo externo que nos alcançam passam pela via dos sentidos; quanto mais os nossos sentidos percebem as diferenças, mais amplo é o campo em que nosso julgamento e nossa inteligência podem atuar.
(1883, p.19)

Para avaliar esse aspecto e as habilidades relativas dos indivíduos, lança mão de tarefas que envolvem a discriminação de pesos e cores ou a capacidade de ouvir tons agudos. Ao contrário de outros pesquisadores, como Fechner e Wundt, que haviam medido fenômenos desse tipo com o objetivo de estabelecer princípios gerais, para Galton a finalidade é avaliar diferenças individuais, com ênfase na variabilidade e na adaptação. Coerente com sua paixão pelos números e p ela experimentação, Galton passa a “medir” características que lhe possibilitem comprovar as diferenças que supõe existir entre raças, classes sociais e gêneros.


Segundo Fancher,

[Galton] eleva o estudo científico das diferenças individuais ao nível de uma especialização psicológica relevante, com importantes implicações sociais. Muitas das questões que ele levantou mais de 100 anos preocupam os psicólogos até hoje.
(1979, p. 219)

É assim que se desenvolve a idéia inédita de que testes podem ser usados para medir diferenças psicológicas entre as pessoas, particularmente a inteligência. A idéia de teste de inteligência nasce, assim, em um contexto eugenista, e é apresentada como parte de um importante projeto científico que vale a pena levar adiante. Galton não chega a criar testes psicológicos de fato, mas prepara o terreno para a mensuração das funções psicológicas. Embora seu interesse se volte para as diferenças individuais, os indivíduos em sua singularidade jamais o interessaram. Porém, como afirma White (2006, p. 25), “Galton foi o primeiro da fila. Se pudermos entender mais claramente o que o motivou, estaremos mais preparados para entender os outros.”

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É isso!

Fonte:
Maria Cecilia de Vilhena Moraes Silva: “A compreensão da medida e a medida da compreensão: Origens e transformações dos testes psicológicos”. (Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social: História da Psicologia, sob a orientação da Profa. Dra. Maria do Carmo Guedes). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP . São Paulo, 2010.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

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